quinta-feira, 26 de julho de 2018

10 coisas que precisa saber sobre o plástico (incluindo os mitos em que provavelmente acredita)

Milos Bicanski

Luis Ribeiro

Abriu a caça ao plástico descartável. As palhinhas são a face mais visível da investida – multiplicam-se as iniciativas para banir estes pequenos objectos corriqueiros. Mas o seu impacto no gigantesco imbróglio que é o plástico nos oceanos é negligenciável. E vão passando pelos pingos da chuva os maiores culpados: as redes de pesca, por exemplo, que constituem, de acordo com os estudos mais conservadores, um quinto de todo o plástico que chega aos mares. Esta desproporção é um dos muitos equívocos que poluem a discussão do tema. Da origem do lixo às medidas ambientais tidas como um sucesso, como a taxa sobre os sacos de plástico, desmontamos dez ideias feitas sobre este flagelo.

1 - OS HÁBITOS DE CONSUMO DO MUNDO OCIDENTAL SÃO OS CULPADOS

Mais de metade de todo o plástico que vai parar ao mar tem origem em apenas cinco países: China, Indonésia, Filipinas, Tailândia e Vietname. Só a China contribui com 28% do total mundial, apesar de ter “apenas” 18% da população do planeta. Estes cálculos fazem parte de um estudo do McKinsey Center for Business and Environment para a organização não-governamental do ambiente Ocean Conservancy. De acordo com outro estudo, publicado na revista científica Environmental Science & Technology, liderado por um hidrogeólogo do Helmholtz Center for Environmental Research, de Leipzig, na Alemanha, só o rio chinês Yangtzé contribui com 1,5 milhões do total de oito milhões de toneladas que vão parar aos oceanos todos os anos (no caso, através do mar Amarelo). Segundo o investigador principal, Christian Schmidt, cerca de um quarto de todo o plástico marinho tem origem em rios, e dez rios – oito deles na Ásia e dois em África – são responsáveis por 93% dessas descargas de plástico no mar.

2 - O PLÁSTICO NOS OCEANOS NÃO É A GRANDE QUESTÃO

Todos os anos, cerca de oito milhões de toneladas de plástico vão parar aos mares, segundo as contas de Jenna Jambeck, professora de Engenharia Ambiental da Universidade da Geórgia, EUA, num estudo publicado na revista Science em 2015. Por uma questão de perspetiva, diga-se que a Grande Pirâmide de Gizé pesa 6,5 milhões de toneladas. Estes oito milhões correspondem a um quarto do total de plástico produzido anualmente no planeta (31,9 milhões de toneladas). Não é possível saber com exactidão o número de animais marinhos que morrem por ingerirem este material, ou por ficarem presos nele. Já foram encontradas vítimas de aproximadamente 700 espécies diferentes, entre aves, tartarugas e mamíferos, com algumas associações ambientalistas a arriscarem números que vão de cem mil a cem milhões de animais mortos por ano. Ainda este mês, foi notícia por todo o mundo a baleia-piloto que deu à costa na Tailândia, morta, com 80 sacos de plástico no estômago.

3 - AS PALHINHAS SÃO O PROBLEMA – AFINAL, CADA PESSOA USA 1,5 A DUAS POR DIA

O vídeo de uma tartaruga com uma palhinha enfiada numa narina tornou-se viral, virando as atenções para este objeto corriqueiro, mas os números avançados sobre as palhinhas são pouco fiáveis. Têm sido divulgadas estatísticas espantosas – e que estão a servir de justificação para várias campanhas que pretendem banir as palhinhas. Nos EUA, diz-se, são 500 milhões por dia (o que dá 1,5 palhinhas diárias por pessoa); no Reino Unido, as estimativas vão dos 8,5 mil milhões aos 42 mil milhões por ano (neste caso, daria quase duas palhinhas por pessoa, diariamente). A verdade é que não fazemos a mais pequena ideia da quantidade real. Os 500 milhões dos EUA baseiam-se no trabalho de uma criança de nove anos, que ligou para alguns fabricantes e extrapolou os resultados. As estatísticas inglesas são ambas – apesar de tão díspares – da autoria da mesma empresa de consultoria na área do Ambiente, a Eunomia, que utilizou metodologias dúbias: na primeira, as contas somavam 4,4 mil milhões, mas os autores, sem qualquer justificação concreta, decidiram inflacionar para quase o dobro (em declarações à BBC, a Eunomia admite que os 8,5 mil milhões são uma “estimativa indicativa” que deve ser “divulgada com cautela”); na segunda – um relatório encomendado pela associação conservacionista World Wildlife Fund –, a empresa parte de um cálculo feito por uma firma de estudos de mercado para a União Europeia para chegar aos 42 mil milhões no Reino Unido.

