quarta-feira, 28 de setembro de 2022

FC Porto

 


Evito falar de desporto, sobretudo de Futebol, Só que o artigo está com um "cherinho" bairrista, aqui vai ele:

Um jornal lisboeta encarregou-se de anunciar a boa nova na última quinta-feira de setembro de 1893: “Fundou-se no Porto um clube chamado Football Club do Porto, o qual vem preencher a falta que havia no Norte do país de uma associação para os jogadores daquela especialidade. Que o FC Porto apure um grupo rijo de jogadores (…) para animar os desafios de futebol como já são as corridas de bicicletas. Eis o que desejamos”.
129 anos volvidos, o FC Porto continua a representar a cidade, a região e o país como mais ninguém foi capaz de fazer até ao momento, tanto dentro como fora de portas. Graças a sucessivos plantéis recheados de qualidade, equipas técnicas de excelência e corpos diretivos dedicados, o clube nunca deixou de “animar os desafios de futebol” e com esse lema em mente arrancou a todo o gás para quase 13 décadas de história e glória num sem número de desportos.

Se António Nicolau de Almeida foi a figura de proa do movimento associativo de finais do século XIX que deu origem ao clube, em 1906 coube a José Monteiro da Costa a árdua tarefa de o reerguer. Nos primeiros 89 anos de existência, o FC Porto teve equipas humildes compostas por valorosos atletas que contrariaram o poder central em algumas ocasiões. Não as suficientes.
Isso só viria a mudar definitivamente em 1982, com a chegada de Jorge Nuno Pinto da Costa à presidência e de José Maria Pedroto ao comando técnico. Responsável pela conversão dos andrades em Dragões, a dupla que já tinha sido responsável pela quebra do jejum de 19 anos sem o principal título nacional - na altura com Pinto da Costa como diretor do futebol - transformou o clube numa máquina formadora de “grupos rijos de jogadores”, de sócios exigentes e, mais importante do que tudo, ganhadora de títulos.
Tão ganhadora que, quatro décadas volvidas, o emblema da Invicta é o mais bem-sucedido de Portugal. Bicampeão Europeu, foi o único a conquistar a Taça dos Campeões “a cores” e a Liga dos Campeões no atual e dificílimo formato, foi também o único a vencer a Taça UEFA (logo em duas ocasiões), a Supertaça Europeia e a sagrar-se Bicampeão do Mundo na Taça Intercontinental.
Sete troféus internacionais - contra apenas três dos restantes rivais internos, todos na longínqua década de 1960 - já compõem um pecúlio mais do que suficiente para coroar o FC Porto como o rei do futebol luso. Só que os números não ficam por aqui: apesar de a vastíssima maioria da comunicação social e dos adversários nunca o admitirem (e de até o tentarem contrariar com fábulas antigas), os Dragões somam mais 28 títulos do que o Sporting e os mesmos do Benfica.
O presidente responsável pela conquista de 65 dos 82 troféus que atestam a hegemonia azul e branca em Portugal - que também é o mais galardoado do futebol mundial - deixou bem claro qual terá de ser o mote para os próximos 129 anos na última gala dos Dragões de Ouro: “A obra continuará a crescer sempre, porque o FC Porto é eterno e tem uma qualidade fantástica”. Parabéns, Futebol Clube do Porto!

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Em 11 de Setembro de 1973, SALVADOR ALLENDE sofria o golpe de Pinochet no Chile


Digno de um ataque terrorista, o acto instaurou uma ditadura brutal no país

ANDRÉ NOGUEIRA PUBLICADO EM 11/09/2020

Salvador Allende, ex-presidente chileno - Getty Images


Em 1970, o Chile atraiu as atenções do mundo quando uma singularidade histórica ocorreu: um socialista convicto subiu ao poder, através de eleições democráticas. Salvador Allende assumiu o governo do Chile com grande apoio popular, defendendo o socialismo democrático.

E foi o que aconteceu. Oficiais da Marinha e do Exército, com apoio financeiro da CIA e suporte das Forças Armadas dos EUA, e grupos terroristas de extrema-direita aliaram-se para o derrube do Presidente, membro do Partido Socialista (alinhado à Unidade Popular).

 O governo foi marcado por nacionalizações, expropriações legalmente garantidas e pela defesa dos mais pobres. Em plena Guerra Fria, num momento em ocorriam golpes militares anticomunistas na América, Allende tornou-se alvo. Forças golpistas, incluindo um núcleo conservador das Forças Armadas e o intervencionismo norte americano, queriam a cabeça do socialista.

 
Salvador Allende / Crédito: Wikimedia Commons

O golpe ocorreu em 11 de Setembro de 1973 e o maior nome desse movimento foi Augusto Pinochet, que se declararia presidente com o sucesso e também seria responsável por uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina.

O mais curioso, pensando na data em que o episódio ocorreu, é que o ataque ao governo eleito foi digno de um atentado terrorista, mas não é lembrado como tal. O Exército Chileno, com suporte dos EUA, bombardeou o Palácio de La Moneda, sede do governo, e invadiu o edifício em destruição para retirar o presidente.

A junta liderada por Pinochet, então, foi atrás de Allende. E depois de disparos, o embrionário ditador declarou a morte do presidente, levantando suspeitas. O discurso oficial dos golpistas era de suicídio, com um tiro na cabeça usando uma metralhadora AK-47(Kalashnikov), presente de Fidel Castro a Allende. No entanto, durante muito tempo, muitos acreditaram que a sua morte foi um caso de assassinato.

Foi somente em 2011, com uma perícia técnica, que foi comprovada a tese do suicídio, já reconhecida pela família do socialista: Allende sabia que, depois do golpe, a humilhação e a violência do Estado chegariam facilmente a ele. Por isso, optou pelo fim da vida.

Cronologia do último dia de vida de Salvador Allende no Chile

O dia 11 de Setembro é lembrado no Chile pelo golpe de Estado que ocorreu em 1973, onde forças golpistas bombarderam por terra e ar o Palácio presidencial de La Moneda e o então presidente socialista Salvador Allende se suicidou.

No aniversário dos 40 anos do golpe militar no país, confira a cronologia divulgada pela imprensa do último dia de vida do presidente chileno Salvador Allende.

- 6h20
Toca o telefone na residência presidencial da rua Tomás Moro. O presidente Salvador Allende é alertado de que a Marinha se amotinou no porto de Valparaíso.

Depois de desligar, Allende avisa a sua segurança e deixa o Palácio Presidencial de La Moneda, no centro de Santiago. Depois de meses de tensão, nessa terça-feira de 11 de setembro de 1973, as Forças Armadas finalmente se levantaram para derrubá-lo.

Nos principais quartéis do país, porém, a atividade começou pouco depois da meia-noite: as tripulações dos tanques ligaram os motores dos blindados, os pilotos ouviram os 'briefings' de voo, e os generais deram os últimos telefonemas para verificar a subordinação das tropas.

Enquanto seguia para La Moneda, Allende compreende que o Golpe foi antecipado para evitar que conseguisse concretizar seu projeto de convocar um plebiscito, em um esforço desesperado para salvar o governo da Unidade Popular (UP). Com mil dias no poder, a coalizão de esquerda agonizava, após um desgastante confronto com a oposição, formada pela direita e pela democracia-cristã.

O confronto começou no dia de sua vitória eleitoral, em 4 de setembro de 1970, quando prometeu uma revolução socialista 'à la chilena', à qual os Estados Unidos se opuseram diante da ameaça do surgimento de uma 'segunda Cuba'.

- 7h30
Allende entra no Palácio de La Moneda, empunhando a metralhadora AK-47 que tinha ganho de presente do líder cubano Fidel Castro, e com a convicção de que não o tirariam vivo do prédio.

De fato e gravata, Allende organiza a resistência imediatamente e entrega armas aos colaboradores que decidiram permanecer ao seu lado - um grupo de pouco mais de 40 pessoas, entre ministros, amigos e a segurança privada.

Em outro lugar de Santiago, opera o Estado-Maior da rebelião, integrado pelos comandantes das três forças militares: o general Augusto Pinochet, o almirante José Toribio Merino e o general da Força Aérea, Gustavo Leigh, além do chefe de polícia, César Mendoza.

Salvador Allende e a família


- 8h30
É divulgada a primeira declaração do golpe, na qual se exige a rendição de Allende, ordena-se às pessoas que permaneçam em suas casas e determina-se à imprensa 'viciada na UP' que suspenda as actividades, sob o risco de receber 'castigo aéreo e terrestre'.

Dentro do palácio presidencial, Allende permanece sereno e determinado.

"Era uma mistura muito forte e curiosa. É difícil ver uma pessoa que, ao mesmo tempo, tivesse esse grau de serenidade e uma decisão tão clara: imediatamente, começou a organizar as pessoas", contou à AFP a filha Isabel Allende, que o acompanhava nesse dia.

"Ele conversou com seus assessores, secretários, ministros e ajudantes, dizendo-lhes que abandonassem o palácio, que ele não queria mortes desnecessárias e que era importante fazer um relato do que estava acontecendo", completa Isabel.

- 9h15
Começa o ataque. O Exército sublevado abre fogo contra La Moneda.

Das janelas do La Moneda e de alguns edifícios próximos, franco-atiradores disparam contra os soldados.

Quando os ataques se intensificam, Allende reúne aqueles que continuavam combatendo e os convida, novamente, a deixar o palácio.

