À medida que vão surgindo na Imprensa notícias de relatórios,
encontrados em poder do ex-espião Jorge Silva Carvalho, sobre a vida
privada de jornalistas, sinto-me cada vez mais discriminado. Então e eu?
Será a minha vida privada tão desinteressante que, jornalista há 40
anos, os espiões do SIED e do SIS não têm nada a relatar sobre, como os
velhos informadores da PIDE, o meu "porte moral"?
É triste chegar quase aos 70 e ter a esquisita sensação de que a minha vida é, afinal, um livro tão aberto (ou tão fechado) que nenhuma "secreta" quer saber quem são os meus amigos e os meus inimigos; se tenho família, dívidas, pensamentos, conta bancária, colesterol; se continuo a receber pelo correio "folhas de jornais franceses" (arquivadas na Pasta 10/1); se alguma coisa "consta em meu desabono, moral e politicamente"; se serei "desafecto ao regime" ou, até, "adversário do regime", ou então se não se conhecem as minhas "verdadeiras tendências"; se minha mulher teve uma "rígida e exemplar educação" e que foi feito da tal "doença cancerosa" que, segundo o bem informado Relatório n.0º 202/72/SC da PIDE/DGS, lhe "teria surgido"; etc..
A minha esperança é que tudo isso seja Informação Estratégica de Defesa e que, quando a Ongoing desvincular Silva Carvalho do segredo de Estado, eu descubra que, como os outros, também tenho uma vida merecedora de relatório com 16 páginas.
Manuel António Pina 15-12-2011
É triste chegar quase aos 70 e ter a esquisita sensação de que a minha vida é, afinal, um livro tão aberto (ou tão fechado) que nenhuma "secreta" quer saber quem são os meus amigos e os meus inimigos; se tenho família, dívidas, pensamentos, conta bancária, colesterol; se continuo a receber pelo correio "folhas de jornais franceses" (arquivadas na Pasta 10/1); se alguma coisa "consta em meu desabono, moral e politicamente"; se serei "desafecto ao regime" ou, até, "adversário do regime", ou então se não se conhecem as minhas "verdadeiras tendências"; se minha mulher teve uma "rígida e exemplar educação" e que foi feito da tal "doença cancerosa" que, segundo o bem informado Relatório n.0º 202/72/SC da PIDE/DGS, lhe "teria surgido"; etc..
A minha esperança é que tudo isso seja Informação Estratégica de Defesa e que, quando a Ongoing desvincular Silva Carvalho do segredo de Estado, eu descubra que, como os outros, também tenho uma vida merecedora de relatório com 16 páginas.
Este país não é para jovens
Manuel António Pina 15-12-2011
Um
estudo da CGTP revela que 51% dos jovens trabalhadores com menos de 25
anos recebem um salário inferior a 500 euros, o mesmo acontecendo com
24,5% dos jovens entre os 25 e os 34 anos. Somando a estes números,
referentes tão só aos "privilegiados" que têm trabalho, os milhares que
se encontram em situação de desemprego ou procuram em vão o primeiro
emprego, fácil é concluir que este país não é para jovens.
A
minha geração viveu o pesadelo da Guerra Colonial, que semeou entre os
jovens milhares de mortos e estropiados e forçou outros tantos à solidão
do exílio, enquanto a casta política e económica dominante (parte dela
ainda hoje avultando por aí) ia metendo, com a Pátria na boca, os
proveitos da colonização ao bolso.
Mas uma comissão de serviço na guerra, parecendo eterna, não durava eternamente, e os sobreviventes regressavam ao fim de dois anos. Regressavam, é certo, a um país cabisbaixo e desapossado, mas onde, apesar de tudo, lhes era possível construir uma vida, se bem que cinzenta ao menos autónoma.
Como sobreviver porém, física e moralmente, à guerra que se abate hoje sobre os jovens, condenados sem fim à vista à precariedade, à humilhação e à desesperança, impedidos de constituir família ou de ter vida própria? E uma boa parte da responsabilidade política por isso é justamente da minha geração, sobretudo daqueles que, logo que puderam, se meteram na cama com o inimigo dos seus 20 anos.
Mas uma comissão de serviço na guerra, parecendo eterna, não durava eternamente, e os sobreviventes regressavam ao fim de dois anos. Regressavam, é certo, a um país cabisbaixo e desapossado, mas onde, apesar de tudo, lhes era possível construir uma vida, se bem que cinzenta ao menos autónoma.