4 - MAS AS PALHINHAS NÃO DEIXAM DE SER UMA PARTE CONSIDERÁVEL DO QUE POLUI OS MARES

As palhinhas estão efectivamente entre os dez objectos mais encontrados nas praias. 4% das peças de plástico no mar são palhinhas, o que apesar de tudo é considerável. Estimativas muito abertas apontam para 437 milhões a 8,3 mil milhões de palhinhas espalhadas nos mares. Mas em termos de massa, são uma gota no oceano. Cada uma pesa, em média, 0,42 gramas. Todas juntas, calcula-se que atinjam o mar menos de duas mil toneladas por ano, o que equivale a 0,025% do total de plástico despejado nos oceanos. Acabar com o uso de palhinhas seria pouco mais do que uma medida simbólica. Apesar disso, várias empresas, desde supermercados a cadeias de hotéis e restaurantes – com a McDonald’s britânica à cabeça –, têm anunciado nas últimas semanas que vão banir as palhinhas ou trocá-las por outras de papel. Por outro lado, representantes de doentes com Parkinson ou deficiências que impedem o uso dos braços já vieram alertar que, para muita gente, as palhinhas não são um luxo – são um bem de primeira necessidade.

5 - O LIXO QUE FAZEMOS EM TERRA É QUE ESTÁ A ENTUPIR OS OCEANOS

O estudo divulgado pela Ocean Conservancy calcula que 80% do plástico que hoje se encontra a flutuar nos oceanos seja plástico doméstico ou industrial descartado em terra. Sobra 20%, constituído por material de pesca abandonado. Outras estimativas dão um peso ainda maior ao setor das pescas. Um estudo publicado este ano na revista científica Nature estima que 46% da famosa ilha de plástico do Pacífico seja constituído por restos de redes de pesca; somando mais material, como armadilhas e linhas, o material de pesca corresponderá a 60% do total. Outros 10% a 20% são detritos arrastados pelo tsunami de 2011 no Japão. Dos objetos recolhidos pelos investigadores, ainda com letras visíveis, 30% tinham caracteres japoneses e 29,8% chineses. Mas há também muito lixo no mar que não se vê. Os cientistas responsáveis pelo estudo da Nature lembram que 40% do plástico não flutua e, por isso, vai parar ao leito dos oceanos.

6 - A ILHA DE PLÁSTICO DO PACÍFICO VÊ-SE DO ESPAÇO

Tecnicamente, a área onde se concentra o lixo no oceano Pacífico, e que tem servido de bandeira antiplástico, terá cerca do dobro do território francês. Dizemos “concentra”, mas seria mais rigoroso dizer “dispersa”: todo o lixo junto pesará 79 mil toneladas, o mesmo que um pequeno icebergue. Apesar das campanhas de alerta, que incluem uma iniciativa junto das Nações Unidas para ali ser reconhecido um “país” chamado Ilhas de Lixo (e que tem Al Gore como primeiro signatário), a ilha de plástico não tem propriamente terra firme. Não só não é visível do alto (muito menos do espaço) como é possível um barco atravessá-la sem que os seus ocupantes vislumbrem um único pedaço de plástico. E as fotos de água coberta de lixo que muitas vezes acompanham as notícias sobre a ilha de plástico? São habitualmente imagens tiradas junto à costa de grandes cidades do Sudoeste Asiático (Manila, nas Filipinas, é a preferida).

7 - A RECICLAGEM É A SOLUÇÃO

A reciclagem faz parte da solução, mas nem de perto é suficiente para resolver o problema. Somente 9% do plástico é reciclado em todo o planeta, com assimetrias regionais bem vincadas: enquanto na Europa se chega aos 30%, os EUA encaixam precisamente na média mundial dos 9%. Em Portugal, diz a Agência Portuguesa do Ambiente, 42% do plástico é reciclado, e com tendência a subir: entre 2011 e 2015 (últimos dados disponíveis), a reciclagem deste material, recolhido pela Sociedade Ponto Verde, cresceu quase 100% – de 74 mil para 145 mil toneladas. Segundo um relatório publicado em Novembro na revista Science Advances, desde 1950 já se produziu 8,3 mil milhões de toneladas de plástico (um pouco mais de uma tonelada por cada pessoa que vive hoje na Terra). E, desta quantidade astronómica, apenas 12% foi incinerado, método que, aliás, também está longe de ser bom para o ambiente. Em suma, por mais optimistas que sejam as perspectivas de crescimento da reciclagem, continuará a produzir-se – e a acumular-se – muito mais plástico do que aquele que é tratado.

8 - A TAXA SOBRE OS SACOS DE PLÁSTICO FOI UM SUCESSO

Em 2015, os sacos que os supermercados ofereciam passaram a ser taxados a 10 cêntimos pelo Governo – uma medida para desincentivar a utilização dos sacos descartáveis e aumentar a de sacos reutilizáveis. No primeiro ano, o Estado arrecadou 1,5 milhões de euros com este novo imposto, quando previa angariar €40 milhões. Acontece que as grandes superfícies mudaram rapidamente para novos sacos com uma gramagem superior à visada pela taxa, escapando à lei (os dez cêntimos vão para os retalhistas). No ano passado, a taxa só rendeu 60 mil euros. Por causa disso, o Governo estuda agora alargar o imposto a estes sacos. A troca de sacos mais finos por outros mais grossos acaba por não ter grande impacto, positivo ou negativo, no ambiente. Por um lado, “as pessoas tendem a reutilizá-los mais, porque são mais duráveis”, diz Susana Fonseca, da associação ambientalista Zero. Por outro, sendo mais grossos e pesados, a sua degradação natural é mais lenta. “Faltam dados que nos ajudem a perceber o seu impacto”, lamenta a ambientalista.