Salvador Allende en familia.
Beatriz Allende, Luis Fernández, Salvador Allende, Carmen Paz Allende, Gonzalo Meza Allende, Hortensia Bussi, Fernando Tambutti, Isabel Allende y el perro Chahual.


O comando militar comunica-se com Allende, exige a sua rendição e lhe oferece um avião para deixar o país.

"Rendição incondicional, nada de parlamentar. Rendição incondicional!", exige Pinochet, um diálogo captado por rádio amadores.

"Mantém-se a oferta de tirá-lo do país... E o avião cai, velho, quando estiver voando", acrescenta, provocando risos do seu interlocutor, o chefe do Estado-Maior, Patricio Carvajal, que tentava negociar com Allende.

"O presidente não se entrega!", respondeu Allende, que recebe um ultimato dos golpistas: ou se rende, ou La Moneda será bombardeado às 11 da manhã.

Tendo como pano de fundo os disparos dos tanques e o voo rasante dos dois aviões Howker Hunter, Allende entende que o Golpe avança sem trégua e decide divulgar uma última mensagem ao país:

"Não vou renunciar! Colocado num impasse histórico, pagarei com minha vida a lealdade ao povo", diz Allende, com voz firme, mas tranquila.

"E lhes digo que tenho a certeza que a semente que entregaremos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser ceifada definitivamente. Têm a força, poderão nos esmagar, mas não se detêm os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa, e a constroem os povos".

Cartaz em manifestação


"Ele estava a despedir-se, agradecendo aos jovens e às mulheres e a todos aqueles que o apoiaram, mas falou claramente e, ao mesmo tempo, estava a deixar uma mensagem de esperança para nós", disse a filha, Isabel.

- 11h50
Começa o bombardeio aéreo. Dois Hawker Hunters atacam o palácio.

Alguns foguetes explodem no interior do prédio, que começa a pegar fogo e lançar grossas colunas de fumo.

Um pelotão de militares entra no pátio central.

Cercados, os últimos combatentes descem pela larga escadaria do andar superior do La Moneda para se entregar. Nesse instante, ouve-se um disparo.

O líder socialista, de 65 anos,tinha-se suicidado com uma bala, com a metralhadora presenteada por Fidel.

- 14h
É a hora do assalto final. Soldados avançam até o andar superior e, no Salão Independência, caído sobre um sofá, encontram o corpo de Allende. "Missão cumprida. Moneda tomado. Presidente morto", anuncia o comando golpista.

No que Guantánamo os transformou

 

 
Senhor X: “O meu país fez algumas coisas de merda, e eu também as fiz. Odeio-me por isso. E odeio o meu país por me ter tornado neste monstro”

Na guerra ao terrorismo, o Senhor X deveria dominar o prisioneiro Mohamedou Slahi. Torturou-o — e destruiu-se a si próprio. Passados 17 anos, os dois voltaram a falar um com o outro. Este trabalho, publicado pelo semanário alemão Die Zeit, foi o vencedor de um dos European Press Prize 2022 na categoria Distinguished Reporting Award. O 11 de Setembro foi há 21 anos.

Bastian Berbner e John Goetz/Die Zeit(texto) e José Alves (ilustração) 11 de Setembro de 2022


O homem que se autodenominava “Senhor X” em Guantánamo usava um passa-montanhas e óculos de sol espelhados quando torturava. A pessoa que ele estava a torturar não deveria ver a sua cara. Agora, passados 17 anos, o Senhor X está sentado em frente a uma roda de olaria na sua garagem, algures nos Estados Unidos. É um homem calvo com uma barba a ficar grisalha e tatuagens na nuca. As suas mãos, grandes e fortes, moldam um pedaço de barro castanho-acinzentado. A peça não vai ficar muito bonita, isso pode-se já perceber. Ele diz que a sua arte é mesmo assim, sente-se mais inclinado para a fealdade.

O Senhor X reflectiu longa e aprofundadamente sobre se queria mesmo receber jornalistas e falar com eles acerca do que aconteceu naquela altura. Seria a primeira vez que um torturador de Guantánamo falaria publicamente acerca das suas acções. O encontro neste dia de Outubro de 2020 foi precedido de muitos emails. Agora, finalmente, estamos com ele. Para trás está já uma entrevista que durou várias horas e durante a qual o Senhor X nos falou acerca do seu cruel trabalho. Dissemos-lhe que o homem que ele maltratara naquela altura também gostaria de falar com ele. O Senhor X replicou que, por um lado, há 17 anos que anseia por uma conversa dessas, mas que, por outro lado, há 17 anos que a receia imenso. Pediu meia hora para pensar sobre o assunto. Explicou que reflecte muito bem enquanto trabalha o barro.

O homem que gostaria de falar com ele chama-se Mohamedou Ould Slahi e no Verão de 2002 era considerado o prisioneiro mais importante na base militar dos EUA na baía de Guantánamo, em Cuba. Dos quase 800 prisioneiros de lá, e de acordo com o que se sabe, nenhum foi tão brutalmente torturado como ele.

Existem acontecimentos que definem uma biografia. Mesmo que não durem muito tempo em termos de uma vida inteira, neste caso pouco menos de oito semanas, eles possuem um poder que faz com que tudo o que aconteceu anteriormente se dissolva no esquecimento e lançam um feitiço sobre tudo o que se segue depois.

Guardas e um prisioneiro na base militar dos EUA em Guatánamo, em Cuba MARIO TAMA/GETTY IMAGES


Naquela altura, no Verão de 2003, o Senhor X andava pelos seus 30 e pouco anos e era um interrogador no Exército dos Estados Unidos. Pertencia a algo que se denominava Equipa de Projectos Especiais, e cuja missão era obrigar Slahi a falar. Até então, o detido tinha-se mantido teimosamente em silêncio, mas os serviços secretos estavam convencidos de que ele estava na posse de informações valiosas. Talvez até informações que pudessem evitar o próximo grande ataque ou levar até a Osama bin Laden, que era então o terrorista mais procurado em todo o Mundo: o líder da Al-Qaeda, o principal instigador dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001.

A missão da equipa era derrotar o Mal. Para alcançar isso, respondeu e atacou-o com outro Mal.
Provocar o medo

O Senhor X torturava sempre à noite. Em cada noite em que o silêncio de Slahi se mantinha, ele experimentava uma nova crueldade. Afirma que, afinal de contas, a tortura não deixa de ser um processo criativo. Ouvir o Senhor X a descrever o que fez deixa-nos sem fôlego, e por vezes até o próprio Senhor X parece sentir isso quando conta a história. Depois abana a cabeça. Faz uma pausa. Passa a mão pela barba. Contém as lágrimas. E diz: “Meu, nem eu próprio consigo acreditar no que estou a dizer...”

Pela forma como se exprime, não ficamos com a ideia de que tudo aconteceu há muito tempo. De facto, nunca chegou a terminar. O Senhor X diz que raro é o dia em que não pensa em Slahi ou em que Slahi não o persegue em pesadelos. Slahi foi o grande caso na sua vida, no pior sentido da palavra.

Há um momento desse tempo que não apenas se cravou na sua memória, mas que também envenena a sua alma, diz o Senhor X. Nessa noite, dirigiu-se até à sala de interrogatórios onde Slahi, de baixa estatura e muito magro, estava sentado numa cadeira, vestido com o seu fato-macaco cor de laranja, acorrentado a um ilhó de metal no chão. O Senhor X, alto e musculoso, tinha imaginado mais uma novidade. Desta feita, fingiu que se tinha passado dos carretos. Gritou violentamente, atirou cadeiras pela sala, bateu com o punho nas paredes e atirou papéis à cara de Slahi. Slahi tremia dos pés à cabeça.

O Senhor X explica que a razão para nunca se ter esquecido daquele momento não foi o medo que percebeu nos olhos de Slahi, mas sim o facto de ele, o Senhor X, ter gostado de notar esse medo. Olhar para Slahi a tremer, diz, fê-lo sentir como se tivesse um orgasmo.

 Sala de interrogatório na prisão de Guatánamo. Quando aqui estão, os detidos são amarrados a um ilhó cravado no chão Joe Raedle/Getty Images

Convite para tomar chá

Mohamedou Slahi faz hoje 50 anos. Em Dezembro de 2020, dois meses após a nossa visita a casa do Senhor X, encontramo-lo numa praia do oceano Atlântico, as ondas batendo na costa da Mauritânia. Slahi veste uma túnica mauritana e um turbante, ambos da cor do céu que está por cima de nós. Com os olhos semicerrados, perscruta o mar e diz que, se se metesse num barco e navegasse sempre a direito para oeste, acabaria por chegar ao local onde esteve detido durante 14 anos, na costa Sudeste de Cuba.

Slahi está em liberdade há cinco anos. Mas, tal como o Senhor X, não consegue afastar o tempo que passou em Guantánamo. Hoje está de novo a morar em Nouakchott, a capital da Mauritânia, à beira do deserto, o mesmo local onde os EUA o tinham capturado poucas semanas após o 11 de Setembro. Ao contrário de então, ele agora é uma celebridade. É abordado na rua, sai de casa para ir a universidades e tribunas à volta do mundo para denunciar os abusos dos direitos humanos cometidos pelos EUA. Declara que quando fecha os olhos à noite e adormece, por vezes também chega o homem da máscara.