Como sobreviver porém, física e moralmente, à guerra que se abate hoje sobre os jovens, condenados sem fim à vista à precariedade, à humilhação e à desesperança, impedidos de constituir família ou de ter vida própria? E uma boa parte da responsabilidade política por isso é justamente da minha geração, sobretudo daqueles que, logo que puderam, se meteram na cama com o inimigo dos seus 20 anos.
Estuprem-nas, elas merecem
Publicado em 2012-01-04
MANUEL ANTÓNIO PINA
A Igreja espanhola não deixa as suas tradições de intolerância por mãos alheias.
Liderada
hoje pelo cardeal Rouco Varela, herdeiro de outro cardeal arcebispo de
Madrid, Goma y Toma, que dizia em 1936, ano do nascimento de Rouco: "Não
pode haver pacificação senão pelas armas, há que extirpar a podridão da
legislação laica", ou do bispo de Cartagena, Diaz Gomara, que clamou do
púlpito "Benditos sejam os canhões!", saudando entusiasticamente a
rebelião fascista de Franco contra o Governo legítimo de Espanha, a
hierarquia católica espanhola continua a pregar o ódio em nome do seu
"Deus que é amor".
Agora que Mariano Rajoy, próximo da Igreja, anunciou a intenção de "extirpar a podridão da legislação laica" do aborto aprovada pelo executivo de Zapatero, chegou-me às mãos uma homilia de Natal de outro arcebispo espanhol, desta vez o de Granada, Javier Jimenez, defendendo que uma mulher que aborta "dá ao homem a licença absoluta, sem limites, de abusar do corpo dessa mulher, porque ela é que trouxe a tragédia a si, e trouxe-a como se fosse um direito" (a homilia pode ser lida no sítio da Diocese de Granada).
Para o arcebispo, os crimes de Hitler e Estaline (esqueceu-se dos de Franco) "são menos repugnantes que o do aborto". É em alturas assim que até um não crente gostaria que existisse um Deus que julgasse esta gente.
Manuel António Pina 19-12-2011
Agora que Mariano Rajoy, próximo da Igreja, anunciou a intenção de "extirpar a podridão da legislação laica" do aborto aprovada pelo executivo de Zapatero, chegou-me às mãos uma homilia de Natal de outro arcebispo espanhol, desta vez o de Granada, Javier Jimenez, defendendo que uma mulher que aborta "dá ao homem a licença absoluta, sem limites, de abusar do corpo dessa mulher, porque ela é que trouxe a tragédia a si, e trouxe-a como se fosse um direito" (a homilia pode ser lida no sítio da Diocese de Granada).
Para o arcebispo, os crimes de Hitler e Estaline (esqueceu-se dos de Franco) "são menos repugnantes que o do aborto". É em alturas assim que até um não crente gostaria que existisse um Deus que julgasse esta gente.
Finalmente alguém sensato
Manuel António Pina 19-12-2011
O que disse o vice-presidente da bancada do PS e tanta celeuma levantou é
o óbvio: um Governo que se preocupasse exclusivamente com os interesses
dos portugueses e não fosse um mero núncio local dos interesses dos
"mercados" deveria ter como absoluta prioridade a renegociação da
dívida.
É hoje claro para quem observa, sem palas ideológicas, a
situação portuguesa que nunca conseguiremos pagar a dívida nas
condições usurárias que nos foram impostas, as quais, gerando recessão e
bloqueando o crescimento da economia, constituem o principal obstáculo a
esse pagamento, forçando sempre a novas e sucessivas "ajudas", numa
espiral de endividamento cujos resultados estão à vista na Grécia.
Assim, a reestruturação da dívida será, mais tarde ou mais cedo, uma inevitabilidade. Aos credores interessa que seja o mais tarde possível, quando o país estiver já completamente exaurido e sem património que vender ao desbarato. Nessa altura, tudo o que puderem ainda sacar será bem vindo. Aos portugueses interessa que seja já, enquanto ainda dispomos de uns restos de soberania.
A desassombrada afirmação de Pedro Nuno Santos, de que devemos "marimbar-nos para os credores" e usar todas as armas para obter condições que nos permitam pagar o que devemos e sobreviver como país independente, seria o desiderato patriótico de qualquer Governo que não agisse apenas como submissa correia de transmissão dos interesses da Sra. Merkel.
