domingo, 11 de setembro de 2022

Eu não tenho que pedir desculpas pelo crime de Wiriamu

 

Wiriamu

   A culpabilização colectiva por actos de uma ditadura em que os portugueses não foram tidos nem achados só serve para desculpabilizar os verdadeiros culpados.



José Pacheco Pereira 10 de Setembro de 2022

O pedido de desculpas de António Costa aos moçambicanos pelo massacre de Wiriamu pareceu-me bem no sentido geral do acto, não na sua forma. Wiriamu foi um crime de guerra que nunca deve ser esquecido nem subestimado, pelo qual a justiça devia ter funcionado punindo os culpados e reparando as vítimas. Como isso nunca foi feito, devia sê-lo mesmo hoje, porque esses crimes não prescrevem. Acresce que a memória inscrita na história escolar e mediática não pode tratar a Guerra Colonial como um acontecimento secundário na nossa história recente, mas sim um momento particularmente cruel da nossa história, num país que se gaba vezes de mais de ter “brandos costumes”.

No entanto, tenho muitas objecções quanto à forma e em particular ao facto de o pedido de desculpas ser feito por um governante da democracia em nome de Portugal. Para além de ser muito avesso a pedidos de desculpas pela história — por exemplo, pronunciei-me contra o pedido de desculpas da Assembleia pela expulsão manuelina dos judeus quando ninguém se lembra de que, pelos mesmos critérios, devíamos pedir desculpa aos árabes pela Reconquista e por aí adiante —, o sujeito do pedido nunca devia ser “Portugal” ou os “portugueses”. Eu sou português e não tenho nenhuma desculpa a pedir, combati a Guerra Colonial no plano político, e nunca iria fazer serviço militar, engrossando se fosse necessário a clandestinidade ou o exílio, e sobre isso nunca tive qualquer hesitação e contava com isso na minha vida com toda a naturalidade. Nem por pensamentos, nem por palavras, nem por obras tenho qualquer culpa pela Guerra Colonial, e nem por isso sou menos português e menos patriota.

A culpabilização genérica de um país ou de um povo como se existisse uma espécie de culpa colectiva que mancha todos, seja qual for a sua participação nos actos de um crime, pode ser politicamente útil, e como tal tem sido utilizada, mas é inaceitável. Mesmo perante casos em que mais a culpa se aproximou de ser quase de todos, como aconteceu com a Alemanha nazi, não teria sido possível construir uma Alemanha diferente, quer na RDA, quer na RFA, sem ultrapassar essa ideia da culpa colectiva. Se se puniu devidamente os culpados genuínos, é outra questão, e não o fazer, como aconteceu na Alemanha e noutros países, mantém uma sociedade doente pelo tempo em que as gerações que viveram os eventos do Mal ainda estão vivas.

No caso português, acresce que a culpabilização colectiva por actos de uma ditadura em que os portugueses não foram tidos nem achados só serve para desculpabilizar os verdadeiros culpados. Costa devia ter dito com mais clareza que se há culpa é da ditadura do Estado Novo, de Salazar e Caetano, da elite militar que mantinha o regime e a guerra, dos interesses económicos e sociais que o sustentavam. Mesmo em relação aos milhares de soldados que combateram, muitos dos quais não tinham condições para se exilarem como acontecia com os estudantes e os intelectuais, não tem sentido qualquer atribuição de uma culpa colectiva. Os seus mortos em combate são, tanto como as vítimas que fizeram, numa guerra de que não tinham qualquer responsabilidade, merecedores da nossa honra, como os combatentes dos movimentos de libertação merecem as honras dos seus países.

Repito: tudo isto só vai ao sítio quando desaparecerem as gerações que viveram directamente os acontecimentos, mas o mal-estar “histórico” vai demorar mais a passar. O facto de o regime ter sido derrubado por militares que tinham participado na Guerra Colonial ainda reforça mais uma ambiguidade que dura até aos tempos de hoje. Nesse sentido, o gesto de Costa tem um efeito positivo, mas não acaba com a história mal resolvida do colonialismo, do racismo e da guerra.

A história do colonialismo português foi de violência do primeiro ao último dia, e assentou, como todas as experiências coloniais, no racismo, na superioridade “civilizacional” dos brancos. A negação dessa violência permanece como um instrumento de legitimação do “modo português” de um colonialismo brando, sem racismo, e benévolo para os povos africanos das colónias, o que nunca aconteceu. O mal-estar e a dificuldade em defrontar a realidade da experiência colonial são endémicos na sociedade portuguesa. A reacção colonialista e “patriótica” do Chega e a habitual desculpa do que aconteceu em Wiriamu com a simetria das violências dos movimentos de libertação contra portugueses é a parte mais visível e fácil de contestar, mas a permanência do colonialismo e do racismo como nossa doença actual vai muito mais fundo. A história deixa mais marcas do que muitas vezes admitimos. Tal se pode ver no modo como se trata o Brasil e a sua colonização e independência, a manipulação de biografias como a de Adriano Moreira, o “escândalo” da faixa “não foi descobrimento mas matança” numa exposição de arte, por aí adiante.

Resumindo: culpa dos portugueses não; doença na sua memória, sim. Pode-se argumentar que essa memória perversa do colonialismo e o racismo latente nos nossos dias desvalorizam os nossos massacres nas colónias. Sim, é verdade, mas, se queremos defrontar a perversidade da memória e por aí combater o racismo, não podemos começar por a tornar uma culpa colectiva que não foi, nem alimentar a indústria da culpa que se destina a ser usada como instrumento na política de hoje.

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