Quando um dos autores deste artigo o visitou pela primeira vez em 2017, Slahi expressou um desejo — gostaria de encontrar os seus torturadores. Por essa altura já ele tinha escrito um livro acerca do tempo que passou em Guantánamo. Na última frase, convidava as pessoas que o haviam torturado a ir tomar chá com ele: “A minha casa está sempre à disposição.”

Nesse primeiro encontro e agora, em Dezembro de 2020, diz que, durante o tempo de torturas em Guantánamo, sentira algo acima de tudo: ódio. Vezes sem conta, imaginava a forma cruel como iria matar o Senhor X. Disse que tinha que o matar, à sua família e a toda a gente que o tinha ajudado. Ele, a sua família e qualquer pessoa que lhe fosse próxima de alguma maneira. Mas depois, na solidão da sua cela, enquanto pensava, rezava e escrevia, percebeu que a vingança não era a solução. Assim, decidiu tentar algo diferente: o perdão.

 Slahi está de novo a morar em Nouakchott, a capital da Mauritânia, à beira do deserto, o mesmo local onde os EUA o tinham capturado poucas semanas após o 11 de Setembro Daouda Corena

No silêncio da sua cela, forçou-se a pensar que aquele homem grande e forte, o Senhor X, era, na realidade, uma criança pequena e frágil. Uma criança a quem ele, Mohamedou Slahi, fazia festas na cabeça e dizia: “Fizeste uma coisa má, mas eu perdoo-te.” O processo de auto-reeducação demorou vários anos. Mas, a certa altura, conta, quando ainda estava sentado na sua cela em Guantánamo, conseguiu convencer-se tanto da sinceridade deste pensamento que efectivamente sentiu a necessidade de perdoar.

Quando Slahi expressou o seu desejo de falar com o Senhor X, disse também que esperava que isso trouxesse paz à sua alma inquieta. Na melhor das hipóteses, ele conseguiria substituir as antigas e dolorosas memórias desse tempo por outras, novas e boas memórias.

E assim se iniciou a nossa busca pelo Senhor X.

Um gentil apreciador de arte

Como se pode conceber um homem que tortura outro? Em arquivos norte-americanos, por exemplo no relatório da investigação levada a efeito pelo Senado, surge uma lista das coisas que o Senhor X fez. Existem descrições de extrema violência psicológica, e, por vezes, física.

Quando estamos agora frente a frente, algo estranho sucede: não conseguimos associar a imagem que todos esses relatos criaram na nossa cabeça ao homem que está sentado à nossa frente. Temos a certeza de que ele é o Senhor X. Ex-colegas dele confirmaram a sua identidade. Mas o Senhor X que encontramos é isto: um gentil apreciador de arte. Um homem instruído, que se interessa por História. De uma forma geral, um tipo bastante íntegro. Após passar alguns dias com ele, não conseguimos escapar à impressão de que ele é também claramente alguém por quem é fácil sentir simpatia.

O Senhor X conta que ocasionalmente convida sem-abrigo para comerem num restaurante e que por vezes chora em frente à televisão quando assiste a reportagens sobre zonas de catástrofe. O facto de ele conseguir ter tanta empatia pelos outros é precisamente a razão pela qual ele era tão bom interrogador, tão bom torturador. Tem que se ser capaz de se colocar no lugar do outro: o que é que lhe causa ainda maior sofrimento? O que é que o faz sentir ainda mais inseguro? Qual é o seu ponto fraco? Mas foi precisamente devido à empatia que ele se desmoronou em consequência do que tinha feito naquela altura.

Pouco após ter deixado Guantánamo, no Inverno de 2003, o Senhor X começou a beber. Não era raro beber três garrafas de vinho tinto por noite. Passava cada vez mais tempo na cama e cada vez falava menos com a sua esposa e os seus filhos. Já quase não conseguia dormir. Ponderou o suicídio. Um médico diagnosticou-lhe um profundo distúrbio de stress pós-traumático. Logo tinha sido o torturador, entre tanta gente, a sofrer do tipo de trauma que seria de esperar encontrar na sua vítima.


Existem muitos estudos acerca do sofrimento psicológico entre as vítimas de torturas. Refugiados da Guerra da Síria, refugiados que foram maltratados em campos na Líbia, prisioneiros uigures na China — em todas estas pessoas foram observadas crescentes depressões, dependências, dificuldades em se concentrarem, problemas com o sono e pensamentos suicidas. O Senhor X também apresentou todos estes sintomas.

Podia-se olhar para o perturbado Senhor X como a personificação do trauma que engoliu todos os Estados Unidos após o 11 de Setembro de 2001. Após essa experiência fundadora, foi precisamente o país que queria defender os valores do Ocidente na guerra contra o terrorismo que traiu esses valores, o Estado de direito, a justiça, a democracia. E, desde essa experiência fundadora, o país tem sido devastado, mais do que nunca, pela omnipresente violência perpetrada por pessoas destroçadas. Assassínios em massa, crimes de ódio. Será que todos os Estados Unidos sofrem também de algum tipo de síndrome de stress pós-traumático?

Diz o Senhor X que, ao longo de 17 anos, tem tentado afastar a culpa que causou a si próprio. Tomou medicamentos, submeteu-se a terapias e procurou outro trabalho. Ao longo de 17 anos, tem tentado reparar os erros que cometeu. Algumas — poucas — daquelas coisas ajudaram-no. Um bocadinho. Mas, na realidade, não o fizeram. Talvez também porque ele, secretamente, ao longo de todos esses anos, soube que, para ficar de bem consigo próprio, teria que fazer uma coisa, e rapidamente: “O correcto seria dizer a Slahi, cara a cara, que lamento o que lhe fiz. Que tinha sido errado.”

Desse ponto de vista, a oferta feita por Slahi, para que falassem um com o outro, que nós, jornalistas, lhe comunicámos, é uma verdadeira dádiva dos céus. A oportunidade de resolver o assunto. Mas existe uma ideia que o Senhor X mantém e que lhe dificulta aceitar a proposta: o Senhor X continua a pensar que Mohamedou Slahi é um terrorista, um dos mais brilhantes na História recente, um homem carismático, um manipulador, um comunicador dotado que já falava quatro línguas — árabe, francês, alemão e inglês — e aprendeu sozinho uma quinta, o espanhol, em Guantánamo.

Cela do Campo Delta da prisão de Guantánamo, onde Slahi passou 14 anos MARK WILSON/GETTY IMAGES


Slahi é provavelmente a pessoa mais esperta que ele alguma vez encontrou, diz o Senhor X. Tão esperto que Slahi conseguiu ludibriar os seus interrogadores, tal como agora consegue fazer com que milhões de pessoas em todo o Mundo acreditem que ele é inocente. O Senhor X afirma que conhece melhor a mente desta pessoa do que a da sua própria mulher. Durante semanas, não fez mais nada do que se colocar no lugar daquele homem, e uma coisa é certa: Slahi é um grande mentiroso.

Em 2010, um juiz de um tribunal federal dos Estados Unidos decretou que Slahi deveria ser libertado, porque as alegadas provas apresentadas contra ele pelo Governo norte-americano não eram nada disso. O Governo apresentou recurso.

Em 2015, foi publicado o livro que Slahi escreveu enquanto estava na prisão: O Diário de Guantánamo [em Portugal, O Mauritano]. Muitas partes foram expurgadas, mas a mensagem é clara: os Estados Unidos torturaram um homem inocente. O livro tornou-se um êxito de vendas.

Em 2016, Slahi foi libertado, após 14 anos detido sem acusações formais. Na Mauritânia, foi recebido como um herói. Em 2019, soube-se que O Diário de Guantánamo ia ser adaptado ao cinema. Jodie Foster e Benedict Cumberbatch iam ser os protagonistas, e o “oscarizado” Kevin Macdonald seria o realizador. Em 2020, o site do jornal britânico The Guardian publicou o trailer de um documentário em que um dos carcereiros de Slahi viaja até à Mauritânia e os antigos inimigos se tornam amigos. Ou parecem amigos, diz o Senhor X, que não acredita em nada dessa “treta de perdão” de Slahi. As cenas do filme — o passeio nas areias do deserto do Sara, Slahi a rir e a ajudar o seu carcereiro a vestir uma túnica mauritana —, tudo isso foi magistralmente encenado por Slahi. Slahi que generosamente perdoa, o decente David que se mostra superior ao corrupto Golias, a lenda de um herói.

Leitura de uma passagem de Guantánamo Diary durante uma manifestação contra a tortura, em Washington, em Janeiro de 2016 Justin Norman/Flickr


É isto que faz com que o Senhor X hesite durante tanto tempo: teme que Slahi também o use para a sua encenação. Poderia mostrar a todo o mundo: “Olhem, não é apenas um insignificante carcereiro que está a pedir desculpa, é também o meu torturador, e eu também lhe perdoo!” Slahi poderia tornar-se um herói ainda maior.

Será a vontade de o Senhor X confrontar a sua vítima mais forte do que o seu receio de ser instrumentalizado?

Sem máscara, sem óculos escuros

O Senhor X acabou de fazer uma jarrinha feia. Agora tem que ficar a secar. Coloca-a de lado, limpa as mãos a uma toalha e mostra um ar sério. Fica em silêncio durante muito tempo e, por fim, diz: “Vou avançar com isto. Oh, meu Deus!...”