Assim, a reestruturação da dívida será, mais tarde ou mais cedo, uma inevitabilidade. Aos credores interessa que seja o mais tarde possível, quando o país estiver já completamente exaurido e sem património que vender ao desbarato. Nessa altura, tudo o que puderem ainda sacar será bem vindo. Aos portugueses interessa que seja já, enquanto ainda dispomos de uns restos de soberania.
A desassombrada afirmação de Pedro Nuno Santos, de que devemos "marimbar-nos para os credores" e usar todas as armas para obter condições que nos permitam pagar o que devemos e sobreviver como país independente, seria o desiderato patriótico de qualquer Governo que não agisse apenas como submissa correia de transmissão dos interesses da Sra. Merkel.
Fome e sede de justiça
Publicado em 2012-02-01
Manuel António Pina
Queixou-se
na TVI24 a procuradora-geral adjunta Maria José Morgado, directora do
DIAP, de que há "magistrados, funcionários e polícias pés-descalços e a
passar fome".
Quanto a funcionários e polícias, passo.
Apesar de terem, muitos deles, um salário de miséria, ainda assim vão,
porém, tendo um salário, coisa de que não se podem gabar os 700 000
portugueses desempregados. Mas não custa a crer que, como diz o
presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais, haja "colegas em
alguns tribunais que estão um pouco dependentes da solidariedade".
Um magistrado a meio da carreira aufere 3 600 euros líquidos por mês, mais subsídio de compensação/renda de casa. É certo que, se os magistrados fossem pagos à hora, sobretudo na 1.ª instância, onde frequentemente se trabalha 9 e 10 horas por dia, ganhariam muito mais, mas daí a dizer-se que os há a "passar fome" não só não é crível como, num país em que o salário mínimo (dos privilegiados que têm salário) é de 485 euros, é tão afrontoso como o presidente da República queixar-se de que os seus mais de 10 000 euros de pensões não lhe chegam "para pagar as despesas".
A não ser que Maria José Morgado se refira à "fome e sede de justiça" que as magistraturas hoje justificadamente sentem, poderia perguntar-se porque é que os tais "magistrados pés-descalços", se têm fome, não comem brioches.
Manuel António Pina 24-11-2011
Um magistrado a meio da carreira aufere 3 600 euros líquidos por mês, mais subsídio de compensação/renda de casa. É certo que, se os magistrados fossem pagos à hora, sobretudo na 1.ª instância, onde frequentemente se trabalha 9 e 10 horas por dia, ganhariam muito mais, mas daí a dizer-se que os há a "passar fome" não só não é crível como, num país em que o salário mínimo (dos privilegiados que têm salário) é de 485 euros, é tão afrontoso como o presidente da República queixar-se de que os seus mais de 10 000 euros de pensões não lhe chegam "para pagar as despesas".
A não ser que Maria José Morgado se refira à "fome e sede de justiça" que as magistraturas hoje justificadamente sentem, poderia perguntar-se porque é que os tais "magistrados pés-descalços", se têm fome, não comem brioches.
Fraca memória
Manuel António Pina 24-11-2011
Ninguém imaginaria, mas parece que um dos dois PCPs (porque há, pelo
menos, dois: o que, a nível interno, se mostra comprometido com a causa
dos oprimidos e o que, externamente, está ao lado de alguns dos mais
opressores regimes políticos do Mundo) terá adoptado a
norte-americaníssima teoria, que fez escola durante a Guerra Fria, do
"he's a son of a bitch, but he's our son of a bitch".
A brutal repressão do regime de Bachar al-Assad sobre
as manifestações pró-democracia já provocou, segundo a ONU, 3500 mortos.
"Alegado saldo", acha o "Avante!" que, repetindo o ditador, escreve que
os manifestantes são tão só "bandos armados suportados e dirigidos a
partir do exterior", o mesmo, palavra por palavra, que a propaganda de
Salazar dizia dos movimentos de libertação das ex-colónias.
"Milhares de pessoas de todos os credos e idades manifestaram-se, domingo, na capital da Síria, em defesa da unidade nacional e contra a ingerência externa nos assuntos do país e o terrorismo", afirma o jornal do PCP. Substitua-se "na capital da Síria" por "em Lisboa" e este poderia ser o "lead" da notícia do extinto "Diário da Manhã" de uma das muitas "manifestações de desagravo" organizadas pelo regime salazarista em apoio da Guerra Colonial: "unidade nacional", "ingerência externa", "terrorismo"...