9 - NÃO HÁ MUITO QUE O CONSUMIDOR POSSA FAZER

É uma realidade que muito do lixo que chega ao mar foge ao controlo e responsabilidade directa dos consumidores portugueses, seja por razões geográficas (é na Ásia que o problema está mais descontrolado), seja porque parte substancial do plástico tem origem na indústria das pescas. Mas podemos fazer muito mais do que fazemos. “É preciso uma alteração do paradigma: substituir o plástico descartável por reutilizável, desde os copos para as festas aos recipientes para levar comida dos restaurantes”, diz Susana Fonseca, da Zero. “O investimento inicial é maior, mas compensa.” A nível legislativo, tem havido novidades. A Comissão Europeia apresentou, em maio, um conjunto de propostas para banir os produtos descartáveis sempre que houver uma alternativa; o partido PAN apresentou, e viu aprovada, já este mês, uma iniciativa para o incentivo ao depósito de embalagens de plástico, com o valor das embalagens a ser restituído, após retoma. Na teoria, tem tudo para correr bem: a crer num inquérito do Eurobarómetro, de Novembro, os portugueses até são dos europeus mais sensíveis ao problema do plástico.

10 - É UMA GUERRA PERDIDA

É seguramente uma guerra muito difícil de combater. Mas têm sido dados passos importantes. O ataque às palhinhas vale sobretudo pelo seu simbolismo. Reduzir ao máximo a sua utilização, sendo um bom princípio, não é panaceia, atendendo ao diminuto peso destes objetos no total de plástico que desemboca nos oceanos, e pode até correr-se o risco de levar os consumidores a acreditarem que resolvem o problema com este pequeno sacrifício, ignorando as causas maiores da poluição. Apontar as armas à indústria das pescas, através, por exemplo, de um selo obrigatório nas redes, que responsabilize os armadores por material abandonado no mar, seria um passo muitíssimo mais significativo. Para tal, torna-se necessário um acordo internacional, talvez nos mesmos moldes do Protocolo de Montreal, assinado em 1987, que na prática conseguiu suprimir os gases que estavam a destruir a camada de ozono. Já não temos muito tempo: há estudos a prever que, daqui a 30 anos, haverá mais plástico do que peixe nos oceanos

Existe Corrupção?

SILÊNCIO DA FRAUDE

CARLOS PIMENTA

Não podemos deixar de lastimar a estultícia reinante no bojo de uma iniciativa eventualmente interessante: o Orçamento Participativo



Em Fevereiro fez um lustro após a realização de uma reunião de peritos da OCDE sobre a Convenção contra a Corrupção de Agentes Públicos Estrangeiros nas Transacções Internacionais. O Observatório de Economia e Gestão de Fraude esteve presente, tendo apresentado uma comunicação.

A preocupação de informar e contribuir para uma opinião pública mais esclarecida e maximizar a transparência da nossa actividade faz com que essa intervenção esteja disponível no na página na Internet (obegef.pt), no Working Paper 25, acessível por qualquer um.

Se tal nos dispensa de referências detalhadas há alguns aspectos que convém reter:

- Desde 2008 que há a obrigação legal de apresentar de dois em dois anos um vasto e cuidado apuramento estatístico relativo aos crimes associados à corrupção. Contudo passado este tempo as informações são muito parcas. Aliás se analisarmos o documento «O Ministério Público contra a Corrupção – Programa de acção» em que mais uma vez se refere que “a luta contra a corrupção como um dos objectivos estratégicos para o triénio judicial 2015-2018” (p. 6), o que se diz sobre “Assegurar a recolha, o tratamento e divulgação da informação estatística” (p. 9) aproxima-se de um conjunto vazio.

- A corrupção é um conceito complexo que pode extravasar o âmbito das definições dadas no código penal e não é certo que tal vertente seja tida em conta, embora se pudesse revelar de grande utilidade.

- «Apesar de em termos legislativos estarem criadas as condições legais mínimas para que o fenómeno de corrupção seja analisado e apreendido tanto no âmbito da prevenção, como da repressão, o certo é que as (…) instâncias formais de controlo não têm dado uma proficiente resposta que torne pública a realidade dos processos relativos à corrupção e crimes conexos»

- A opacidade estatística «contribui para a estagnação da compreensão do fenómeno corruptivo, já que não fornece elementos informativos mínimos que possam servir de base para o estudo do mesmo, em que sejam avaliadas as vantagens/problemas de determinadas variáveis, sejam legislativas, organizacionais, ou outras».

O Observatório, tendo também como objectivo juntar forças com todos os que pretendem combater a fraude e a corrupção e dispondo nos seus associados diversos especialistas em variadas ciências (incluindo Matemática e Estatística) tem procurado, desde a referida reunião da OCDE contribuir para um apuramento estatístico destas realidades tão prementes no Portugal de Hoje.

2. - Desde então iniciou contactos com algumas instituições visando conjugar esforços para atingir os referidos objectivos estatísticos. Todos foram muito «simpáticos» ficaram de pensar sobre o assunto e até hoje nada em concreto, denotando uma lentidão cognitiva que estranhamos.

Para contribuir para um desbloqueio da situação resolvemos apresentar ao Orçamento Participativo o projecto de adequado tratamento estatístico da corrupção, esperançados que os votos de quem quotidianamente sente as consequências desse ignóbil comportamento dessem força para a sua concretização. Assim apareceu a proposta “Mapeamento da corrupção em Portugal” (Siga o link).