A imagem abana, o som oscila, e por um momento a expressão na face do Senhor X mostra que ele espera que a tecnologia o salve da sua coragem. Mas depois a cara que ele tão bem conhece surge em frente a si no monitor do computador — tão magra como antigamente, mas mais velha. Ao homem no monitor, ao contrário do Slahi de 2003, já quase não resta qualquer cabelo. E Slahi agora usa óculos, com armações pretas.

Já é muito tarde na Mauritânia, quase meia-noite, mas Mohamedou Slahi manteve-se acordado. Também ele recebeu uma visita de um elemento da nossa equipa. A partir dos Estados Unidos, temos mantido, através do telefone, Slahi informado ao longo das últimas horas: houve um atraso, o Senhor X precisa de um pouco mais de tempo.

Agora as imagens estão a surgir num monitor na Mauritânia. A barba grisalha, a cabeça calva, as tatuagens na nuca. Mohamedou Slahi olha para a cara do seu verdugo. Sem máscara, sem óculos escuros.

Senhor X: “Senhor Slahi. Como está?”

Mohamedou Slahi: “Como está o senhor?”

Senhor X: “Menos mal, e você?”

Mohamedou Slahi: “Eu estou muito bem.”

Senhor X: “Ainda bem”

Mohamedou Slahi: “Obrigado por perguntar.”

Senhor X: “Sim, senhor. Eu estava com muitas dúvidas em fazer esta chamada. Mas queria explicar-lhe algumas coisas.”

A primeira vez que o Senhor X o viu foi a 22 de Maio de 2003. O Senhor X estava numa sala de observação em Guantánamo, a olhar através de uma janela espelhada no outro lado. Ali, na sala de interrogatório, Slahi estava a ser interrogado por dois agentes do FBI. Ao longo de quase seis meses, tinham falado com ele quase todos os dias — sem o mínimo sucesso. Já tinha sido decidido que dentro de poucos dias os militares iriam tomar conta da situação, ou seja, o Senhor X e os seus colegas.

 Sala de interrogatório em Guatánamo - a primeira vez que o Senhor X viu Slahi foi através de um vidro espelhado numa destas salas Joe Raedle/Getty Images


Havia uma mesa no meio da sala, com os agentes de um lado e Slahi do outro. O FBI tinha trazido bolos. Um deles, alto e louro, e que se via claramente que era o chefe, estava a folhear um Corão e a dizer algo acerca de uma passagem do livro. Então Slahi levantou-se. Estava sem algemas, sem correntes. Caminhou em volta da mesa, retirou o Corão da mão do agente e disse que não, não, ele estava enganado, tinha que ver aquilo desta e daquela maneira. No final, o Senhor X viu os agentes a abraçar Slahi como se fosse um amigo. “Eu nem queria acreditar...”, conta ele.

O agente do FBI que folheara o Corão chamava-se Rob Zydlow. Também falámos com ele. Vive na Califórnia, reformou-se há alguns meses. Considera que “falhanço” é uma palavra demasiado forte. Mas, sim, no caso de Slahi, o seu plano não funcionou. Tentou com boas maneiras, mas mesmo que ele trouxesse bolos caseiros, como acontecera naquele dia, ou hambúrgueres do McDonald’s, ou assistisse a documentários sobre o mundo animal com Slahi ou o deixasse ensinar-lhe árabe, Slahi simplesmente não falava. Tudo o que ele repetia era: “Estou inocente.”

Já Slahi, por seu lado, afirma hoje que o bolo do FBI estava bom, que o documentário de que mais gostou foi sobre o deserto australiano, e que as tentativas de Rob Zydlow para aprender árabe foram simplesmente ridículas. É verdade que os elementos do FBI tinham sido razoavelmente simpáticos com ele ao longo de meses, mas não tinha nada que dar qualquer resposta a esses agentes. Por outro lado, eles tinham que lhe dar a ele algumas explicações. Por que razão os Estados Unidos o tinham capturado?

Slahi não sabia que naquele dia, por trás do vidro, o homem que ele pouco depois iria conhecer sob o nome de Senhor X estava a assistir. Não sabia que no Pentágono havia um documento a passar de gabinete em gabinete, de assinatura em assinatura, até ao secretário de Estado da Defesa Donald Rumsfeld, indicando exemplos de métodos que este homem poderia utilizar para conseguir que o prisioneiro Mohamedou Slahi confessasse. Um documento que delineava um quadro de actuação, mas que, ainda assim, deixava amplo campo para ideias próprias da equipa de torturadores.

Apesar das sessões regulares de turtura, Slahi não falava. Tudo o que ele repetia era: “Estou inocente" JOHN MOORE/GETTY IMAGES



Rob Zydlow diz que sentiu uma verdadeira “febre de caça” no pessoal do Exército que o substituiu.

O Senhor X conta que foi a uma loja do Exército e comprou um macacão azul. Slahi era alguém que conquistava os outros homens, como provara através do seu relacionamento com os agentes do FBI. Agora, e pela sua lógica, Slahi não iria lidar com um ser humano, mas sim com uma figura de um filme de terror.

Na escola secundária, o Senhor X pertencia ao clube de teatro. Ainda joga a Dungeons & Dragons, um jogo de tabuleiro com elfos, orcs e dragões, lê banda desenhada e adora ficção científica. Enquanto os métodos de interrogatório de alguns dos seus colegas de então se revelavam inacreditavelmente aborrecidos — perguntas, perguntas, perguntas —, ele realmente mergulhava nos seus papéis.

Na noite de 8 de Julho de 2003, o Senhor X vestiu o seu macacão azul, botas da tropa pretas, luvas pretas e um passa-montanhas preto, mais óculos de sol espelhados. Levou Slahi para a sala de interrogatórios e acorrentou-o ao ilhó no chão, mas a corrente era tão curta que Slahi apenas se podia manter de pé se ficasse curvado. Depois o Senhor X ligou um leitor de CD e música heavy metal encheu a sala, ensurdecedoramente alta.

Let the bodies hit the floor/ Let the bodies hit the floor/ Let the bodies hit the floor/ Let the bodies hit the floor (Que os corpos caiam no chão, canção da banda norte-americana Drowning Pool)

O Senhor X pôs a canção em repetição, desligou as luzes, ligou uma luz estroboscópica que emitia raios de luz branca cegante, e saiu da sala. Durante algum tempo, recorda, ficou a assistir na sala ao lado. Mas a música estava tão alta que nem conseguia pensar, pelo que foi até ao exterior do edifício fumar um cigarro.

Slahi diz que tentou rezar, refugiar-se nos seus próprios pensamentos. Não falou.

O Senhor X tentou outras músicas. O hino nacional dos Estados Unidos. Um anúncio de comida para gatos que consistia apenas na palavra “miau”. O Senhor X aumentou a temperatura do ar condicionado até as roupas de Slahi ficarem encharcadas de suor. O Senhor X colocou os pés em cima da mesa em frente de Slahi e contou-lhe que tivera um sonho. Nesse sonho, um caixão de madeira de pinho tinha sido enterrado no solo de Guantánamo. O caixão apresentava um número, o 760, que era o número de prisioneiro de Slahi. Depois gritou histericamente, e foi isso que mais tarde não conseguiu esquecer.

Fizesse o que fizesse, Slahi mantinha-se silencioso.

Fotografia de Slahi captada pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha na prisão de Guantánamo

Senhor X: “Para mim é difícil manter esta conversa, pois não estou convencido da sua inocência. Continuo a acreditar que você é um inimigo dos Estados Unidos. Mas o que lhe fizemos foi errado, não há dúvida acerca disso. Ninguém merece nada daquele género.”

Mohamedou Slahi: “Posso assegurar-lhe que nunca fui um inimigo do seu país. Nunca prejudiquei qualquer norte-americano. De facto, nunca prejudiquei ninguém. Nunca.”

Se Mohamedou Slahi era um terrorista, como pensa o Senhor X, ou inocente, como proclama o próprio Slahi, provavelmente nunca será esclarecido. Talvez a verdade esteja a meio caminho, talvez ele fosse apenas um simpatizante da causa. Aquando da procura de actos criminosos concretos, de acções terroristas por parte de Mohamedou Slahi, falámos com muitas pessoas que lhe eram próximas ou que conheciam bem o seu caso. Com agentes do Gabinete Federal para a Protecção da Constituição na Alemanha, onde Slahi residiu durante 11 anos, elementos dos serviços secretos da Mauritânia e dos Estados Unidos, investigadores e vários membros da Equipa de Projectos Especiais. Consultámos arquivos alemães e norte-americanos. Após anos de pesquisa, não encontrámos nada.

A “febre da caça”

Mohamedou Slahi cresceu a duas horas de distância de carro de Nouakchott, nos contrafortes arenosos do Sara. O seu pai cuidava dos camelos, a sua mãe cuidava dos 12 filhos. Ele era um estudante excepcional, tal como o seu primo Mahfouz, que tinha a mesma idade. Quando eram adolescentes, em meados dos anos 1980, os primos partilharam um quarto. Pela noite fora, liam livros acerca do Islão e desejavam juntar-se aos milhares de jovens de todo o mundo muçulmano que se dirigiam ao Afeganistão para combater os infiéis ocupantes soviéticos. Mas eram demasiado pobres para poderem empreender uma tal viagem. E então Slahi ganhou uma bolsa de estudo na Alemanha.