A linguagem que usamos não é uma matéria neutra e, ou o PCP aprendeu de mestres pouco recomendáveis, ou tem péssima memória.
MANUEL ANTÓNIO PINA
"Milhares de pessoas de todos os credos e idades manifestaram-se, domingo, na capital da Síria, em defesa da unidade nacional e contra a ingerência externa nos assuntos do país e o terrorismo", afirma o jornal do PCP. Substitua-se "na capital da Síria" por "em Lisboa" e este poderia ser o "lead" da notícia do extinto "Diário da Manhã" de uma das muitas "manifestações de desagravo" organizadas pelo regime salazarista em apoio da Guerra Colonial: "unidade nacional", "ingerência externa", "terrorismo"...
A linguagem que usamos não é uma matéria neutra e, ou o PCP aprendeu de mestres pouco recomendáveis, ou tem péssima memória.
Gerir expectativas
MANUEL ANTÓNIO PINA
Apesar dos esforços do Governo na luta contra o desemprego (basta
consultar o "Diário da República" e ver as nomeações feitas todos os
dias), o INE anunciou ontem que os portugueses desempregados são já 771
mil. E o ministro Relvas diz-se (que outra coisa haveria de dizer?)
"preocupado".
Mas Relvas ocupa no Governo a perplexa pasta do
Optimismo, também dita da Propaganda e, não podendo deixar de mostrar-se
pesaroso, nem podendo (pelo menos em público) dirigir cumplicemente uma
piscadela de olho liberal à Sra. Merkel exibindo esse número como prova
de que, quando o Governo diz que vai "além da troika", vai mesmo,
apressa-se a tranquilizar o povo: o Governo está a "fazer o caminho
certo".
"O caminho certo" é uma expressão ambiguamente feliz. Com ela, Relvas realiza o milagre retórico de, ao mesmo temo, falar verdade e mentir.
Fala verdade àquele patronato que alimenta justificadas expectativas de que o "caminho certo" do Governo, embaratecendo e facilitando os despedimentos, lhe oferecerá um exército, cada vez mais numeroso, de mão-de-obra dócil e disposta a trabalhar por uma malga de arroz; e mente aos 771 mil desempregados, mantendo-os expectantes de que tal "caminho certo" os conduzirá, num futuro radioso por vir e apesar da galopante recessão para que o INE igualmente aponta, a um posto de trabalho (quem sabe se num dos aparentemente inesgotáveis lugares de assessor do gabinete do próprio Relvas?).
"O caminho certo" é uma expressão ambiguamente feliz. Com ela, Relvas realiza o milagre retórico de, ao mesmo temo, falar verdade e mentir.
Fala verdade àquele patronato que alimenta justificadas expectativas de que o "caminho certo" do Governo, embaratecendo e facilitando os despedimentos, lhe oferecerá um exército, cada vez mais numeroso, de mão-de-obra dócil e disposta a trabalhar por uma malga de arroz; e mente aos 771 mil desempregados, mantendo-os expectantes de que tal "caminho certo" os conduzirá, num futuro radioso por vir e apesar da galopante recessão para que o INE igualmente aponta, a um posto de trabalho (quem sabe se num dos aparentemente inesgotáveis lugares de assessor do gabinete do próprio Relvas?).
Gravatas & gasolina
Manuel António Pina 26-12-2011
A notícia é animadora: a
"jihad" decretada por Assunção Cristas no Ministério da Agricultura,
Mar, Ambiente e Ordenação do Território contra as gravatas terá
resultado numa poupança de 136 mil euros em electricidade e 395
toneladas em CO2. O Ministério tem 10 500 funcionários, o que (é só
fazer as contas, como diria Guterres) significa que, só pelo facto de se
terem desengravatado, e presumivelmente apenas os do sexo masculino,
cada um custou, em média, menos 13 euros aos contribuintes em 2011. E
nem quero imaginar o que se poupará se a ministra for em 2012 um pouco
mais longe e alargar a medida a mais peças de roupa.