Tal projecto foi liminarmente rejeitado na fase anterior à votação com as seguintes justificações:

- “configura pedidos de apoio ou venda de serviços” como se a verba solicitada (entre 50 e 300 mil euros) para um trabalho gratuito (é verdade, gratuito) de diversos especialistas, deslocações e estadias durante diversos anos justificasse tal conclusão; aliás esta apreciação só pode ser de quem não conhece os regulamentos do orçamento participativo porque a gestão financeira é feita por uma instituição pública.

- “designadamente por estarem protegidos por direitos de propriedade intelectual”, o que não faz qualquer sentido neste contexto.

- Após o pedido de justificação que solicitamos foi encontrada outra justificação lacónica: “foi apresentada por pessoa colectiva”, apesar de também conter como proponentes o nome de três dos seus associados.

3.- Perante estes factos deixamos algumas perguntar ao leitor:

- Propor a montagem de um sistema permanente de recolha de informação sobre a corrupção de forma a melhorar um seu conhecimento, detecção e prevenção não tem qualquer interesse para o futuro do País e o Observatório é incapaz de o vislumbrar?

- A recusa da proposta é o simples resultado de uma miopia burocrática?

- A «simpática inoperatividade» de alguns será o resultado da sua incapacidade de perceber que todos nós sabemos pouco perante o muito que a luta contra a corrupção exige e que a conjugação de esforços interdisciplinares a todos beneficia?

- Ou será porque têm receio que esse diálogo corresponda ao que pensam ser uma perda de poder institucional?

Será «só (?!)» isto?

A falta de ética no futebol

21/06/2018
Tiago Marcos

Terminadas as competições nacionais de futebol, importa analisar os tristes acontecimentos que marcaram esta época e que nada têm que ver com a prática desportiva desta modalidade.

Estes acontecimentos tiveram especial relevo no que respeita às constantes suspeitas de corrupção que foram recaindo sobre uma parte substancial das pessoas e entidades ligadas à prática profissional desta modalidade em Portugal, bem como à violência perante jogadores, equipas de arbitragem e adeptos.

Importa realçar que, na presente crónica, não pretendo abordar quaisquer suspeitas de corrupção que estejam em investigação, ou em julgamento pelas entidades competentes, o que não retira importância à cabal investigação que deve ser realizada a todas as suspeitas de irregularidades que, caso se confirmem, devem ser punidas. Na verdade, tenciono apenas analisar a forma como o comportamento de alguns agentes ligados ao futebol profissional (na minha opinião, pouco ético ou profissional) contribui para os referidos acontecimentos. Assim, nesta análise, proponho olharmos para a atuação dos clubes profissionais, da comunicação social especializada e dos órgãos reguladores da modalidade.

No que respeita aos clubes profissionais de futebol, e em especial aos seus dirigentes e treinadores, parece-me ser altamente irresponsável a forma como atuam, tal como:

- O facto de se ter tornado uma tática comum o desviar da atenção social dos falhanços desportivos de uma equipa, pela respetiva desculpabilização através de constantes críticas a equipas de arbitragens e aos demais clubes concorrentes (promovendo as suspeitas de corrupção generalizada, não investigadas, como dados consumados). Esta tendência tem escalado de tal forma que as críticas públicas já chegaram a focar publicamente os jogadores do próprio clube que tece as referidas críticas; ou,

- A manutenção de apoios financeiros e logísticos a grupos organizados de adeptos, ou a claques, muitas vezes associados a atividades criminosas e que são sensíveis a campanhas inflamatórias contra outros clubes. Este apoio é geralmente dado pelos clubes com a justificação que a presença destes grupos nos estádios anima o espetáculo desportivo, quando na realidade me parece que apenas afasta outros adeptos dos estádios, pela violência que frequentemente geram.

Assim, questiono se estas atitudes irresponsáveis deveriam ser publicitadas pela comunicação social e permitidas pelos órgãos reguladores do futebol e se, quando ocorrem, não deveriam ser severamente punidas?

No que respeita à comunicação social, e não me parecendo criticável o elevado tempo de antena atribuído ao futebol, pela sua popularidade junto da generalidade da população portuguesa, parece-me, por regra,ser altamente criticável a qualidade deste tempo de antena, já que:

- São focados até à exaustão temas altamente populistas e subjetivos, tal como a promoção de constantes críticas às arbitragens (pelos clubes e seus representantes nos órgãos de comunicação social), ou o tratamento de suspeitas de corrupção como dados consumados (muitas vezes em espaços supostamente noticiosos); e,

- Salvo raríssimas exceções, apenas são considerados como relevantes, pela comunicação social,os denominados 3 clubes grandes, desconsiderando e desrespeitando os restantes clubes, sendo que, na verdade,e sem que os demais clubes consigam ser competitivos, não me parece possível, ou sustentável, existirem clubes portugueses (ou mesmo a seleção nacional) a jogar continuadamente de uma forma competitiva nas competições internacionais. Para tal, considero apenas os factos de que as competições internas regulares são a forma de uma equipa manter o ritmo competitivo ao longo da época e de se poderem desenvolver os jogadores que não conseguem um lugar nos plantéis dos clubes grandes.

Logo, questiono se não têm estes órgãos o dever de informar de forma isenta? Questiono se não seria responsável que os órgãos de comunicação social revissem a sua atitude perante o desporto, de modo a promover positivamente o futebol e os seus protagonistas, não discriminando qualquer clube, em vez de promover a discórdia e a violência entre adeptos e para com as equipas de arbitragem?

Por fim, no que respeita aos órgãos reguladores do futebol (considerando a Federação Portuguesa de Futebol, a UEFA e mesmo a FIFA):

- Em especial face aos pontos anteriores, e atendendo a que uma das principais funções destas organizações é a de promover o futebol e a respetiva prática, deveriam proteger a integridade da modalidade e dos respetivos intervenientes, pelo que não me parece razoável que estejam meramente expectantes perante os tristes comportamentos que temos verificado;

- Adicionalmente, e considerando a violência que tem sido visível, em especial perante as equipas de arbitragem (fruto dos comportamentos referenciados), não me parece razoável que estes órgãos não obriguem a que as críticas dos clubes (em especial a equipas de arbitragem) sejam devidamente tratadas nos bastidores, e não na praça pública, de modo a proteger a integridade física e moral de todos os envolvidos;

- Parece-me ainda importante referir que as regras impostas por estes órgãos, tal como as supostas regras de fair play financeiro, que também me parecem não fazer sentido, já que parecem favorecer injustiças e os clubes grandes. Por exemplo, um clube pode ser penalizado por investir demasiado na aquisição de passes de jogadores, não sendo penalizado um outro clube que tenha sido alvo de um perdão de dívida bancária (cumprindo as ditas regras por este motivo).

Assim, julgo ser claro que a atual má imagem do futebol profissional é fruto direto de comportamentos não éticos e desregulados que são promovidos pelos respetivos intervenientes. Neste sentido, parece-me que o impacto desta situação na sociedade é relevante,pela publicidade que lhes é atribuída (fruto da popularidade deste desporto), o que pode acabar por normalizar comportamentos não éticos que incentivam a violência e o desrespeito entre adeptos e para com equipas de arbitragem.

Deste modo, questiono se, para o bem do futuro deste desporto, das pessoas que o acompanham e da sociedade em geral, não deveria existir uma regulamentação ativa dos comportamentos permitidos e a punição dos comportamentos desviantes? Não estará na hora de nos focarmos na prática do futebol?

Correr e corromper: vícios do desporto rei


04/07/2018
Rute Serra
Opinião

Se, no plano da Administração Pública, a corrupção sobrepõe os interesses privados ao interesse público, na corrupção do desporto acresce a corrosão do puro prazer desportivo.

Por alturas de efervescência coletiva, estimulada pelo Campeonato Mundial de Futebol FIFA de 2018, que decorre por terras russas, adequado parece voltar ao tema dos fenómenos corruptivos, neste planeta vizinho que é o futebol.

Relembrar-se-á porventura o leitor, dos escândalos em que a organização deste evento, esteve envolvida, desde que em dezembro de 2010 a Rússia, por meios ainda ensombrados quanto à justiça, preteriu o Qatar e surge eleita para acolher o Mundial.

Este fenómeno de massas, como vulgarmente é designado, evoluiu, nas palavras de Álvaro Magalhães expressas num livro editado pela Assírio & Alvim em 2004, da “Idade do Prazer”, que corresponde à difusão internacional do jogo, passando pela “Idade da Razão”, que consistiu nas profissionalizações dos jogadores, até atingir aquela que é hoje a “Idade da Maturidade”, caracterizada pela inovadora textura empresarial das equipas de futebol.

Ao longo dos últimos anos, tem-se verificado um aumento exponencial da importância do futebol no produto interno bruto (PIB) dos países. Estima-se, aliás, que o futebol corresponde à sétima economia do mundo, constituindo cerca de 0,4% a 1% do PIB planetário. Em Portugal, este desporto contribui com 456 milhões de euros para o PIB e gera mais de 2 mil postos de trabalhos, considerando apenas os impactos diretos da Liga Portugal e das Sociedades Desportivas que participam nas suas competições.

Este relvado onde aceleram e escorregam milhões floresce propício à ação criminosa. Impelidos por uma crescente moral de êxito, que consiste na constatação dos baixos custos que estas práticas criminosas importam, em causa se colocam os valores associados à prática desportiva. Se, no plano da Administração Pública, a corrupção sobrepõe os interesses privados ao interesse público, na corrupção do desporto acresce a corrosão do puro prazer desportivo.

Veja-se, contudo, que o apetite por viciar resultados, a fim de satisfazer o coração, remonta a tempos atrasados. Nos jogos olímpicos de 338 DC, Eupolos da Tessália não hesitou em subornar três adversários de modo a sair vitorioso dos seus combates.
O que eventualmente mudou de lá até aos dias de hoje, foi porventura a distorção da ação criminosa motivada pela análise de custo benefício, o que significa que as medidas de combate à corrupção no setor desportivo, devem assentar na diminuição dos benefícios e no aumento dos custos diretos da ação, de forma a aumentar a probabilidade de se ser punido e diminuir a utilidade deste tipo de práticas para os seus perpretores.

A corrupção no futebol português é caracterizada por uma tendência comum no que respeita às ambições do agente ativo. Dos diferentes casos ao longo das últimas décadas: “Calabote” em 1959, “Penafielgate” em 1990, “Bolsos Limpos” em 1993, “Apito Dourado” em 2003, “Colmeia” em 2009, “Jogo Duplo” em 2016, até aos mais recentes escândalos ainda na memória recente de todos, certo é que o futebol tem muitas outras dores de cabeça pelas quais não pode culpar ninguém além de si mesmo, por se ter tornado um alvo de uma cultura de ganância.

Repensemos de que forma poderemos mitigar a impunidade do capital e o eco que faz ressoar na gestão do agora e sempre, desporto rei, a bem do salutar autêntico sentimento desportivo.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Daesh: a história escondida

Por José Goulão

Não restam hoje dúvidas de que a estrutura mercenária do Daesh funciona como um corpo clandestino do Pentágono, da própria NATO, no quadro da privatização crescente das operações militares nos campos de batalha.

Derrotado, mas não liquidado. O Estado Islâmico ou Daesh, por certo a organização criminosa de maior envergadura montada sob a fachada do «extremismo islâmico» para servir nas guerras de agressão e expansão lançadas este século, capitulou às mãos dos exércitos iraquiano e sírio, reforçados com o apoio de forças militares russas chamadas pelo governo legítimo de Damasco. Não, a chamada «coligação internacional anti-Daesh», comandada pelo Pentágono, nada teve a ver com o desfecho, antes pelo contrário, exceptuando o caso da sangrenta reconquista da cidade de Mossul, no Iraque.

Tornado ineficaz em termos de consolidação dos objectivos que originalmente lhe foram estabelecidos, designadamente o desmembramento do Iraque e da Síria e a remodelação das fronteiras estabelecidas no primeiro quartel do século XX naquela região do Médio Oriente, o Daesh está a ser reciclado para novas funções, definidas de acordo com os interesses transnacionais e globais de quem mais se tem servido dele, em primeiro lugar o Pentágono e a NATO.

Do «Califado» instaurado durante o ano de 2014 em territórios sírios e do Iraque, com centros nevrálgicos em Raqqa, Deir ez-Zor, Bukamal e Mossul, já nada resta para aquartelar os seus efectivos monstruosos: 240 mil mercenários com mil e uma origens, congregados sob as bandeiras do Estado Islâmico no Iraque e no Levante (Daesh na sigla árabe). Entre esses, é bastante provável que os membros do contingente de 80 mil antigos soldados do exército de Saddam Hussein recrutados pelas forças norte-americanas de ocupação do Iraque, no âmbito da estratégia para criação de um «Sunistão» que concretizasse a divisão dos territórios do Iraque e da Síria, regressem às suas regiões de origem.

Comboio de veículos e combatentes do chamado Estado Islâmico do Iraque e da Síria (Daesh), em rota na província de Anbar, Iraque. The Washington Times, 10/09/2014.CréditosNão creditado / AP


«Reciclar»: quem, onde, como
Mas restam dois terços dos terroristas para «reciclar». Começam, porém, a conhecer-se alguns dos seus destinos. Chefes do Daesh estão a ser «amnistiados» pela Unidade de Protecção do Povo (YPG), uma organização curda actuando no Norte da Síria sob enquadramento do Pentágono, como via para integrar unidades de jihadistas nas «forças de segurança» das novas «fronteiras» regionais. Como a administração Trump vetou a criação desse corpo – no quadro da discordância entre a França e os Estados Unidos sobre a essência do projecto «Rojava» – os terroristas derrotados aguardam ainda a definição das novas funções, acampados à saída da base de Kasham, recinto militar ao serviço da ocupação norte-americana. É nesta espécie de limbo que os mercenários do Daesh transitam da condição de extremistas islâmicos ao serviço da jihad para gendarmes de causas que se afirmam laicas e são também atlantistas.

A reciclagem de outros efectivos do Daesh compete à ditadura de Erdogan na Turquia. Os mercenários estão a ser reintegrados no «Exército Livre da Síria», entidade fundada por potências da NATO no início da agressão ao povo e ao território sírio, em 2012, segundo a fábula de que se destinava a acolher os desertores do Exército Nacional, colocando-os ao serviço da «oposição». Na verdade encheu-se de jovens recrutados em todo o mundo árabe e também nos subúrbios de grandes cidades europeias; e que, enquadrados agora pelo exército de Ancara, combatem na região síria de Afrin contra os curdos da YPG e, por extensão, contra muitos mercenários que, até há dias, eram seus correligionários debaixo das bandeiras do Daesh. Destapando assim, por outro lado, um estranho cenário de confronto directo entre dois membros da NATO.

Outros mercenários do derrotado Estado Islâmico estão a ser transferidos para países como o Afeganistão, a Índia, o Bangladesh e Myanmar. As operações de resgate na Síria são efectuadas por aviões da Força Aérea norte-americana, que os transportam numa primeira etapa para o Afeganistão, de acordo com informações transmitidas pelo Irão à Rússia.

Já é possível conhecer funções que lhes serão distribuídas na Índia, uma vez integrados nas milícias hindus do partido nacionalista BJP do primeiro-ministro Narendra Modi, as mesmas que assassinaram o Mahatma Gandhi. Terroristas que ainda há dias fuzilavam e decapitavam em massa ao serviço da jihad ou «guerra santa» islâmica vão agora combater os rebeldes muçulmanos de Cachemira.

No Afeganistão, admite-se que alguns dos «desmobilizados» do Daesh integrem as operações de tráfico de ópio e heroína que o ex-presidente Hamid Karzai, um dos barões de tão rentável negócio monopolista à escala mundial, transferiu das máfias kosovares para o Estado Islâmico e suas redes europeias e africanas.

Como se percebe, esta reciclagem diversificada abre novos ciclos, sem fechar os objectivos que os criadores e mentores do Daesh definiram para o ciclo anterior. A partilha do Iraque não está consumada, embora o Curdistão se considere independente – porém não reconhecido internacionalmente. E o governo legítimo da Síria continua em funções, embora parcelas do território estejam ocupadas por extensões da NATO, com base até em limpezas étnicas – como aconteceu no Norte, onde as vítimas foram comunidades cristãs e árabes expulsas à força para deixar espaço aos curdos da YPG.

Por outro lado, estes acontecimentos permitem conhecer melhor os episódios soltos que escrevem a história sangrenta do Daesh, de maneira a compor o sinistro quebra-cabeças desta operação terrorista que está na origem de uma carnificina próxima de um milhão de mortos.

A verdade sobre a origem do Daesh

Corria o ano de 2006. Três anos depois da invasão do Iraque, a Casa Branca e o Pentágono desesperavam perante a mobilização dos iraquianos contra a ocupação, apesar do colaboracionismo dos mais altos dirigentes, confinados ao quarteirão do poder em Bagdade definido pela chamada Linha Verde.

John Negroponte, embaixador norte-americano em Bagdade, depois director nacional de espionagem e um especialista em operações subversivas clandestinas, decidiu então traçar uma estratégia para minar a resistência iraquiana. É muito rico o currículo do experiente embaixador, espião e conspirador Negroponte: por exemplo, assassínios selectivos no Vietname (Operação Phoenix da CIA); organização da guerra civil em El Salvador; montagem da operação Irão-Contras para tentar reverter a Revolução Sandinista na Nicarágua; liquidação da revolução de Chiapas no México.

Financiada e treinada pelo Pentágono, a organização terrorista sunita assim criada, enquadrada pela polícia especial («Brigada dos Lobos»), foi baptizada como ExércitoIslâmico no Iraque e ficou nominalmente a ser dirigida por Abu Bakr Al-Baghdadi, mais tarde o «califa» do Daesh, até que as armas russas puseram termo aos seus diasem território sírio. Em termos gerais, John Negroponte recorreu ao princípio básico de dividir para reinar, lançando sunitas contra xiitas e espalhando o terror entre as populações civis. No campo sunita, baseou-se na estrutura da Al-Qaida no Iraque para formar uma coligação tribal islamita. Requisitou os serviços do coronel James Steele, que colaborara com ele em El Salvador, e este recrutou os futuros dirigentes do grupo no campo de concentração de Bucca; organizou depois a sua formação na tristemente célebre prisão de Abu Ghraib, onde foram submetidos a métodos de lavagem cerebral elaborados pelos professores Albert Biderman e Martin Seligman, também usados em Guantánamo. A preparação dos chefes terroristas em métodos de tortura seguiu, por sua vez, os cânones experimentados na polícia política da Formosa, onde Steele leccionou, e na Escola das Américas, instrumento de elite para instrução dos aparelhos repressivos das ditaduras fascistas latino-americanas.

Com a chegada do general David Petraeus ao Iraque para chefiar a ocupação norte-americana, a nova milícia tornou-se uma unidade do regime. O coronel John Coffman foi agregado ao trabalho de Steele, respondendo directamente perante Petraeus; e o diplomata Brett McGurk ficou destacado para assegurar a ligação permanente do próprio presidente George W. Bush ao processo. Apenas dois anos depois de ter participado, com elevadas responsabilidades, na criação e condução do Estado Islâmico no Iraque o diplomata Brett McGurk foi designado como enviado especial do presidente Obama para supervisionar a chamada «coligação anti-Daesh».

Rua de Aleppo, Síria. CréditosHosan Katan/Reuters /

O grupo extremista que deu corpo à ideia de Negroponte cumpriu a sua missão na guerra civil e foi muito aplicado na estratégia – ainda que falhada - de criação do «Sunistão» que partiria o Iraque em três zonas, juntamente com a curda e a xiita.
Em Abril de 2013, quase um ano depois de as principais potências da NATO e as petroditaduras do Golfo terem lançado a «Operação Vulcão em Damasco e Sismo na Síria» para desmantelar este país, já o EstadoIslâmico no Iraque estava presente em operações de desestabilização desenvolvidas em território sírio; por isso, ampliou a sua designação para «e no Levante» (completando a sigla Daesh). No mês seguinte, guiado por uma associação sionista norte-americana, a Syrian Emergence Task Force, o senador direitista John McCain, um dos principais conselheiros de Obama para o MédioOriente, avistou-se clandestinamente com dirigentes do terrorismo islâmico no interior da Síria. Entre os presentes, como pode testemunhar-se em fotos postas a circular pelos serviços de comunicação do senador, encontrava-se Abu Bakr Al-Baghdadi, o chefe do Daesh em pessoa. Para que, no entanto, não ficassem dúvidas, o senador McCain declarou a uma televisão do seu país que conhece pessoalmente os dirigentes do Daesh e está «em contacto permanente com eles».

Nessa ocasião já os Estados Unidos faziam constar, entre alguns parceiros de guerra, a intenção de montarem um dispositivo terrorista de grande envergadura para reforçar as intervenções no Iraque e na Síria. Estava em curso, entretanto, uma acção de transferência para a Turquia, com destino à Síria, de mercenários islâmicos que tinham actuado sob o comando da NATO na operação de destruição da Líbia. Em 18 de Fevereiro de 2014, a conselheira nacional de segurança dos Estados Unidos, Susan Rice, convocou os chefes dos serviços secretos da Arábia Saudita, da Turquia, do Qatar e da Jordânia para Amã, onde lhes comunicou a reestruturação do «Exército Livre da Síria» e, nesse âmbito, a montagem, com supervisão saudita, de uma vasta operação secreta para remodelar as fronteiras regionais.

Maio de 2013. Encontro de John McCain com terroristas, em teritório sírio ocupado por estes. À esquerda Ibrahim al-Badri, com quem o senador americano dialoga. Ibrahim al-Badri, mais conhecido por Abu Bakr al-Baghdadi, criou e dirigiu o chamado «Estado Islâmico». Fonte:SenegalPress


Estado Islâmico, versão actualizada
Entrou assim em funções a versão actualizada do Estado Islâmico no Iraque e no Levante, o Daesh. Abdelakim Belhadj, chefe terrorista líbio que a NATO escolhera como governador militar de Tripoli e a Interpol identificou como chefe do Estado Islâmico no Magreb, foi então enviado a Paris onde, recebido no Ministério dos Negócios Estrangeiros, aconselhou a França a transferir para o Daesh o apoio prestado à Al-Qaida – que o ministro Laurent Fabius considerava estar a fazer «um bom trabalho». Três campos de treino de jihadistas foram montados pelo Pentágono e pela NATO na Turquia, prontos a receber mercenários de todo o mundo com destino ao Daesh: em Sanliurfa, Osmanyie e Karaman.

Dotado com uma enorme frota de veículos todo-o-terreno da marca Toyota novinhos em folha, equipado com armamento avançado que os Estados Unidos forneciam usando o Exército do Iraque como falso destino, beneficiando de um sistema de túneis e bunkers atempadamente criado pela Lafarge, maior empresa mundial de construção civil, o Daesh avançou pelo Iraque com uma dinâmica que parecia imparável. Através de uma cavalgada na qual se sucederam os fuzilamentos em massa de populações civis, instaurando um terror bárbaro por onde passavam e onde se instalavam, os mercenários «islamitas» tomaram aeroportos, instalações petrolíferas, chegaram a poucas dezenas de quilómetros de Bagdade e, sem mais demoras, criaram um «Califado» em território conquistado dos dois lados da fronteira entre a Síria e o Iraque, cortando o movimento na estrada internacional Beirute-Damasco-Bagdade-Teerão. Tudo isto num ápice, em poucas semanas.

O contrabando de petróleo tornou-se uma das maiores fontes de financiamento do Daesh, com escoamento garantido por embarcações fretadas pela família Erdogan ou por milhares de camiões cisterna da empresa Powertrans, que tinha como proprietário remoto o próprio genro do ditador turco. Refinado pela Turkish Petroleum Refineries, o petróleo que sustentava a actividade terrorista saía através dos portos turcos para a Europa, destino que tinha também grande parte do produto «lavado» em Israel através da atribuição de falsos certificados de origem. Jana Hybaskova, representante da União Europeia em Bagdade, explicou este processo no Parlamento Europeu, pelo que os Estados membros não podem alegar desconhecimento da possibilidade de estarem a financiar indirectamente o terrorismo.

Pressionado pelas imagens aterradoras das decapitações de cidadãos ocidentais que o Daesh distribuía através do seu sistema de comunicação, em cuja génese estiveram peritos do MI6, serviço de espionagem britânico, Barack Obama viu-se forçado a lançar uma «coligação anti-Daesh».

Os efeitos dessa decisão na estrutura terrorista, porém, foram escassos. O mesmo não poderá dizer-se das centenas de vítimas civis sírias provocadas pelos bombardeamentos da «coligação» e dos entraves por ela colocados à acção do exército soberano de Damasco, principalmente quando estava em vias de concretizar vitórias estratégicas sobre os terroristas. Sem esquecer as abundantes denúncias segundo as quais a «coligação internacional» dizia combater os jihadistas enquanto continuava a municiá-los, através de armamento largado em para-quedas para as zonas sob seu controlo. Assim demonstrando, como se ainda fosse necessário, que o desmantelamento da Síria e o derrube do seu governo foram sempre os verdadeiros objectivos das potências da NATO, sobrepondo-se a qualquer variante da «guerra contra o terrorismo».

Não restam hoje dúvidas de que a estrutura mercenária do Daesh funciona como um corpo clandestino do Pentágono, da própria NATO, no quadro da privatização crescente das operações militares nos campos de batalha. A ideia, contudo, não é nova: tal como montou a estrutura clandestina e terrorista da Gládio, a NATO manipula agora um sucedâneo, o Daesh, adequado às condições e circunstâncias das regiões a dominar e policiar.