Em 1990, então com 19 anos, Slahi inscreveu-se num curso de Engenharia Electrotécnica em Duisburgo. Cinco anos mais tarde, já licenciado, começou a trabalhar como engenheiro no Instituto de Microelectrónica Fraunhofer. Agora fabricava microchips para aquela conceituada instituição alemã de investigação, ganhando 4000 marcos por mês.

Esse era um dos lados da vida de Mohamedou Slahi. O outro iniciara-se durante os seus estudos.

Ano de 1990: permanência num campo de treino da Al-Qaeda no Afeganistão. Treinos com armas, juramento de obediência ao emir Osama bin Laden. Ano de 1992: segunda viagem ao Afeganistão, onde os islamitas estavam prestes a derrubar o Governo afegão. Slahi foi colocado numa unidade de artilharia. Dois meses depois, regressou à Alemanha porque, como ele mais tarde justificou, tinha ficado desiludido com as lutas intestinas entre os islamitas — não era o reino de Deus na Terra, semelhante ao Paraíso, que ele havia imaginado.

Nessa altura havia ainda alguns pontos de interesse comuns entre a Al-Qaeda e o Ocidente — afinal de contas, o pessoal de Bin Laden tinha ajudado a expulsar do Afeganistão os ocupantes soviéticos.

Quando perguntamos a Slahi como eram as suas relações com a Al-Qaeda em 1992, após o seu regresso à Alemanha, responde: “Esse capítulo da minha vida estava fechado. Cortei todas as ligações. Parei de ler as revistas, deixei de me informar acerca das actividades da Al-Qaeda, já não tinha amigos dentro da organização, não tive mais contactos, com ninguém, nenhum telefonema, nada.”

Se isto fosse verdade, Slahi teria então voltado as costas à organização antes de esta se virar contra os Estados Unidos. Mas isso não é verdade. Slahi manteve-se em contacto: com o seu primo, com quem partilhara um quarto e que, sob o nome de Abu Hafs al-Mauritani, se tinha, entretanto, tornado um homem de confiança próximo de Osama bin Laden — certa vez, o primo até lhe ligou através do telefone por satélite de Bin Laden. Em contacto com um amigo de Duisburgo que esteve envolvido no ataque à sinagoga de Djerba em Abril de 2002. Com outro amigo, que mais tarde foi condenado por ter planeado um ataque na ilha da Reunião. E Slahi, em Outubro de 1999, em Duisburgo, teve três convidados que passaram a noite em sua casa, um dos quais era Ramzi Binalshibh, que mais tarde viria a ser um dos principais obreiros do 11 de Setembro. Binalshibh disse mais tarde aos seus interrogadores norte-americanos que os outros dois visitantes eram dois dos sequestradores dos aviões. Na reunião em Duisburgo, Slahi aconselhou-os a irem para o Afeganistão.


Mohamedou Slahi cresceu a duas horas de distância de carro de Nouakchott, nos contrafortes arenosos do Saara DR


Slahi não cortou com todos os seus contactos. Pelo contrário, a lista dos seus amigos e conhecidos parece um excerto do directório da Al-Qaeda.

Quando perguntamos a Slahi acerca destes contactos, confirma tudo, mas comporta-se como se fosse um insulto nós trazermos à conversa assuntos tão triviais. Eram seus amigos e aquilo em que os seus amigos acreditavam ou faziam não tinha a nada a ver consigo.

Olhando para todos estes contactos e amizades, não é difícil perceber que o Senhor X e os seus colegas tenham sido contagiados com a “febre da caça”. Era difícil de imaginar tudo o que Slahi poderia saber. Mesmo que ele pudesse estar apenas ligeiramente envolvido.

Talvez ele pudesse levar os investigadores até ao seu primo, o homem de confiança de Bin Laden. Suspeitava-se de que o primo e Bin Laden estivessem em fuga juntos.

Quantas vidas poderiam ter sido salvas se ele, finalmente, tivesse revelado tudo?

O Senhor X afirma que na sua equipa sentiam que estavam a lutar na linha da frente da guerra ao terrorismo. Diz que estava ciente de que, se conseguisse sacar algo significativo de Slahi, o Presidente George W. Bush seria informado pessoalmente.

 Em Outubro de 1999, Slahi teve três convidados que passaram a noite em sua casa, em Duisburgo, na Alemanha, um dos quais era Ramzi Binalshibh, que mais tarde viria a ser um dos principais obreiros do 11 de Setembro Reuters

 Durante semanas, o Senhor X deu cabo de Slahi. Sem resultados. Depois surgiu um novo chefe, um homem de nome Richard Zuley, conhecido como Dick. Diz o Senhor X hoje: “O Dick é um cabrão diabólico.” Diz o próprio Richard Zuley: “Tudo o que o Senhor X tinha conseguido arrancar a Slahi era coisa pouca. Slahi tinha a situação totalmente controlada, nós tínhamos que mudar isso.”

Zuley vive agora numa casa em banda na zona Norte de Chicago. Durante anos trabalhou aí como polícia e agora, já reformado, passa muito tempo no aeródromo onde tem guardado o seu pequeno avião. Quando fala acerca de como se encarregou dos interrogatórios de Slahi, sorri: “Não havia então a mínima dúvida sobre quem estava a comandar...”

Zuley sugeriu a Slahi que a mãe dele poderia ser violada se ele não falasse. E, sob as ordens de Zuley, Slahi foi espancado quase até à morte. Aconteceu num dia no final de Agosto de 2003. Quando o Senhor X viu a cara inchada e ensanguentada de Slahi, diz, ficou chocado. Para ele, esta violência física bruta estava para lá do que era admissível e também não se coadunava com a lista de Rumsfeld. O Senhor X questionou o seu chefe — e no mesmo dia foi afastado do caso.

Quando perguntamos a razão disto, Zuley responde: “Empreguei pessoal que era mais eficaz.” Não notamos qualquer sensação de culpa, apenas orgulho por ter conseguido alquebrar Slahi.

Nessa noite Slahi foi colocado noutra cela. “Não havia nada na cela”, relembra Slahi. “Nem janela, nem relógio. Nada para que eu pudesse olhar na parede. Era apenas solidão. Não sei quanto tempo aquilo durou, nem sequer sabia se era dia ou noite, mas, a determinada altura, bati à porta e disse que estava pronto para falar.”

Após meses de silêncio, Slahi agora falava tanto que Zuley pediu que lhe trouxessem papel e canetas, e, mais tarde, um computador. Slahi escreveu que planeara um ataque à Torre CN em Toronto. Nomeou cúmplices. Desenhou organigramas de células terroristas. Agora Slahi diz que foi tudo inventado.

De facto, os serviços secretos rapidamente levantaram dúvidas acerca da veracidade das informações que a equipa de Zuley lhes estava a enviar. Em Novembro de 2002, Zuley fez um teste a Mohamedou Slahi num detector de mentiras. Slahi renegou a sua confissão e a máquina falhou.

 Sob as ordens de Richard Zuley, Slahi foi espancado quase até à morte. Aconteceu num dia no final de Agosto de 2003 John Moore/Getty Images

 Mohamedou Slahi: “Você sabe tão pouco acerca de mim. Aparentemente, o seu Governo forneceu-lhe muito pouca informação…”

Senhor X: “Deixe-me esclarecer uma coisa...”

Mohamedou Slahi: “Por favor, posso terminar o que estava a dizer?”

Senhor X: “Peço desculpa, por favor, continue.”

Mohamedou Slahi: “O procurador militar que devia acusar-me, Stuart Couch, ao princípio tentou pedir a pena de morte para mim, mas depois percebeu que eu era inocente.”

Onde há fumo há fogo?

Stuart Couch tem agora 56 anos e é juiz. Um homem muito bem vestido, com corte de cabelo militar muito curto e um acentuado sotaque sulista. Numa manhã de domingo, em Janeiro de 2021, temos um encontro marcado num hotel de Charlotesville, no estado da Virgínia. Couch fala acerca da sua família cristã e dos tempos que passou como soldado nos Fuzileiros, que o moldaram. Faz um retrato de si próprio como sendo um homem que foi formado por uma forte crença em valores e regras. Regras que exigiram muito dele quando teve que tomar a mais difícil decisão da sua carreira, na Primavera de 2004.

O Governo dos Estados Unidos ordenou-lhe que ele, o procurador militar, acusasse o mais importante prisioneiro na baía de Guantánamo, Mohamedou Ould Slahi. Obviamente que se tratava de um potencial caso de pena de morte, diz Couch. Afinal de contas, concluíra-se que Slahi deveria ter recrutado os posteriores sequestradores para a Al-Qaeda — tudo isto no encontro no seu apartamento em Duisburgo.

Havia muitas provas circunstanciais do envolvimento de Slahi com a Al-Qaeda, nomeadamente as muitas amizades e contactos. Couch deduziu que, com todo aquele fumo, era apenas uma questão de tempo até se encontrar fogo. “O meu avô costumava dizer: ‘Se te deitas com os cães, apanhas pulgas.’ E, caramba, o Slahi deve ter apanhado mesmo muitas pulgas.”

Fotografias de suspeitos pelos ataques de 11 de Setembro divulgadas depois atentados - Slahi aparece à esquerda GETTY IMAGES


Mas Couch não descobriu fogo — sem sequer a mínima prova. Em vez disso, descobriu outra coisa. Durante uma visita a Guantánamo, ouviu música em alto volume proveniente de uma sala de interrogatório. “Let the bodies hit the floor.” Através de uma fresta na porta, viu luzes brilhantes a piscar. Lá dentro, um detido estava acorrentado ao chão em frente a duas colunas de som.