Imagino, no entanto, quanto pouparia Assunção Cristas em euros e em CO2 se lhe tivesse ocorrido, além de desengravatar o pessoal, reduzir também os cerca de 4 000 automóveis herdados pelo seu ministério dois-em-um ou, ao menos, os ditos de "representação" e de "uso pessoal". O Ministério de Assunção Cristas é, de facto, o recordista absoluto dos ministérios "civis": 4 000 carros para 10 500 funcionários representa um carro por cada 2,5 funcionários, dez vezes mais do que a média dos restantes ministérios.
Infelizmente, os indicadores da Agência Nacional de Compras Públicas omitem quantos desses automóveis são Mercedes ou BMW topo de gama de "representação" ou para "uso pessoal" (e decerto com motorista de gravata), preferindo deixar isso à pérfida imaginação do contribuinte pagante.
Imagino, no entanto, quanto pouparia Assunção Cristas em euros e em CO2 se lhe tivesse ocorrido, além de desengravatar o pessoal, reduzir também os cerca de 4 000 automóveis herdados pelo seu ministério dois-em-um ou, ao menos, os ditos de "representação" e de "uso pessoal". O Ministério de Assunção Cristas é, de facto, o recordista absoluto dos ministérios "civis": 4 000 carros para 10 500 funcionários representa um carro por cada 2,5 funcionários, dez vezes mais do que a média dos restantes ministérios.
Infelizmente, os indicadores da Agência Nacional de Compras Públicas omitem quantos desses automóveis são Mercedes ou BMW topo de gama de "representação" ou para "uso pessoal" (e decerto com motorista de gravata), preferindo deixar isso à pérfida imaginação do contribuinte pagante.
Jogue e instrua-se
Publicado em 2011-12-27
MANUEL ANTÓNIO PINA
Esqueça o "Trivial
Porsuit". O jogo das noites de 2012 será tentar descobrir uma ideia, uma
"representação que se forma no espírito", uma "percepção intelectual"
ou um "pensamento" nas 812 palavras da mensagem de Natal do
primeiro-ministro.
É uma espécie de "Jogo da (in)Glória". Quem, por exemplo, encontrar algo parecido com uma "percepção intelectual" na frase "queremos colocar as pessoas comuns com as suas actividades, os seus projectos, os seus sonhos, no centro da transformação do país", avança duas casas; e quem, designadamente algum dos 689,6 mil desempregados ou dos 100 mil jovens forçados a sair do país, não vir na frase "uma sociedade que se preza não pode desperdiçar nem os seus jovens nem as pessoas que se encontram na fase mais avançada da sua vida activa" uma piada de humor negro, volta ao início e será obrigado a reler as estatísticas do desemprego e da emigração.
Já quem vislumbrar uma "representação que se forma no espírito" diferente da hipocrisia na frase "um dos objectivos prioritários (...) do Governo consiste na recuperação e fortalecimento da confiança", depois de ter ouvido Passos Coelho garantir que, consigo a primeiro-ministro, não haveria aumentos de impostos nem seriam confiscados os subsídios de férias e Natal, será expulso do jogo.
"Um Bom Natal e um Feliz Ano Novo", como disse Passos Coelho (foi impressão minha ou ouviu-se mesmo, em fundo, o sinistro riso de Muttley?)
É uma espécie de "Jogo da (in)Glória". Quem, por exemplo, encontrar algo parecido com uma "percepção intelectual" na frase "queremos colocar as pessoas comuns com as suas actividades, os seus projectos, os seus sonhos, no centro da transformação do país", avança duas casas; e quem, designadamente algum dos 689,6 mil desempregados ou dos 100 mil jovens forçados a sair do país, não vir na frase "uma sociedade que se preza não pode desperdiçar nem os seus jovens nem as pessoas que se encontram na fase mais avançada da sua vida activa" uma piada de humor negro, volta ao início e será obrigado a reler as estatísticas do desemprego e da emigração.
Já quem vislumbrar uma "representação que se forma no espírito" diferente da hipocrisia na frase "um dos objectivos prioritários (...) do Governo consiste na recuperação e fortalecimento da confiança", depois de ter ouvido Passos Coelho garantir que, consigo a primeiro-ministro, não haveria aumentos de impostos nem seriam confiscados os subsídios de férias e Natal, será expulso do jogo.
"Um Bom Natal e um Feliz Ano Novo", como disse Passos Coelho (foi impressão minha ou ouviu-se mesmo, em fundo, o sinistro riso de Muttley?)