Aquela cena repugnou-o enquanto ser humano e enquanto cristão, afirma. Enquanto procurador, percebeu imediatamente que, se fizessem a mesma coisa a Slahi, iriam ter um grave problema. O que ele dissera ou iria ainda dizer não teria qualquer relevância em tribunal. “Sob tortura, as pessoas dizem qualquer coisa, seja verdade ou não, o que interessa é que parem a tortura”, declara Couch.

Começou a investigar o que estava a acontecer em Guantánamo. Pouco após ter recebido a confissão de Slahi, ficou com uma certeza: ela não valia nada.

Stuart Couch diz que se debateu consigo próprio durante dias. Não avançar com acusações possivelmente significaria que um terrorista se safaria. Consultou o seu padre. Depois, disse aos seus superiores que se iria afastar do processo.

O caso nunca chegou a tribunal. Apesar disso, Slahi foi mantido preso durante mais 12 anos. Só foi libertado em Outubro de 2016, numa das derradeiras decisões da Administração Obama.

Hoje, quando lhe perguntamos se acredita que Slahi era então um terrorista, Stuart Couch responde: “Não sei...”

O Senhor X diz que tem a certeza. Basta olhar para a forma como Slahi comunica. Ele faz joguinhos — nenhum homem inocente faz isso.

De facto, olhando para Slahi a falar com o Senhor X, por vezes ficamos com a impressão de que estamos a observar um político astuto. O Senhor X diz seis vezes que a tortura nunca deveria ter acontecido. Slahi nunca responde a isto. Em vez disso, fala de outras coisas — a sua inocência, críticas à América. Numa das vezes começa a falar acerca de Chalid Sheikh Mohammed, o principal obreiro do 11 de Setembro, que ainda está preso em Guantánamo. Noutra das vezes, sobre a guerra dos Estados Unidos no Afeganistão.


 Mohamedou Slahi: “O procurador militar que devia acusar-me, Stuart Couch, ao princípio tentou pedir a pena de morte para mim, mas depois percebeu que eu era inocente” Daouda Corena


Senhor X: “Não vou dizer nada acerca de Chalid Sheikh Mohammed, nem acerca de política. Apenas posso falar acerca das técnicas que utilizei. Não as deveria ter usado, nunca deveria ter feito aquilo. Você nunca deveria ter sido maltratado. Você nunca deveria ter sido espancado. Nós não somos assim. Eu não sou assim.”

O Senhor X diz a Slahi que fez uma pintura dele, seis anos após aquele dia de Agosto em 2003. Um óleo de Slahi ensanguentado, com um lábio aberto e um olho inchado. Agora, durante a conversa, pede-nos, aos jornalistas, para enviar uma fotografia do quadro para a Mauritânia através do WhatsApp.

Mohamedou Slahi: “Ah, uau. Este prisioneiro no quadro tem muito melhor aspecto do que o verdadeiro prisioneiro de então.” [e ri-se.]

Senhor X: “Você realmente naquele dia não estava com muito bom aspecto. E esta pintura não é para… é para reflectir o que lhe aconteceu naquele dia.”

O Senhor X pintou o quadro quando tinha acabado de se demitir do Exército. A sua síndrome de stress pós-traumático tinha piorado tanto que já não conseguia trabalhar. O álcool já não ajudava, nem os medicamentos. E então surgiu o quadro. Diz que tinha esperança em que a confrontação artística desencadeasse uma catarse. Mas apenas lhe causou sofrimento. Então destruiu o quadro. Apenas existe uma fotografia dele.

Senhor X: “Tenho que viver com esta vergonha. Talvez isto seja uma pequena vitória para si, que eu tenha que viver com a minha conduta...”

Mohamedou Slahi: “Hum, não sei… Sempre tive a impressão de que você era uma pessoa inteligente. E eu achava difícil acreditar que você me pudesse fazer coisas como aquelas.”

 Para além da olaria, uma das ocupações do Senhor X é a pintura - num dos quadros retratou-se como um monstro


Slahi faz exactamente a afirmação que determina toda a vida do Senhor X. Após a arte não lhe ter conseguido dar uma resposta, tentou a ciência. Inscreveu-se num curso de Estudos Criativos na universidade. Estudou como a criatividade é usada para propósitos maléficos, para anúncios a tabaco, armas de destruição maciça, tortura. Leu estudo após estudo em busca de uma explicação para o facto de ser capaz de tanta crueldade. De todas essas leituras, eis o que retirou: a tendência para a crueldade reside em todos os seres humanos. Irá prevalecer se as circunstâncias assim o permitirem. No seu caso, as circunstâncias eram: um país que ansiava por vingança; um Presidente que exigia resultados; um superior que espicaçava os interrogadores.

“O meu país fez algumas coisas de merda, e eu também as fiz”, diz o Senhor X. “Odeio-me por isso. E odeio o meu país por me ter tornado neste monstro.” Constata isto muito calmamente: “O que fiz foi tortura. Totalmente. Não há dúvidas acerca disso...”

O perdão como vingança

Os poucos estudos que existem acerca de pessoas que foram torturadoras sugerem que há dois tipos de verdugos: os que continuam a viver como se nada tivesse acontecido e os outros, que ficam destroçados. Os cientistas desconfiam de que é a forma como o torturador olha para o mundo que determina em que categoria ele se insere. Por exemplo, se uma pessoa tortura acreditando que é moralmente aceitável torturar um indivíduo para potencialmente salvar milhares de outros, como fez Richard Zuley, então ela tenderá a escapar sem cicatrizes. Se, como no caso do Senhor X, ele tortura contrariando a sua própria humanidade, então a vergonha e a culpa terão maior tendência para causar traumas.

Os sintomas muitas vezes assemelham-se aos das vítimas de tortura. E, em alguns casos, ainda uma outra coisa: uma profunda desconfiança face às instituições. Aqueles que foram obrigados a fazer coisas terríveis em nome de um sistema, de uma ideologia, de um país, por vezes perdem a confiança nesse sistema, nessa ideologia, nesse país.

Por outro lado, Mohamedou Slahi, a vítima, conseguiu algo que os terapeutas raramente detectam. As vítimas muitas vezes afundam-se numa situação de desespero e impotência. Slahi quebrou o seu desespero. Tornou-se um actor.

Pode-se ver muitos vídeos das actuações de Slahi na Internet. Os espectadores muitas vezes parecem realmente emocionados quando ele fala de como recebeu um dos seus carcereiros na Mauritânia. A actriz Jodie Foster, que recebeu um Globo de Ouro pelo seu papel de advogada de Slahi no filme O Mauritano, falou acerca dele num depoimento na cerimónia de entrega dos prémios: “Ensinaste-nos tanto, o que significa ser humano. Cheio de alegria de viver. De amor. De perdão. Adoramos-te, Mohamedou Ould Slahi!”

É sempre isto que comove as pessoas, é por isto que elas o admiram: que ele esteja disposto e seja capaz de perdoar.

Slahi e um dos guardas que o vigiava em Guatánamo, que acedeu ao convite para o visitar na Mauritânia


De certa forma, diz Slahi numa das nossas entrevistas na Mauritânia, para ele o perdão é também uma forma de vingança. Ele está a vingar-se dos seus carrascos e de todos os que lutaram na guerra norte-americana contra o terrorismo durante 20 anos: em frente a todo o mundo, expõe como diabólicos aqueles que pensavam que eram os bons. E apresenta-se a si próprio, o suposto diabo, como sendo o bonzinho.

Mohamedou Slahi: “Quero dizer-lhe isto: eu perdoo-lhe, tal como perdoo a todos aqueles que me causaram sofrimento. Perdoo a todos os norte-americanos…”

Senhor X: “Está bem...”

Mohamedou Slahi: “… do fundo do meu coração. Quero viver em paz com vocês.”

Senhor X: “Para mim é importante frisar que eu não pedi o seu perdão. Eu tenho é que perdoar a mim mesmo.”

Isto não está a resultar para o Senhor X, que afasta Slahi. Os dois não encontram um ponto comum. Segue-se uma última tentativa, Slahi experimenta outro tema.

Mohamedou Slahi: “Como se sente hoje? É casado? Tem filhos?”

Senhor X: “Não vou falar acerca da minha família ou de onde vivo, do que faço ou do que não faço. As coisas são assim, camarada.”

A conversa durou 18 minutos e 46 segundos e termina em frustração para ambos os lados.

Mohamedou Slahi: “De qualquer forma, desejo-lhe tudo de bom.”

Senhor X: “Desejo-lhe o mesmo.”

Mohamedou Slahi: “Acredito que você é aquilo que faz. Perdoo-lhe do fundo do meu coração, mesmo que não mo peça.”

Senhor X: “Não faz mal. Não tenho mais nada para lhe dizer. Adeus, senhor Slahi.”

Mohamedou Slahi: “Adeus.”

Quando a videochamada termina, os dois continuam sem se reconciliar, o agressor fraco e com dúvidas, e a vítima forte.

Quando uma pessoa tortura outra, trata-se de uma situação íntima. Há lágrimas, gritos, dor, medo, nudez. Um torturador vê coisas que normalmente apenas um cônjuge vê — ou nem isso. O Senhor X e Mohamedou Slahi são, ao mesmo tempo, íntimos e estranhos. Sabem tudo o que há a saber acerca do outro — e, simultaneamente, não sabem nada. Nesta conversa, em que parece que não têm nada em comum, fica claro que existe uma coisa que eles, de facto, partilham: oito semanas em Guantánamo no Verão de 2003 transformaram-nos naquilo que são hoje.

Mohamedou Slahi vive essencialmente da sua história, daquilo que lhe fizeram. O seu sofrimento não lhe trouxe apenas dor e pesadelos, mas também riqueza e prestígio. Casou com uma advogada de direitos humanos que trabalhava em Guantánamo e teve um filho com ela. Deu a volta ao seu destino.

Na vida do Senhor X, quase tudo seguiu no sentido oposto. Já não vota no Partido Republicano, como costumava, mas sim nos democratas. Já não é a favor da pena de morte, mas contra ela. Já não tem sequer a certeza de se quer continuar a viver nos Estados Unidos da América e está a pensar em emigrar.

O Senhor X passou muitos anos a ensinar técnicas de interrogatório a jovens soldados e agentes do FBI. No começo de cada curso havia sempre alguém que afirmava: “A tortura deve ser permitida.” Ele respondia: “Não, absolutamente, não. A tortura cobra um preço elevado. Não apenas à pessoa que a sofre, mas também àquela que a exerce”. Depois, às vezes, falava acerca de si próprio.

Um dos autores deste trabalho, John Goetz, é jornalista de investigação na NDR, estação do serviço público de radiotelevisão da Alemanha. Já tinha feito peças sobre Mohamedou Slahi em 2008. Após Slahi ter sido libertado de Guantánamo em 2016, Goetz visitou-o na Mauritânia. Slahi comunicou-lhe então o desejo de se encontrar com os seus torturadores. Goetz saiu em busca destes e descobriu, entre outros, o homem que Slahi indicava como o seu principal carrasco: o Senhor X. Bastian Berbner, editor do semanário Die Zeit, juntou-se-lhe na pesquisa em 2021. Seguiram-se deslocações às moradas de Slahi e do Senhor X, bem como entrevistas com investigadores, elementos dos serviços secretos e membros da equipa de tortura de Guantánamo. A reportagem saiu no dia 2 de Setembro de 2021 no Die Zeit.

domingo, 11 de setembro de 2022

Barbara Ehrenreich (1941-2022), a jornalista e activista que desafiou o sonho americano


Barbara Ehrenreich durante uma conferência em Pasadena, Califórnia, em 2006. A escritora tinha 81 anos FREDERICK M. BROWN/GETTY IMAGES

 
Escreveu mais de 20 livros sobre as injustiças sociais e as fragilidades do sistema de saúde norte-americano com o objectivo de dar voz às pessoas desfavorecidas. “Como jornalista, procuro a verdade. Mas, enquanto pessoa moral, sou também obrigada a fazer qualquer coisa quanto a isso”, dizia Barbara Ehrenreich.


Nina Muschketat 11 de Setembro de 2022



O que via na América não lhe agradava e não foi capaz de guardar os seus pensamentos “sombrios e furiosos” só para si mesma. Ao longo de meio século, Barbara Ehrenreich escreveu sobre o seu país enquanto activista política e feminista, apontou o dedo, sugeriu melhorias, moveu pessoas. Não descansou até ao dia em que, pela primeira vez, não teve hipótese de contra-argumentar — mas é provável que tenha preferido assim, uma vez que há anos que se achava “velha o suficiente para morrer” e vinha a criticar a relutância da sociedade em aceitar a inevitabilidade da morte. A jornalista e activista morreu no passado dia 1 de Setembro num hospital na Virgínia, depois de um AVC, confirmou a sua filha, Rosa Brooks. Tinha 81 anos.

Foi uma vida de luta. Pelos pobres, pelas mulheres, pelos trabalhadores explorados, pelas pessoas “normais” que vivem iludidas pelo mundo de infinitas oportunidades evocado pelo “sonho americano”. Barbara Ehrenreich quis dar voz a estas pessoas, pelo que fez das suas palavras enquanto jornalista (e também doutorada em Biologia Celular) a sua principal arma.

Escreveu mais de 20 livros sobre as injustiças sociais nos EUA e as fragilidades do sistema de saúde norte-americano, mas foi com Nickel and Dimed: On (Not) Getting By in America (2001) que alcançou o maior sucesso. Com ele mostrou como estava disposta a sentir o que outros sofriam para poder retratá-lo com a maior acuidade possível: questionando-se sobre a forma como os americanos sobreviviam com um salário mínimo de sete dólares por hora, Ehrenreich (que na altura trabalhava para a revista Harper) resolveu vestir a pele de empregada de mesa ou de limpeza, ou ainda de funcionária de supermercado.

Três anos depois, saía o resultado do seu trabalho, cuja conclusão era clara: são necessários pelo menos dois destes empregos — que lhe “absorveram” toda a sua “energia” e “intelecto”, notou no livro —, em simultâneo, para se conseguir ganhar a vida. “Um emprego não é necessariamente a cura para pobreza”, diria mais tarde, em entrevista ao canal de televisão Democracy Now.

 Barbara Ehrenreich em 2001. A jornalista criticava a relutância da sociedade contemporânea em aceitar a inevitabilidade da morte Bryan Chan/Los Angeles Times via Getty Images


“Muitas pessoas elogiaram-me pela minha coragem por ter feito isto, ao que apenas podia responder: ‘Milhões de pessoas fazem este tipo de trabalho todos os dias durante toda a sua vida, não reparou neles?’”, afirmou quando recebeu, em 2018, o Prémio Erasmus, que distingue uma pessoa ou instituição pelo seu contributo nas áreas das humanidades, ciências sociais ou artes. O livro acabou por impulsionar o movimento social nos EUA em prol de salários melhores.

Na verdade, esta vida de classe operária que viveu enquanto jornalista infiltrada não lhe era estranha, uma vez que cresceu, em Butte, Montana, com uma mãe que se ocupava das tarefas domésticas e um pai que trabalhava numa mina de cobre. Mais tarde, porém, este tirou um doutoramento em Metalurgia e chegou ao cargo de director de investigação num instituto em Massachusetts, obrigando a família a mudar-se por várias vezes. “Dificilmente posso reivindicar quaisquer raízes geográficas”, escreveu a autora no seu site oficial.

Depois de sair do Reed College, em Portland, em 1963, Barbara Ehrenreich doutorou-se em Biologia Celular na Universidade Rockefeller, em Nova Iorque, onde conheceu John Ehrenreich, o seu primeiro marido.

Manteve-se ainda alguns anos no mundo académico enquanto professora universitária. Mas já aqui mostrava sinais da sua faceta activista e feminista, falando com frequência sobre temas como as condições precárias das clínicas públicas em Nova Iorque, com as quais se deparara durante o nascimento da sua filha Rosa, em 1970. A falta de uma boa “rede de segurança, infra-estruturas sociais e preparação para emergências” torna os americanos “vulneráveis”, apontaria 50 anos depois, em entrevista à revista New Yorker.

 O rei Willem-Alexander da Holanda e Barbara Ehrenreich, que foi reconhecida em 2018 com o Erasmus Prize Patrick van Katwijk/Getty Images

A partir de 1974 dedicou-se exclusivamente à escrita, sempre a pensar nos outros. “Assim, para mim, sentar-me todo o dia a uma secretária não era apenas um privilégio, mas um dever: algo que eu devia a todas aquelas pessoas na minha vida, vivas e mortas, que tinham muito mais a dizer do que alguém alguma vez ouviu”, escreveu na introdução da obra Nickel and Dimed.

Além dos mais de 20 livros, também publicou ensaios e artigos no New York Times, na The Washington Post Magazine, The Atlantic ou Harper, cruzando sempre o jornalismo com o activismo. “Como jornalista, procuro a verdade. Mas, enquanto pessoa moral, sou também obrigada a fazer qualquer coisa quanto a isso”, lê-se no seu site.

Recentemente, criou uma plataforma, o Economic Hardship Reporting Project, para que as pessoas possam erguer a sua própria voz, facultando a publicação de artigos e fornecendo ajuda financeira a profissionais mais necessitados.

Desde 2000, quando foi diagnosticada com cancro da mama, que a saúde de Barbara Ehrenreich se vinha a deteriorar. Recusava “aceitar uma vida medicada”, escreveu em 2018, citada pelo Washington Post, o que vai ao encontro do seu livro Natural Causes, publicado no mesmo ano. Como explicou numa entrevista à PBS NewsHour, “passamos tanto tempo a prolongar a nossa vida, ou a tentar prolongá-la, que ficamos sem tempo para vivê-la”.

Por duas vezes se casou e divorciou. Barbara Ehrenreich, que curiosamente manteve o apelido do primeiro marido, deixa dois filhos, três netos e um livro a meio sobre a evolução do narcisismo.

E um repto para os que ainda têm voz darem continuidade à sua lucidez e trabalho em prol da mudança. “Podem honrar a sua memória amando-se uns aos outros e lutando que nem loucos”, apelou o seu filho Ben Ehrenreich, também jornalista.

Eu não tenho que pedir desculpas pelo crime de Wiriamu

 

Wiriamu

   A culpabilização colectiva por actos de uma ditadura em que os portugueses não foram tidos nem achados só serve para desculpabilizar os verdadeiros culpados.