Morreu um homem justo
Há dois tipos de acontecimentos sobre que evito escrever: efemérides e
notícias necrológicas. Há, porém, efemérides inevitáveis e mortes que é
impossível omitir. O 25 de Abril é uma dessas efemérides e a morte de
Miguel Portas, num momento em que o país mais precisa de homens lúcidos e
livres, um desaparecimento que justificaria que se dissesse que
ficámos, se possível, ainda mais pobres, não se tivesse tornado tal
expressão um cliché fruste sem réstia de literalidade.
Ao todo, terei convivido com Miguel Portas umas poucas de dezenas de horas. Foi o suficiente para me aperceber de um homem de justa inteligência, grande seriedade intelectual e, ao mesmo tempo, de sentido de humor contagiante, coisas praticamente impossíveis de encontrar juntas num político, além do mais um dirigente partidário. Só alguém como ele teria sido capaz de, apesar de todas as nossas divergências, me convencer a aceitar episodicamente (e imprudentemente) ser mandatário de um projecto partidário. Quis eu então acreditar que tal projecto fosse à imagem de Miguel Portas. Não era, como rapidamente e sem surpresa descobri.
Conta-se que Camões, sabendo no leito de morte da catástrofe de Alcácer Quibir, terá dito: "Morro com a Pátria". Miguel Portas não teria gostado da duvidosa palavra "Pátria", mas morreu também quando Portugal se afunda num desastre não menos catastrófico para a independência nacional do que o de Alcácer Quibir.
Manuel António Pina 20-12-2011
Ao todo, terei convivido com Miguel Portas umas poucas de dezenas de horas. Foi o suficiente para me aperceber de um homem de justa inteligência, grande seriedade intelectual e, ao mesmo tempo, de sentido de humor contagiante, coisas praticamente impossíveis de encontrar juntas num político, além do mais um dirigente partidário. Só alguém como ele teria sido capaz de, apesar de todas as nossas divergências, me convencer a aceitar episodicamente (e imprudentemente) ser mandatário de um projecto partidário. Quis eu então acreditar que tal projecto fosse à imagem de Miguel Portas. Não era, como rapidamente e sem surpresa descobri.
Conta-se que Camões, sabendo no leito de morte da catástrofe de Alcácer Quibir, terá dito: "Morro com a Pátria". Miguel Portas não teria gostado da duvidosa palavra "Pátria", mas morreu também quando Portugal se afunda num desastre não menos catastrófico para a independência nacional do que o de Alcácer Quibir.
Nós, as "gorduras"
Manuel António Pina 20-12-2011
Primeiro
foram os jovens desempregados a receber do secretário de Estado da
Juventude guia de marcha para fora de Portugal; agora coube a vez aos
professores, pela voz do próprio primeiro-ministro.
No
caso dos professores, a coisa passa-se assim: o ministro Crato varre-os
das escolas; depois, Passos Coelho aponta-lhes a porta de saída do país:
emigrem, porque Angola e Brasil "têm uma grande necessidade (...) de
mão-de-obra qualificada". Portugal (que é um dos países da Europa com
mais baixos níveis de escolarização, segundo o Relatório do
Desenvolvimento Humano de 2011, divulgado no mês passado pelo PNUD) não
tem, como se sabe, necessidade de mão-de-obra qualificada.
E, como muito menos tem necessidade de mão-de-obra "desqualificada", ninguém se surpreenda se um dia destes vir o secretário de Estado do Emprego e o novo presidente do Instituto do Emprego e Formação (?) Profissional a mandar embora quem tiver como habilitações só o ensino básico; o ministro da Segurança Social a pôr na rua pensionistas e idosos (para que precisa Portugal de pensionistas e idosos, que apenas dão despesa?); o ministro da Saúde a dizer aos doentes que vão morrer longe, em países sem listas de espera e com taxas moderadoras em conta; o da Defesa a aconselhar os militares a desertar e ir para sítios onde haja guerras; e por aí adiante...
Percebe-se finalmente o que são as tais "gorduras do Estado": são os portugueses.
E, como muito menos tem necessidade de mão-de-obra "desqualificada", ninguém se surpreenda se um dia destes vir o secretário de Estado do Emprego e o novo presidente do Instituto do Emprego e Formação (?) Profissional a mandar embora quem tiver como habilitações só o ensino básico; o ministro da Segurança Social a pôr na rua pensionistas e idosos (para que precisa Portugal de pensionistas e idosos, que apenas dão despesa?); o ministro da Saúde a dizer aos doentes que vão morrer longe, em países sem listas de espera e com taxas moderadoras em conta; o da Defesa a aconselhar os militares a desertar e ir para sítios onde haja guerras; e por aí adiante...
Percebe-se finalmente o que são as tais "gorduras do Estado": são os portugueses.
O ministro de Tudo
Manuel António Pina 22-12-2011
O ministro adjunto e dos Assuntos Parlamentares, Miguel Relvas, tem
vindo progressivamente a assumir-se como o ministro de Tudo e Mais
Alguma Coisa. Poderia pensar-se que sofreria da voraz síndroma
"cheliomyrmex andicola", também dita síndroma da marabunta; mas não: o
próprio Passos Coelho nele delegou, satisfazendo o seu insaciável
apetite político, competências em áreas tão dispersas quanto as da
igualdade de género, administração local, desporto, diálogo
intercultural ou juventude, permitindo-lhe igualmente atribuir
subsídios, condecorações, pensões por serviços excepcionais e relevantes
e, até, a "pensão por méritos excepcionais na defesa da liberdade e da
democracia", matéria em que o ministro Relvas exibe, como se sabe,
invejável currículo.
Para além disso, falando Passos Coelho frequentemente
por parábolas, a Miguel Relvas cabe ainda a interpretação autêntica das
suas palavras. Assim, já veio explicitar que os portugueses que sigam o
conselho do primeiro-ministro e emigrem rapidamente e em força para
Angola ou Brasil (Relvas acrescenta Moçambique) aí encontrarão o
Eldorado, pois"os portugueses [que] têm uma visão universalista têm
sempre sucesso".
A emigração de jovens "portugueses com formação superior" para esses países deve porém ser, frisa Paulo Rangel, uma "segunda solução". A primeira é, obviamente, tentar emigrar para o PSD e, daí, para um "job" num instituto ou numa empresa pública.
A emigração de jovens "portugueses com formação superior" para esses países deve porém ser, frisa Paulo Rangel, uma "segunda solução". A primeira é, obviamente, tentar emigrar para o PSD e, daí, para um "job" num instituto ou numa empresa pública.
O monstro na primeira página
Publicado em 2012-01-12
Manuel António Pina
A
desavergonhada afirmação pública de Manuela Ferreira Leite
("abominável" lhe chamou justamente a jornalista que orientava o debate
da SIC em que a afirmação foi proferida) de que doentes com mais de 70
anos que necessitem de hemodiálise a devem pagar é, sabendo-se que a
alternativa à hemodiálise é a morte em poucos dias, um eloquente sinal
dos tempos que vivemos e da qualidade moral de certas elites hoje
influentes no país.
A conveniente "correcção" que,
apercebendo-se da brutalidade do que dissera, a ex-dirigente do PSD fez a
instâncias de outro interveniente no debate (afinal só quisera dizer
que "uns têm [a hemodiálise] gratuitamente, outros não", consoante a
capacidade financeira), é patética: se foi isso que quis dizer, porquê
os 70 anos?; porque não se aplicará o critério financeiro a doentes com
menos de 70 anos?
A ideia de que pessoas com mais de 70 anos só tem direito à vida, que é o que representa um tratamento extremo como a hemodiálise, pagando - independentemente de terem, durante anos e anos, entregue ao Estado parte substancial dos seus rendimentos para garantir o seu direito a assistência na doença - talvez seja aceitável vindo da mesma mente tortuosamente contabilística que em tempos também defendeu a suspensão da democracia. Que mentes dessas tenham púlpito num canal de televisão só se compreende pela política do "monstro na primeira página" que domina hoje o jornalismo português.
Manuel António Pina 12-12-2011
A ideia de que pessoas com mais de 70 anos só tem direito à vida, que é o que representa um tratamento extremo como a hemodiálise, pagando - independentemente de terem, durante anos e anos, entregue ao Estado parte substancial dos seus rendimentos para garantir o seu direito a assistência na doença - talvez seja aceitável vindo da mesma mente tortuosamente contabilística que em tempos também defendeu a suspensão da democracia. Que mentes dessas tenham púlpito num canal de televisão só se compreende pela política do "monstro na primeira página" que domina hoje o jornalismo português.
O ovo da serprente
Manuel António Pina 12-12-2011
Infiltração
de agentes provocadores em manifestações instigando à violência para
justificar a repressão (o próprio director nacional da PSP confirmou que
"polícias à civil se integraram como manifestantes e provocadores em
funções de defesa pública na manifestação");
divulgação
de calúnias sobre vítimas de repressão, como fez o porta-voz da PSP
anunciando falsamente que um cidadão espancado e detido na manifestação
de 24 de Novembro era "procurado pela Interpol"; intenção do Governo -
para já frustrada pela CNPD por inconstitucional, mas de que o ministro
Miguel Macedo diz "não desistir" - de permitir à Polícia a
vídeo vigilância dos cidadãos e atribuir ao ministro poder absoluto na
matéria sem qualquer fiscalização independente da sua conformidade à
Constituição e às leis; afirmação do director do Observatório de
Segurança de que a Polícia deve respeitar a lei "mas..."; defesa pelo
presidente da comissão governamental para definição do serviço público
de TV do controle da informação "a bem da Nação"; apreensão de
propaganda política...
Já não são apenas as pituitárias daqueles que viveram a experiência do Estado policial salazarista, particularmente sensíveis a certos sinais. Hoje mesmo os que ingenuamente pensam que direitos, liberdades e garantias são direitos adquiridos têm motivos para se interrogar se a suspensão da Democracia preconizada por Manuela Ferreira Leite não estará já em curso.
Já não são apenas as pituitárias daqueles que viveram a experiência do Estado policial salazarista, particularmente sensíveis a certos sinais. Hoje mesmo os que ingenuamente pensam que direitos, liberdades e garantias são direitos adquiridos têm motivos para se interrogar se a suspensão da Democracia preconizada por Manuela Ferreira Leite não estará já em curso.
O português errante
Publicado em 2011-12-29
MANUEL ANTÓNIO PINA
Através do secretário de
Estado José Cesário, o Governo diz-se preocupado com o desemprego de
milhares de portugueses emigrantes em países como, entre outros, o
Luxemburgo, Reino Unido, Suíça ou Andorra. O Governo tem boas razões
para se preocupar. Se toda essa gente resolver regressar a penates, para
onde irá o Governo enxotá-la?
E se os 100 ou 120 mil portugueses (mas o número, admite o secretário de Estado, "pode ser muito superior") que emigraram em 2011- os tais "jovens [e] pessoas que se encontram na fase mais avançada da sua vida activa" que, segundo Passos Coelho, "uma sociedade que se preza não pode desperdiçar" - não encontrarem trabalho nos países de destino e regressarem também? Dir-lhes-á Passos Coelho, como aos professores, que Portugal não é uma sociedade que se preza e passa bem sem eles? Fechar-lhes-á a porta de entrada com a mesma diligência com que lhes abriu a porta de saída? Apelará, como o ministro Miguel Relvas, à sua "visão universalista" e mandá-los-á "ter sucesso na construção [doutro] país"? Ou pedir-lhes-á que esperem até que ele acabe a "democratização da economia" facilitando e embaratecendo os despedimentos, reduzindo férias e feriados e decretando trabalho forçado sem remuneração?
Indesejados no seu próprio país, resta hoje aos portugueses, como ao judeu errante, construir o Portugal futuro com que sonhou Ruy Belo "sobre o leito negro do asfalto da estrada".
E se os 100 ou 120 mil portugueses (mas o número, admite o secretário de Estado, "pode ser muito superior") que emigraram em 2011- os tais "jovens [e] pessoas que se encontram na fase mais avançada da sua vida activa" que, segundo Passos Coelho, "uma sociedade que se preza não pode desperdiçar" - não encontrarem trabalho nos países de destino e regressarem também? Dir-lhes-á Passos Coelho, como aos professores, que Portugal não é uma sociedade que se preza e passa bem sem eles? Fechar-lhes-á a porta de entrada com a mesma diligência com que lhes abriu a porta de saída? Apelará, como o ministro Miguel Relvas, à sua "visão universalista" e mandá-los-á "ter sucesso na construção [doutro] país"? Ou pedir-lhes-á que esperem até que ele acabe a "democratização da economia" facilitando e embaratecendo os despedimentos, reduzindo férias e feriados e decretando trabalho forçado sem remuneração?
Indesejados no seu próprio país, resta hoje aos portugueses, como ao judeu errante, construir o Portugal futuro com que sonhou Ruy Belo "sobre o leito negro do asfalto da estrada".
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