José Pacheco Pereira 10 de Setembro de 2022

O pedido de desculpas de António Costa aos moçambicanos pelo massacre de Wiriamu pareceu-me bem no sentido geral do acto, não na sua forma. Wiriamu foi um crime de guerra que nunca deve ser esquecido nem subestimado, pelo qual a justiça devia ter funcionado punindo os culpados e reparando as vítimas. Como isso nunca foi feito, devia sê-lo mesmo hoje, porque esses crimes não prescrevem. Acresce que a memória inscrita na história escolar e mediática não pode tratar a Guerra Colonial como um acontecimento secundário na nossa história recente, mas sim um momento particularmente cruel da nossa história, num país que se gaba vezes de mais de ter “brandos costumes”.

No entanto, tenho muitas objecções quanto à forma e em particular ao facto de o pedido de desculpas ser feito por um governante da democracia em nome de Portugal. Para além de ser muito avesso a pedidos de desculpas pela história — por exemplo, pronunciei-me contra o pedido de desculpas da Assembleia pela expulsão manuelina dos judeus quando ninguém se lembra de que, pelos mesmos critérios, devíamos pedir desculpa aos árabes pela Reconquista e por aí adiante —, o sujeito do pedido nunca devia ser “Portugal” ou os “portugueses”. Eu sou português e não tenho nenhuma desculpa a pedir, combati a Guerra Colonial no plano político, e nunca iria fazer serviço militar, engrossando se fosse necessário a clandestinidade ou o exílio, e sobre isso nunca tive qualquer hesitação e contava com isso na minha vida com toda a naturalidade. Nem por pensamentos, nem por palavras, nem por obras tenho qualquer culpa pela Guerra Colonial, e nem por isso sou menos português e menos patriota.

A culpabilização genérica de um país ou de um povo como se existisse uma espécie de culpa colectiva que mancha todos, seja qual for a sua participação nos actos de um crime, pode ser politicamente útil, e como tal tem sido utilizada, mas é inaceitável. Mesmo perante casos em que mais a culpa se aproximou de ser quase de todos, como aconteceu com a Alemanha nazi, não teria sido possível construir uma Alemanha diferente, quer na RDA, quer na RFA, sem ultrapassar essa ideia da culpa colectiva. Se se puniu devidamente os culpados genuínos, é outra questão, e não o fazer, como aconteceu na Alemanha e noutros países, mantém uma sociedade doente pelo tempo em que as gerações que viveram os eventos do Mal ainda estão vivas.

No caso português, acresce que a culpabilização colectiva por actos de uma ditadura em que os portugueses não foram tidos nem achados só serve para desculpabilizar os verdadeiros culpados. Costa devia ter dito com mais clareza que se há culpa é da ditadura do Estado Novo, de Salazar e Caetano, da elite militar que mantinha o regime e a guerra, dos interesses económicos e sociais que o sustentavam. Mesmo em relação aos milhares de soldados que combateram, muitos dos quais não tinham condições para se exilarem como acontecia com os estudantes e os intelectuais, não tem sentido qualquer atribuição de uma culpa colectiva. Os seus mortos em combate são, tanto como as vítimas que fizeram, numa guerra de que não tinham qualquer responsabilidade, merecedores da nossa honra, como os combatentes dos movimentos de libertação merecem as honras dos seus países.

Repito: tudo isto só vai ao sítio quando desaparecerem as gerações que viveram directamente os acontecimentos, mas o mal-estar “histórico” vai demorar mais a passar. O facto de o regime ter sido derrubado por militares que tinham participado na Guerra Colonial ainda reforça mais uma ambiguidade que dura até aos tempos de hoje. Nesse sentido, o gesto de Costa tem um efeito positivo, mas não acaba com a história mal resolvida do colonialismo, do racismo e da guerra.

A história do colonialismo português foi de violência do primeiro ao último dia, e assentou, como todas as experiências coloniais, no racismo, na superioridade “civilizacional” dos brancos. A negação dessa violência permanece como um instrumento de legitimação do “modo português” de um colonialismo brando, sem racismo, e benévolo para os povos africanos das colónias, o que nunca aconteceu. O mal-estar e a dificuldade em defrontar a realidade da experiência colonial são endémicos na sociedade portuguesa. A reacção colonialista e “patriótica” do Chega e a habitual desculpa do que aconteceu em Wiriamu com a simetria das violências dos movimentos de libertação contra portugueses é a parte mais visível e fácil de contestar, mas a permanência do colonialismo e do racismo como nossa doença actual vai muito mais fundo. A história deixa mais marcas do que muitas vezes admitimos. Tal se pode ver no modo como se trata o Brasil e a sua colonização e independência, a manipulação de biografias como a de Adriano Moreira, o “escândalo” da faixa “não foi descobrimento mas matança” numa exposição de arte, por aí adiante.

Resumindo: culpa dos portugueses não; doença na sua memória, sim. Pode-se argumentar que essa memória perversa do colonialismo e o racismo latente nos nossos dias desvalorizam os nossos massacres nas colónias. Sim, é verdade, mas, se queremos defrontar a perversidade da memória e por aí combater o racismo, não podemos começar por a tornar uma culpa colectiva que não foi, nem alimentar a indústria da culpa que se destina a ser usada como instrumento na política de hoje.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Dedicado a Beatriz Lebre

Nick Cave

A mãe de Beatriz Lebre escreveu uma carta a Nick Cave. Deu passos em volta daquilo que a filha amava. É uma forma de a encontrar.



Carmo Afonso 5 de Setembro de 2022

Quando acontece uma tragédia como a que aconteceu a Beatriz Lebre, assassinada por um colega da faculdade em 2020, há um derramamento de matéria corrosiva.

Para os mais próximos o efeito persiste. A intensidade da dor e a força do amor alimentam-se mutuamente e adiam a despedida. Torna-se preciso manter viva a ligação a quem já partiu. Saberão muitos do que estou a falar. Nick Cave também sabe. Perdeu dois filhos.

Foi através do The Red Hand Files – a plataforma onde Nick Cave recebe cartas e escritos dos seus admiradores e, aqui o detalhe que a torna especial, onde os lê e lhes responde – que recebeu uma carta da mãe de Beatriz Lebre. Tem existido algum mistério à volta da plataforma: saber se é mesmo Nick Cave o interlocutor das pessoas que tentam estabelecer contacto com ele. Sim, foi a resposta que Nick Cave deu este sábado à noite no festival Meo Kalorama.

Nick Cave criou a plataforma depois da morte do seu filho, Arthur, e, diz-se, na sequência de muitas cartas que recebeu de pessoas que também estavam de luto e que queriam falar sobre isso. O mote é “You can ask me anything. There will be no moderator. This will be between you and me. Let´s see what happens. Much love, Nick.”


Visitem o site: https://www.theredhandfiles.com/hard-to-find-happiness/. São diálogos de dor e de filosofia, mas também algumas notas leves. São publicadas apenas as perguntas (ou escritos; alguns não contêm nenhuma pergunta) às quais Nick Cave responde. E é interessante verificar que não está publicada a carta da mãe de Beatriz Lebre. Interessante porque demonstra que, mesmo o que não é respondido e publicado, é lido.

E recomendo algumas publicações. Vão à número 23, a carta de um homem que perdeu a mulher e ficou, sozinho, com uma filha de dois anos. Diz que quer ser feliz, até porque sabe que isso é importante para a filha, mas que não consegue. A pergunta que faz a Nick Cave, e a resposta dele, merecem leitura. Já agora vão depois à publicação número 187: uma segunda carta do mesmo homem, três anos depois. Conseguiu.

A mãe de Beatriz Lebre escreveu uma carta a Nick Cave. Deu passos em volta daquilo que a filha amava. É uma forma de a encontrar. É importante fazer alguma coisa, uma ação, para redimir o luto. Poucos terão conhecido Beatriz Lebre e não faço parte desse grupo. Agora muitos mais saberão da sua história e saberão que existe uma mãe que não desiste de o ser. Conheço e, mesmo sem conhecer, acompanho mais mães assim. Não dão tréguas na luta contra a lei do esquecimento.

“Esta canção é dedicada a Beatriz Lebre. Recebi uma carta muito bonita, no The Red Hand Files, da sua mãe. Ela disse na carta que esta é uma canção que ela amava muito. Isto é para a Beatriz.” Estas foram as palavras de Nick Cave, no sábado à noite, antes de cantar Into my arms, música com que encerrou aquele que foi o último concerto da tournée. É um hino para os que gostam de Nick Cave, uma música e uma letra que condensam a fórmula que Nick Cave tem de aceder às profundezas das pessoas.

Para a maioria dos artistas, sobretudo os que estão em processo criativo, cantar “aquela canção”, ou tocar “aquela música”, não é estimulante ou prazeroso. É o que acontece com o Creep dos Radiohead ou com o Parola do Donato Dozzy. Vamos lá ver: cada artista ou banda tem o seu próprio Into my arms e, normalmente, muito pouca vontade de o repetir em palco. Não é o caso de Nick Cave. Canta canções para a sua audiência. As canções são instrumentos na relação que estabelece com o seu público.

Diz quem lá esteve que, no sábado à noite, Nick Cave fez a sua magia. A dedicatória a Beatriz Lebre representa uma dedicatória à mãe dela e a todas as pessoas que vivem um luto. A música também pode servir como salvação; a história de Beatriz Lebre não teve um final feliz, mas agora Nick Cave acrescentou-lhe um capítulo.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico