segunda-feira, 12 de setembro de 2022

No que Guantánamo os transformou

 

 
Senhor X: “O meu país fez algumas coisas de merda, e eu também as fiz. Odeio-me por isso. E odeio o meu país por me ter tornado neste monstro”

Na guerra ao terrorismo, o Senhor X deveria dominar o prisioneiro Mohamedou Slahi. Torturou-o — e destruiu-se a si próprio. Passados 17 anos, os dois voltaram a falar um com o outro. Este trabalho, publicado pelo semanário alemão Die Zeit, foi o vencedor de um dos European Press Prize 2022 na categoria Distinguished Reporting Award. O 11 de Setembro foi há 21 anos.

Bastian Berbner e John Goetz/Die Zeit(texto) e José Alves (ilustração) 11 de Setembro de 2022


O homem que se autodenominava “Senhor X” em Guantánamo usava um passa-montanhas e óculos de sol espelhados quando torturava. A pessoa que ele estava a torturar não deveria ver a sua cara. Agora, passados 17 anos, o Senhor X está sentado em frente a uma roda de olaria na sua garagem, algures nos Estados Unidos. É um homem calvo com uma barba a ficar grisalha e tatuagens na nuca. As suas mãos, grandes e fortes, moldam um pedaço de barro castanho-acinzentado. A peça não vai ficar muito bonita, isso pode-se já perceber. Ele diz que a sua arte é mesmo assim, sente-se mais inclinado para a fealdade.

O Senhor X reflectiu longa e aprofundadamente sobre se queria mesmo receber jornalistas e falar com eles acerca do que aconteceu naquela altura. Seria a primeira vez que um torturador de Guantánamo falaria publicamente acerca das suas acções. O encontro neste dia de Outubro de 2020 foi precedido de muitos emails. Agora, finalmente, estamos com ele. Para trás está já uma entrevista que durou várias horas e durante a qual o Senhor X nos falou acerca do seu cruel trabalho. Dissemos-lhe que o homem que ele maltratara naquela altura também gostaria de falar com ele. O Senhor X replicou que, por um lado, há 17 anos que anseia por uma conversa dessas, mas que, por outro lado, há 17 anos que a receia imenso. Pediu meia hora para pensar sobre o assunto. Explicou que reflecte muito bem enquanto trabalha o barro.

O homem que gostaria de falar com ele chama-se Mohamedou Ould Slahi e no Verão de 2002 era considerado o prisioneiro mais importante na base militar dos EUA na baía de Guantánamo, em Cuba. Dos quase 800 prisioneiros de lá, e de acordo com o que se sabe, nenhum foi tão brutalmente torturado como ele.

Existem acontecimentos que definem uma biografia. Mesmo que não durem muito tempo em termos de uma vida inteira, neste caso pouco menos de oito semanas, eles possuem um poder que faz com que tudo o que aconteceu anteriormente se dissolva no esquecimento e lançam um feitiço sobre tudo o que se segue depois.

Guardas e um prisioneiro na base militar dos EUA em Guatánamo, em Cuba MARIO TAMA/GETTY IMAGES


Naquela altura, no Verão de 2003, o Senhor X andava pelos seus 30 e pouco anos e era um interrogador no Exército dos Estados Unidos. Pertencia a algo que se denominava Equipa de Projectos Especiais, e cuja missão era obrigar Slahi a falar. Até então, o detido tinha-se mantido teimosamente em silêncio, mas os serviços secretos estavam convencidos de que ele estava na posse de informações valiosas. Talvez até informações que pudessem evitar o próximo grande ataque ou levar até a Osama bin Laden, que era então o terrorista mais procurado em todo o Mundo: o líder da Al-Qaeda, o principal instigador dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001.

A missão da equipa era derrotar o Mal. Para alcançar isso, respondeu e atacou-o com outro Mal.
Provocar o medo

O Senhor X torturava sempre à noite. Em cada noite em que o silêncio de Slahi se mantinha, ele experimentava uma nova crueldade. Afirma que, afinal de contas, a tortura não deixa de ser um processo criativo. Ouvir o Senhor X a descrever o que fez deixa-nos sem fôlego, e por vezes até o próprio Senhor X parece sentir isso quando conta a história. Depois abana a cabeça. Faz uma pausa. Passa a mão pela barba. Contém as lágrimas. E diz: “Meu, nem eu próprio consigo acreditar no que estou a dizer...”

Pela forma como se exprime, não ficamos com a ideia de que tudo aconteceu há muito tempo. De facto, nunca chegou a terminar. O Senhor X diz que raro é o dia em que não pensa em Slahi ou em que Slahi não o persegue em pesadelos. Slahi foi o grande caso na sua vida, no pior sentido da palavra.

Há um momento desse tempo que não apenas se cravou na sua memória, mas que também envenena a sua alma, diz o Senhor X. Nessa noite, dirigiu-se até à sala de interrogatórios onde Slahi, de baixa estatura e muito magro, estava sentado numa cadeira, vestido com o seu fato-macaco cor de laranja, acorrentado a um ilhó de metal no chão. O Senhor X, alto e musculoso, tinha imaginado mais uma novidade. Desta feita, fingiu que se tinha passado dos carretos. Gritou violentamente, atirou cadeiras pela sala, bateu com o punho nas paredes e atirou papéis à cara de Slahi. Slahi tremia dos pés à cabeça.

O Senhor X explica que a razão para nunca se ter esquecido daquele momento não foi o medo que percebeu nos olhos de Slahi, mas sim o facto de ele, o Senhor X, ter gostado de notar esse medo. Olhar para Slahi a tremer, diz, fê-lo sentir como se tivesse um orgasmo.

 Sala de interrogatório na prisão de Guatánamo. Quando aqui estão, os detidos são amarrados a um ilhó cravado no chão Joe Raedle/Getty Images

Convite para tomar chá

Mohamedou Slahi faz hoje 50 anos. Em Dezembro de 2020, dois meses após a nossa visita a casa do Senhor X, encontramo-lo numa praia do oceano Atlântico, as ondas batendo na costa da Mauritânia. Slahi veste uma túnica mauritana e um turbante, ambos da cor do céu que está por cima de nós. Com os olhos semicerrados, perscruta o mar e diz que, se se metesse num barco e navegasse sempre a direito para oeste, acabaria por chegar ao local onde esteve detido durante 14 anos, na costa Sudeste de Cuba.

Slahi está em liberdade há cinco anos. Mas, tal como o Senhor X, não consegue afastar o tempo que passou em Guantánamo. Hoje está de novo a morar em Nouakchott, a capital da Mauritânia, à beira do deserto, o mesmo local onde os EUA o tinham capturado poucas semanas após o 11 de Setembro. Ao contrário de então, ele agora é uma celebridade. É abordado na rua, sai de casa para ir a universidades e tribunas à volta do mundo para denunciar os abusos dos direitos humanos cometidos pelos EUA. Declara que quando fecha os olhos à noite e adormece, por vezes também chega o homem da máscara.

Quando um dos autores deste artigo o visitou pela primeira vez em 2017, Slahi expressou um desejo — gostaria de encontrar os seus torturadores. Por essa altura já ele tinha escrito um livro acerca do tempo que passou em Guantánamo. Na última frase, convidava as pessoas que o haviam torturado a ir tomar chá com ele: “A minha casa está sempre à disposição.”

Nesse primeiro encontro e agora, em Dezembro de 2020, diz que, durante o tempo de torturas em Guantánamo, sentira algo acima de tudo: ódio. Vezes sem conta, imaginava a forma cruel como iria matar o Senhor X. Disse que tinha que o matar, à sua família e a toda a gente que o tinha ajudado. Ele, a sua família e qualquer pessoa que lhe fosse próxima de alguma maneira. Mas depois, na solidão da sua cela, enquanto pensava, rezava e escrevia, percebeu que a vingança não era a solução. Assim, decidiu tentar algo diferente: o perdão.

 Slahi está de novo a morar em Nouakchott, a capital da Mauritânia, à beira do deserto, o mesmo local onde os EUA o tinham capturado poucas semanas após o 11 de Setembro Daouda Corena

No silêncio da sua cela, forçou-se a pensar que aquele homem grande e forte, o Senhor X, era, na realidade, uma criança pequena e frágil. Uma criança a quem ele, Mohamedou Slahi, fazia festas na cabeça e dizia: “Fizeste uma coisa má, mas eu perdoo-te.” O processo de auto-reeducação demorou vários anos. Mas, a certa altura, conta, quando ainda estava sentado na sua cela em Guantánamo, conseguiu convencer-se tanto da sinceridade deste pensamento que efectivamente sentiu a necessidade de perdoar.

Quando Slahi expressou o seu desejo de falar com o Senhor X, disse também que esperava que isso trouxesse paz à sua alma inquieta. Na melhor das hipóteses, ele conseguiria substituir as antigas e dolorosas memórias desse tempo por outras, novas e boas memórias.

E assim se iniciou a nossa busca pelo Senhor X.

Um gentil apreciador de arte

Como se pode conceber um homem que tortura outro? Em arquivos norte-americanos, por exemplo no relatório da investigação levada a efeito pelo Senado, surge uma lista das coisas que o Senhor X fez. Existem descrições de extrema violência psicológica, e, por vezes, física.

Quando estamos agora frente a frente, algo estranho sucede: não conseguimos associar a imagem que todos esses relatos criaram na nossa cabeça ao homem que está sentado à nossa frente. Temos a certeza de que ele é o Senhor X. Ex-colegas dele confirmaram a sua identidade. Mas o Senhor X que encontramos é isto: um gentil apreciador de arte. Um homem instruído, que se interessa por História. De uma forma geral, um tipo bastante íntegro. Após passar alguns dias com ele, não conseguimos escapar à impressão de que ele é também claramente alguém por quem é fácil sentir simpatia.

O Senhor X conta que ocasionalmente convida sem-abrigo para comerem num restaurante e que por vezes chora em frente à televisão quando assiste a reportagens sobre zonas de catástrofe. O facto de ele conseguir ter tanta empatia pelos outros é precisamente a razão pela qual ele era tão bom interrogador, tão bom torturador. Tem que se ser capaz de se colocar no lugar do outro: o que é que lhe causa ainda maior sofrimento? O que é que o faz sentir ainda mais inseguro? Qual é o seu ponto fraco? Mas foi precisamente devido à empatia que ele se desmoronou em consequência do que tinha feito naquela altura.

Pouco após ter deixado Guantánamo, no Inverno de 2003, o Senhor X começou a beber. Não era raro beber três garrafas de vinho tinto por noite. Passava cada vez mais tempo na cama e cada vez falava menos com a sua esposa e os seus filhos. Já quase não conseguia dormir. Ponderou o suicídio. Um médico diagnosticou-lhe um profundo distúrbio de stress pós-traumático. Logo tinha sido o torturador, entre tanta gente, a sofrer do tipo de trauma que seria de esperar encontrar na sua vítima.


Existem muitos estudos acerca do sofrimento psicológico entre as vítimas de torturas. Refugiados da Guerra da Síria, refugiados que foram maltratados em campos na Líbia, prisioneiros uigures na China — em todas estas pessoas foram observadas crescentes depressões, dependências, dificuldades em se concentrarem, problemas com o sono e pensamentos suicidas. O Senhor X também apresentou todos estes sintomas.

Podia-se olhar para o perturbado Senhor X como a personificação do trauma que engoliu todos os Estados Unidos após o 11 de Setembro de 2001. Após essa experiência fundadora, foi precisamente o país que queria defender os valores do Ocidente na guerra contra o terrorismo que traiu esses valores, o Estado de direito, a justiça, a democracia. E, desde essa experiência fundadora, o país tem sido devastado, mais do que nunca, pela omnipresente violência perpetrada por pessoas destroçadas. Assassínios em massa, crimes de ódio. Será que todos os Estados Unidos sofrem também de algum tipo de síndrome de stress pós-traumático?

Diz o Senhor X que, ao longo de 17 anos, tem tentado afastar a culpa que causou a si próprio. Tomou medicamentos, submeteu-se a terapias e procurou outro trabalho. Ao longo de 17 anos, tem tentado reparar os erros que cometeu. Algumas — poucas — daquelas coisas ajudaram-no. Um bocadinho. Mas, na realidade, não o fizeram. Talvez também porque ele, secretamente, ao longo de todos esses anos, soube que, para ficar de bem consigo próprio, teria que fazer uma coisa, e rapidamente: “O correcto seria dizer a Slahi, cara a cara, que lamento o que lhe fiz. Que tinha sido errado.”

Desse ponto de vista, a oferta feita por Slahi, para que falassem um com o outro, que nós, jornalistas, lhe comunicámos, é uma verdadeira dádiva dos céus. A oportunidade de resolver o assunto. Mas existe uma ideia que o Senhor X mantém e que lhe dificulta aceitar a proposta: o Senhor X continua a pensar que Mohamedou Slahi é um terrorista, um dos mais brilhantes na História recente, um homem carismático, um manipulador, um comunicador dotado que já falava quatro línguas — árabe, francês, alemão e inglês — e aprendeu sozinho uma quinta, o espanhol, em Guantánamo.

Cela do Campo Delta da prisão de Guantánamo, onde Slahi passou 14 anos MARK WILSON/GETTY IMAGES


Slahi é provavelmente a pessoa mais esperta que ele alguma vez encontrou, diz o Senhor X. Tão esperto que Slahi conseguiu ludibriar os seus interrogadores, tal como agora consegue fazer com que milhões de pessoas em todo o Mundo acreditem que ele é inocente. O Senhor X afirma que conhece melhor a mente desta pessoa do que a da sua própria mulher. Durante semanas, não fez mais nada do que se colocar no lugar daquele homem, e uma coisa é certa: Slahi é um grande mentiroso.

Em 2010, um juiz de um tribunal federal dos Estados Unidos decretou que Slahi deveria ser libertado, porque as alegadas provas apresentadas contra ele pelo Governo norte-americano não eram nada disso. O Governo apresentou recurso.

Em 2015, foi publicado o livro que Slahi escreveu enquanto estava na prisão: O Diário de Guantánamo [em Portugal, O Mauritano]. Muitas partes foram expurgadas, mas a mensagem é clara: os Estados Unidos torturaram um homem inocente. O livro tornou-se um êxito de vendas.

Em 2016, Slahi foi libertado, após 14 anos detido sem acusações formais. Na Mauritânia, foi recebido como um herói. Em 2019, soube-se que O Diário de Guantánamo ia ser adaptado ao cinema. Jodie Foster e Benedict Cumberbatch iam ser os protagonistas, e o “oscarizado” Kevin Macdonald seria o realizador. Em 2020, o site do jornal britânico The Guardian publicou o trailer de um documentário em que um dos carcereiros de Slahi viaja até à Mauritânia e os antigos inimigos se tornam amigos. Ou parecem amigos, diz o Senhor X, que não acredita em nada dessa “treta de perdão” de Slahi. As cenas do filme — o passeio nas areias do deserto do Sara, Slahi a rir e a ajudar o seu carcereiro a vestir uma túnica mauritana —, tudo isso foi magistralmente encenado por Slahi. Slahi que generosamente perdoa, o decente David que se mostra superior ao corrupto Golias, a lenda de um herói.

Leitura de uma passagem de Guantánamo Diary durante uma manifestação contra a tortura, em Washington, em Janeiro de 2016 Justin Norman/Flickr


É isto que faz com que o Senhor X hesite durante tanto tempo: teme que Slahi também o use para a sua encenação. Poderia mostrar a todo o mundo: “Olhem, não é apenas um insignificante carcereiro que está a pedir desculpa, é também o meu torturador, e eu também lhe perdoo!” Slahi poderia tornar-se um herói ainda maior.

Será a vontade de o Senhor X confrontar a sua vítima mais forte do que o seu receio de ser instrumentalizado?

Sem máscara, sem óculos escuros

O Senhor X acabou de fazer uma jarrinha feia. Agora tem que ficar a secar. Coloca-a de lado, limpa as mãos a uma toalha e mostra um ar sério. Fica em silêncio durante muito tempo e, por fim, diz: “Vou avançar com isto. Oh, meu Deus!...”

A imagem abana, o som oscila, e por um momento a expressão na face do Senhor X mostra que ele espera que a tecnologia o salve da sua coragem. Mas depois a cara que ele tão bem conhece surge em frente a si no monitor do computador — tão magra como antigamente, mas mais velha. Ao homem no monitor, ao contrário do Slahi de 2003, já quase não resta qualquer cabelo. E Slahi agora usa óculos, com armações pretas.

Já é muito tarde na Mauritânia, quase meia-noite, mas Mohamedou Slahi manteve-se acordado. Também ele recebeu uma visita de um elemento da nossa equipa. A partir dos Estados Unidos, temos mantido, através do telefone, Slahi informado ao longo das últimas horas: houve um atraso, o Senhor X precisa de um pouco mais de tempo.

Agora as imagens estão a surgir num monitor na Mauritânia. A barba grisalha, a cabeça calva, as tatuagens na nuca. Mohamedou Slahi olha para a cara do seu verdugo. Sem máscara, sem óculos escuros.

Senhor X: “Senhor Slahi. Como está?”

Mohamedou Slahi: “Como está o senhor?”

Senhor X: “Menos mal, e você?”

Mohamedou Slahi: “Eu estou muito bem.”

Senhor X: “Ainda bem”

Mohamedou Slahi: “Obrigado por perguntar.”

Senhor X: “Sim, senhor. Eu estava com muitas dúvidas em fazer esta chamada. Mas queria explicar-lhe algumas coisas.”

A primeira vez que o Senhor X o viu foi a 22 de Maio de 2003. O Senhor X estava numa sala de observação em Guantánamo, a olhar através de uma janela espelhada no outro lado. Ali, na sala de interrogatório, Slahi estava a ser interrogado por dois agentes do FBI. Ao longo de quase seis meses, tinham falado com ele quase todos os dias — sem o mínimo sucesso. Já tinha sido decidido que dentro de poucos dias os militares iriam tomar conta da situação, ou seja, o Senhor X e os seus colegas.

 Sala de interrogatório em Guatánamo - a primeira vez que o Senhor X viu Slahi foi através de um vidro espelhado numa destas salas Joe Raedle/Getty Images


Havia uma mesa no meio da sala, com os agentes de um lado e Slahi do outro. O FBI tinha trazido bolos. Um deles, alto e louro, e que se via claramente que era o chefe, estava a folhear um Corão e a dizer algo acerca de uma passagem do livro. Então Slahi levantou-se. Estava sem algemas, sem correntes. Caminhou em volta da mesa, retirou o Corão da mão do agente e disse que não, não, ele estava enganado, tinha que ver aquilo desta e daquela maneira. No final, o Senhor X viu os agentes a abraçar Slahi como se fosse um amigo. “Eu nem queria acreditar...”, conta ele.

O agente do FBI que folheara o Corão chamava-se Rob Zydlow. Também falámos com ele. Vive na Califórnia, reformou-se há alguns meses. Considera que “falhanço” é uma palavra demasiado forte. Mas, sim, no caso de Slahi, o seu plano não funcionou. Tentou com boas maneiras, mas mesmo que ele trouxesse bolos caseiros, como acontecera naquele dia, ou hambúrgueres do McDonald’s, ou assistisse a documentários sobre o mundo animal com Slahi ou o deixasse ensinar-lhe árabe, Slahi simplesmente não falava. Tudo o que ele repetia era: “Estou inocente.”

Já Slahi, por seu lado, afirma hoje que o bolo do FBI estava bom, que o documentário de que mais gostou foi sobre o deserto australiano, e que as tentativas de Rob Zydlow para aprender árabe foram simplesmente ridículas. É verdade que os elementos do FBI tinham sido razoavelmente simpáticos com ele ao longo de meses, mas não tinha nada que dar qualquer resposta a esses agentes. Por outro lado, eles tinham que lhe dar a ele algumas explicações. Por que razão os Estados Unidos o tinham capturado?

Slahi não sabia que naquele dia, por trás do vidro, o homem que ele pouco depois iria conhecer sob o nome de Senhor X estava a assistir. Não sabia que no Pentágono havia um documento a passar de gabinete em gabinete, de assinatura em assinatura, até ao secretário de Estado da Defesa Donald Rumsfeld, indicando exemplos de métodos que este homem poderia utilizar para conseguir que o prisioneiro Mohamedou Slahi confessasse. Um documento que delineava um quadro de actuação, mas que, ainda assim, deixava amplo campo para ideias próprias da equipa de torturadores.

Apesar das sessões regulares de turtura, Slahi não falava. Tudo o que ele repetia era: “Estou inocente" JOHN MOORE/GETTY IMAGES



Rob Zydlow diz que sentiu uma verdadeira “febre de caça” no pessoal do Exército que o substituiu.

O Senhor X conta que foi a uma loja do Exército e comprou um macacão azul. Slahi era alguém que conquistava os outros homens, como provara através do seu relacionamento com os agentes do FBI. Agora, e pela sua lógica, Slahi não iria lidar com um ser humano, mas sim com uma figura de um filme de terror.

Na escola secundária, o Senhor X pertencia ao clube de teatro. Ainda joga a Dungeons & Dragons, um jogo de tabuleiro com elfos, orcs e dragões, lê banda desenhada e adora ficção científica. Enquanto os métodos de interrogatório de alguns dos seus colegas de então se revelavam inacreditavelmente aborrecidos — perguntas, perguntas, perguntas —, ele realmente mergulhava nos seus papéis.

Na noite de 8 de Julho de 2003, o Senhor X vestiu o seu macacão azul, botas da tropa pretas, luvas pretas e um passa-montanhas preto, mais óculos de sol espelhados. Levou Slahi para a sala de interrogatórios e acorrentou-o ao ilhó no chão, mas a corrente era tão curta que Slahi apenas se podia manter de pé se ficasse curvado. Depois o Senhor X ligou um leitor de CD e música heavy metal encheu a sala, ensurdecedoramente alta.

Let the bodies hit the floor/ Let the bodies hit the floor/ Let the bodies hit the floor/ Let the bodies hit the floor (Que os corpos caiam no chão, canção da banda norte-americana Drowning Pool)

O Senhor X pôs a canção em repetição, desligou as luzes, ligou uma luz estroboscópica que emitia raios de luz branca cegante, e saiu da sala. Durante algum tempo, recorda, ficou a assistir na sala ao lado. Mas a música estava tão alta que nem conseguia pensar, pelo que foi até ao exterior do edifício fumar um cigarro.

Slahi diz que tentou rezar, refugiar-se nos seus próprios pensamentos. Não falou.

O Senhor X tentou outras músicas. O hino nacional dos Estados Unidos. Um anúncio de comida para gatos que consistia apenas na palavra “miau”. O Senhor X aumentou a temperatura do ar condicionado até as roupas de Slahi ficarem encharcadas de suor. O Senhor X colocou os pés em cima da mesa em frente de Slahi e contou-lhe que tivera um sonho. Nesse sonho, um caixão de madeira de pinho tinha sido enterrado no solo de Guantánamo. O caixão apresentava um número, o 760, que era o número de prisioneiro de Slahi. Depois gritou histericamente, e foi isso que mais tarde não conseguiu esquecer.

Fizesse o que fizesse, Slahi mantinha-se silencioso.

Fotografia de Slahi captada pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha na prisão de Guantánamo

Senhor X: “Para mim é difícil manter esta conversa, pois não estou convencido da sua inocência. Continuo a acreditar que você é um inimigo dos Estados Unidos. Mas o que lhe fizemos foi errado, não há dúvida acerca disso. Ninguém merece nada daquele género.”

Mohamedou Slahi: “Posso assegurar-lhe que nunca fui um inimigo do seu país. Nunca prejudiquei qualquer norte-americano. De facto, nunca prejudiquei ninguém. Nunca.”

Se Mohamedou Slahi era um terrorista, como pensa o Senhor X, ou inocente, como proclama o próprio Slahi, provavelmente nunca será esclarecido. Talvez a verdade esteja a meio caminho, talvez ele fosse apenas um simpatizante da causa. Aquando da procura de actos criminosos concretos, de acções terroristas por parte de Mohamedou Slahi, falámos com muitas pessoas que lhe eram próximas ou que conheciam bem o seu caso. Com agentes do Gabinete Federal para a Protecção da Constituição na Alemanha, onde Slahi residiu durante 11 anos, elementos dos serviços secretos da Mauritânia e dos Estados Unidos, investigadores e vários membros da Equipa de Projectos Especiais. Consultámos arquivos alemães e norte-americanos. Após anos de pesquisa, não encontrámos nada.

A “febre da caça”

Mohamedou Slahi cresceu a duas horas de distância de carro de Nouakchott, nos contrafortes arenosos do Sara. O seu pai cuidava dos camelos, a sua mãe cuidava dos 12 filhos. Ele era um estudante excepcional, tal como o seu primo Mahfouz, que tinha a mesma idade. Quando eram adolescentes, em meados dos anos 1980, os primos partilharam um quarto. Pela noite fora, liam livros acerca do Islão e desejavam juntar-se aos milhares de jovens de todo o mundo muçulmano que se dirigiam ao Afeganistão para combater os infiéis ocupantes soviéticos. Mas eram demasiado pobres para poderem empreender uma tal viagem. E então Slahi ganhou uma bolsa de estudo na Alemanha.

Em 1990, então com 19 anos, Slahi inscreveu-se num curso de Engenharia Electrotécnica em Duisburgo. Cinco anos mais tarde, já licenciado, começou a trabalhar como engenheiro no Instituto de Microelectrónica Fraunhofer. Agora fabricava microchips para aquela conceituada instituição alemã de investigação, ganhando 4000 marcos por mês.

Esse era um dos lados da vida de Mohamedou Slahi. O outro iniciara-se durante os seus estudos.

Ano de 1990: permanência num campo de treino da Al-Qaeda no Afeganistão. Treinos com armas, juramento de obediência ao emir Osama bin Laden. Ano de 1992: segunda viagem ao Afeganistão, onde os islamitas estavam prestes a derrubar o Governo afegão. Slahi foi colocado numa unidade de artilharia. Dois meses depois, regressou à Alemanha porque, como ele mais tarde justificou, tinha ficado desiludido com as lutas intestinas entre os islamitas — não era o reino de Deus na Terra, semelhante ao Paraíso, que ele havia imaginado.

Nessa altura havia ainda alguns pontos de interesse comuns entre a Al-Qaeda e o Ocidente — afinal de contas, o pessoal de Bin Laden tinha ajudado a expulsar do Afeganistão os ocupantes soviéticos.

Quando perguntamos a Slahi como eram as suas relações com a Al-Qaeda em 1992, após o seu regresso à Alemanha, responde: “Esse capítulo da minha vida estava fechado. Cortei todas as ligações. Parei de ler as revistas, deixei de me informar acerca das actividades da Al-Qaeda, já não tinha amigos dentro da organização, não tive mais contactos, com ninguém, nenhum telefonema, nada.”

Se isto fosse verdade, Slahi teria então voltado as costas à organização antes de esta se virar contra os Estados Unidos. Mas isso não é verdade. Slahi manteve-se em contacto: com o seu primo, com quem partilhara um quarto e que, sob o nome de Abu Hafs al-Mauritani, se tinha, entretanto, tornado um homem de confiança próximo de Osama bin Laden — certa vez, o primo até lhe ligou através do telefone por satélite de Bin Laden. Em contacto com um amigo de Duisburgo que esteve envolvido no ataque à sinagoga de Djerba em Abril de 2002. Com outro amigo, que mais tarde foi condenado por ter planeado um ataque na ilha da Reunião. E Slahi, em Outubro de 1999, em Duisburgo, teve três convidados que passaram a noite em sua casa, um dos quais era Ramzi Binalshibh, que mais tarde viria a ser um dos principais obreiros do 11 de Setembro. Binalshibh disse mais tarde aos seus interrogadores norte-americanos que os outros dois visitantes eram dois dos sequestradores dos aviões. Na reunião em Duisburgo, Slahi aconselhou-os a irem para o Afeganistão.


Mohamedou Slahi cresceu a duas horas de distância de carro de Nouakchott, nos contrafortes arenosos do Saara DR


Slahi não cortou com todos os seus contactos. Pelo contrário, a lista dos seus amigos e conhecidos parece um excerto do directório da Al-Qaeda.

Quando perguntamos a Slahi acerca destes contactos, confirma tudo, mas comporta-se como se fosse um insulto nós trazermos à conversa assuntos tão triviais. Eram seus amigos e aquilo em que os seus amigos acreditavam ou faziam não tinha a nada a ver consigo.

Olhando para todos estes contactos e amizades, não é difícil perceber que o Senhor X e os seus colegas tenham sido contagiados com a “febre da caça”. Era difícil de imaginar tudo o que Slahi poderia saber. Mesmo que ele pudesse estar apenas ligeiramente envolvido.

Talvez ele pudesse levar os investigadores até ao seu primo, o homem de confiança de Bin Laden. Suspeitava-se de que o primo e Bin Laden estivessem em fuga juntos.

Quantas vidas poderiam ter sido salvas se ele, finalmente, tivesse revelado tudo?

O Senhor X afirma que na sua equipa sentiam que estavam a lutar na linha da frente da guerra ao terrorismo. Diz que estava ciente de que, se conseguisse sacar algo significativo de Slahi, o Presidente George W. Bush seria informado pessoalmente.

 Em Outubro de 1999, Slahi teve três convidados que passaram a noite em sua casa, em Duisburgo, na Alemanha, um dos quais era Ramzi Binalshibh, que mais tarde viria a ser um dos principais obreiros do 11 de Setembro Reuters

 Durante semanas, o Senhor X deu cabo de Slahi. Sem resultados. Depois surgiu um novo chefe, um homem de nome Richard Zuley, conhecido como Dick. Diz o Senhor X hoje: “O Dick é um cabrão diabólico.” Diz o próprio Richard Zuley: “Tudo o que o Senhor X tinha conseguido arrancar a Slahi era coisa pouca. Slahi tinha a situação totalmente controlada, nós tínhamos que mudar isso.”

Zuley vive agora numa casa em banda na zona Norte de Chicago. Durante anos trabalhou aí como polícia e agora, já reformado, passa muito tempo no aeródromo onde tem guardado o seu pequeno avião. Quando fala acerca de como se encarregou dos interrogatórios de Slahi, sorri: “Não havia então a mínima dúvida sobre quem estava a comandar...”

Zuley sugeriu a Slahi que a mãe dele poderia ser violada se ele não falasse. E, sob as ordens de Zuley, Slahi foi espancado quase até à morte. Aconteceu num dia no final de Agosto de 2003. Quando o Senhor X viu a cara inchada e ensanguentada de Slahi, diz, ficou chocado. Para ele, esta violência física bruta estava para lá do que era admissível e também não se coadunava com a lista de Rumsfeld. O Senhor X questionou o seu chefe — e no mesmo dia foi afastado do caso.

Quando perguntamos a razão disto, Zuley responde: “Empreguei pessoal que era mais eficaz.” Não notamos qualquer sensação de culpa, apenas orgulho por ter conseguido alquebrar Slahi.

Nessa noite Slahi foi colocado noutra cela. “Não havia nada na cela”, relembra Slahi. “Nem janela, nem relógio. Nada para que eu pudesse olhar na parede. Era apenas solidão. Não sei quanto tempo aquilo durou, nem sequer sabia se era dia ou noite, mas, a determinada altura, bati à porta e disse que estava pronto para falar.”

Após meses de silêncio, Slahi agora falava tanto que Zuley pediu que lhe trouxessem papel e canetas, e, mais tarde, um computador. Slahi escreveu que planeara um ataque à Torre CN em Toronto. Nomeou cúmplices. Desenhou organigramas de células terroristas. Agora Slahi diz que foi tudo inventado.

De facto, os serviços secretos rapidamente levantaram dúvidas acerca da veracidade das informações que a equipa de Zuley lhes estava a enviar. Em Novembro de 2002, Zuley fez um teste a Mohamedou Slahi num detector de mentiras. Slahi renegou a sua confissão e a máquina falhou.

 Sob as ordens de Richard Zuley, Slahi foi espancado quase até à morte. Aconteceu num dia no final de Agosto de 2003 John Moore/Getty Images

 Mohamedou Slahi: “Você sabe tão pouco acerca de mim. Aparentemente, o seu Governo forneceu-lhe muito pouca informação…”

Senhor X: “Deixe-me esclarecer uma coisa...”

Mohamedou Slahi: “Por favor, posso terminar o que estava a dizer?”

Senhor X: “Peço desculpa, por favor, continue.”

Mohamedou Slahi: “O procurador militar que devia acusar-me, Stuart Couch, ao princípio tentou pedir a pena de morte para mim, mas depois percebeu que eu era inocente.”

Onde há fumo há fogo?

Stuart Couch tem agora 56 anos e é juiz. Um homem muito bem vestido, com corte de cabelo militar muito curto e um acentuado sotaque sulista. Numa manhã de domingo, em Janeiro de 2021, temos um encontro marcado num hotel de Charlotesville, no estado da Virgínia. Couch fala acerca da sua família cristã e dos tempos que passou como soldado nos Fuzileiros, que o moldaram. Faz um retrato de si próprio como sendo um homem que foi formado por uma forte crença em valores e regras. Regras que exigiram muito dele quando teve que tomar a mais difícil decisão da sua carreira, na Primavera de 2004.

O Governo dos Estados Unidos ordenou-lhe que ele, o procurador militar, acusasse o mais importante prisioneiro na baía de Guantánamo, Mohamedou Ould Slahi. Obviamente que se tratava de um potencial caso de pena de morte, diz Couch. Afinal de contas, concluíra-se que Slahi deveria ter recrutado os posteriores sequestradores para a Al-Qaeda — tudo isto no encontro no seu apartamento em Duisburgo.

Havia muitas provas circunstanciais do envolvimento de Slahi com a Al-Qaeda, nomeadamente as muitas amizades e contactos. Couch deduziu que, com todo aquele fumo, era apenas uma questão de tempo até se encontrar fogo. “O meu avô costumava dizer: ‘Se te deitas com os cães, apanhas pulgas.’ E, caramba, o Slahi deve ter apanhado mesmo muitas pulgas.”

Fotografias de suspeitos pelos ataques de 11 de Setembro divulgadas depois atentados - Slahi aparece à esquerda GETTY IMAGES


Mas Couch não descobriu fogo — sem sequer a mínima prova. Em vez disso, descobriu outra coisa. Durante uma visita a Guantánamo, ouviu música em alto volume proveniente de uma sala de interrogatório. “Let the bodies hit the floor.” Através de uma fresta na porta, viu luzes brilhantes a piscar. Lá dentro, um detido estava acorrentado ao chão em frente a duas colunas de som.

Aquela cena repugnou-o enquanto ser humano e enquanto cristão, afirma. Enquanto procurador, percebeu imediatamente que, se fizessem a mesma coisa a Slahi, iriam ter um grave problema. O que ele dissera ou iria ainda dizer não teria qualquer relevância em tribunal. “Sob tortura, as pessoas dizem qualquer coisa, seja verdade ou não, o que interessa é que parem a tortura”, declara Couch.

Começou a investigar o que estava a acontecer em Guantánamo. Pouco após ter recebido a confissão de Slahi, ficou com uma certeza: ela não valia nada.

Stuart Couch diz que se debateu consigo próprio durante dias. Não avançar com acusações possivelmente significaria que um terrorista se safaria. Consultou o seu padre. Depois, disse aos seus superiores que se iria afastar do processo.

O caso nunca chegou a tribunal. Apesar disso, Slahi foi mantido preso durante mais 12 anos. Só foi libertado em Outubro de 2016, numa das derradeiras decisões da Administração Obama.

Hoje, quando lhe perguntamos se acredita que Slahi era então um terrorista, Stuart Couch responde: “Não sei...”

O Senhor X diz que tem a certeza. Basta olhar para a forma como Slahi comunica. Ele faz joguinhos — nenhum homem inocente faz isso.

De facto, olhando para Slahi a falar com o Senhor X, por vezes ficamos com a impressão de que estamos a observar um político astuto. O Senhor X diz seis vezes que a tortura nunca deveria ter acontecido. Slahi nunca responde a isto. Em vez disso, fala de outras coisas — a sua inocência, críticas à América. Numa das vezes começa a falar acerca de Chalid Sheikh Mohammed, o principal obreiro do 11 de Setembro, que ainda está preso em Guantánamo. Noutra das vezes, sobre a guerra dos Estados Unidos no Afeganistão.


 Mohamedou Slahi: “O procurador militar que devia acusar-me, Stuart Couch, ao princípio tentou pedir a pena de morte para mim, mas depois percebeu que eu era inocente” Daouda Corena


Senhor X: “Não vou dizer nada acerca de Chalid Sheikh Mohammed, nem acerca de política. Apenas posso falar acerca das técnicas que utilizei. Não as deveria ter usado, nunca deveria ter feito aquilo. Você nunca deveria ter sido maltratado. Você nunca deveria ter sido espancado. Nós não somos assim. Eu não sou assim.”

O Senhor X diz a Slahi que fez uma pintura dele, seis anos após aquele dia de Agosto em 2003. Um óleo de Slahi ensanguentado, com um lábio aberto e um olho inchado. Agora, durante a conversa, pede-nos, aos jornalistas, para enviar uma fotografia do quadro para a Mauritânia através do WhatsApp.

Mohamedou Slahi: “Ah, uau. Este prisioneiro no quadro tem muito melhor aspecto do que o verdadeiro prisioneiro de então.” [e ri-se.]

Senhor X: “Você realmente naquele dia não estava com muito bom aspecto. E esta pintura não é para… é para reflectir o que lhe aconteceu naquele dia.”

O Senhor X pintou o quadro quando tinha acabado de se demitir do Exército. A sua síndrome de stress pós-traumático tinha piorado tanto que já não conseguia trabalhar. O álcool já não ajudava, nem os medicamentos. E então surgiu o quadro. Diz que tinha esperança em que a confrontação artística desencadeasse uma catarse. Mas apenas lhe causou sofrimento. Então destruiu o quadro. Apenas existe uma fotografia dele.

Senhor X: “Tenho que viver com esta vergonha. Talvez isto seja uma pequena vitória para si, que eu tenha que viver com a minha conduta...”

Mohamedou Slahi: “Hum, não sei… Sempre tive a impressão de que você era uma pessoa inteligente. E eu achava difícil acreditar que você me pudesse fazer coisas como aquelas.”

 Para além da olaria, uma das ocupações do Senhor X é a pintura - num dos quadros retratou-se como um monstro


Slahi faz exactamente a afirmação que determina toda a vida do Senhor X. Após a arte não lhe ter conseguido dar uma resposta, tentou a ciência. Inscreveu-se num curso de Estudos Criativos na universidade. Estudou como a criatividade é usada para propósitos maléficos, para anúncios a tabaco, armas de destruição maciça, tortura. Leu estudo após estudo em busca de uma explicação para o facto de ser capaz de tanta crueldade. De todas essas leituras, eis o que retirou: a tendência para a crueldade reside em todos os seres humanos. Irá prevalecer se as circunstâncias assim o permitirem. No seu caso, as circunstâncias eram: um país que ansiava por vingança; um Presidente que exigia resultados; um superior que espicaçava os interrogadores.

“O meu país fez algumas coisas de merda, e eu também as fiz”, diz o Senhor X. “Odeio-me por isso. E odeio o meu país por me ter tornado neste monstro.” Constata isto muito calmamente: “O que fiz foi tortura. Totalmente. Não há dúvidas acerca disso...”

O perdão como vingança

Os poucos estudos que existem acerca de pessoas que foram torturadoras sugerem que há dois tipos de verdugos: os que continuam a viver como se nada tivesse acontecido e os outros, que ficam destroçados. Os cientistas desconfiam de que é a forma como o torturador olha para o mundo que determina em que categoria ele se insere. Por exemplo, se uma pessoa tortura acreditando que é moralmente aceitável torturar um indivíduo para potencialmente salvar milhares de outros, como fez Richard Zuley, então ela tenderá a escapar sem cicatrizes. Se, como no caso do Senhor X, ele tortura contrariando a sua própria humanidade, então a vergonha e a culpa terão maior tendência para causar traumas.

Os sintomas muitas vezes assemelham-se aos das vítimas de tortura. E, em alguns casos, ainda uma outra coisa: uma profunda desconfiança face às instituições. Aqueles que foram obrigados a fazer coisas terríveis em nome de um sistema, de uma ideologia, de um país, por vezes perdem a confiança nesse sistema, nessa ideologia, nesse país.

Por outro lado, Mohamedou Slahi, a vítima, conseguiu algo que os terapeutas raramente detectam. As vítimas muitas vezes afundam-se numa situação de desespero e impotência. Slahi quebrou o seu desespero. Tornou-se um actor.

Pode-se ver muitos vídeos das actuações de Slahi na Internet. Os espectadores muitas vezes parecem realmente emocionados quando ele fala de como recebeu um dos seus carcereiros na Mauritânia. A actriz Jodie Foster, que recebeu um Globo de Ouro pelo seu papel de advogada de Slahi no filme O Mauritano, falou acerca dele num depoimento na cerimónia de entrega dos prémios: “Ensinaste-nos tanto, o que significa ser humano. Cheio de alegria de viver. De amor. De perdão. Adoramos-te, Mohamedou Ould Slahi!”

É sempre isto que comove as pessoas, é por isto que elas o admiram: que ele esteja disposto e seja capaz de perdoar.

Slahi e um dos guardas que o vigiava em Guatánamo, que acedeu ao convite para o visitar na Mauritânia


De certa forma, diz Slahi numa das nossas entrevistas na Mauritânia, para ele o perdão é também uma forma de vingança. Ele está a vingar-se dos seus carrascos e de todos os que lutaram na guerra norte-americana contra o terrorismo durante 20 anos: em frente a todo o mundo, expõe como diabólicos aqueles que pensavam que eram os bons. E apresenta-se a si próprio, o suposto diabo, como sendo o bonzinho.

Mohamedou Slahi: “Quero dizer-lhe isto: eu perdoo-lhe, tal como perdoo a todos aqueles que me causaram sofrimento. Perdoo a todos os norte-americanos…”

Senhor X: “Está bem...”

Mohamedou Slahi: “… do fundo do meu coração. Quero viver em paz com vocês.”

Senhor X: “Para mim é importante frisar que eu não pedi o seu perdão. Eu tenho é que perdoar a mim mesmo.”

Isto não está a resultar para o Senhor X, que afasta Slahi. Os dois não encontram um ponto comum. Segue-se uma última tentativa, Slahi experimenta outro tema.

Mohamedou Slahi: “Como se sente hoje? É casado? Tem filhos?”

Senhor X: “Não vou falar acerca da minha família ou de onde vivo, do que faço ou do que não faço. As coisas são assim, camarada.”

A conversa durou 18 minutos e 46 segundos e termina em frustração para ambos os lados.

Mohamedou Slahi: “De qualquer forma, desejo-lhe tudo de bom.”

Senhor X: “Desejo-lhe o mesmo.”

Mohamedou Slahi: “Acredito que você é aquilo que faz. Perdoo-lhe do fundo do meu coração, mesmo que não mo peça.”

Senhor X: “Não faz mal. Não tenho mais nada para lhe dizer. Adeus, senhor Slahi.”

Mohamedou Slahi: “Adeus.”

Quando a videochamada termina, os dois continuam sem se reconciliar, o agressor fraco e com dúvidas, e a vítima forte.

Quando uma pessoa tortura outra, trata-se de uma situação íntima. Há lágrimas, gritos, dor, medo, nudez. Um torturador vê coisas que normalmente apenas um cônjuge vê — ou nem isso. O Senhor X e Mohamedou Slahi são, ao mesmo tempo, íntimos e estranhos. Sabem tudo o que há a saber acerca do outro — e, simultaneamente, não sabem nada. Nesta conversa, em que parece que não têm nada em comum, fica claro que existe uma coisa que eles, de facto, partilham: oito semanas em Guantánamo no Verão de 2003 transformaram-nos naquilo que são hoje.

Mohamedou Slahi vive essencialmente da sua história, daquilo que lhe fizeram. O seu sofrimento não lhe trouxe apenas dor e pesadelos, mas também riqueza e prestígio. Casou com uma advogada de direitos humanos que trabalhava em Guantánamo e teve um filho com ela. Deu a volta ao seu destino.

Na vida do Senhor X, quase tudo seguiu no sentido oposto. Já não vota no Partido Republicano, como costumava, mas sim nos democratas. Já não é a favor da pena de morte, mas contra ela. Já não tem sequer a certeza de se quer continuar a viver nos Estados Unidos da América e está a pensar em emigrar.

O Senhor X passou muitos anos a ensinar técnicas de interrogatório a jovens soldados e agentes do FBI. No começo de cada curso havia sempre alguém que afirmava: “A tortura deve ser permitida.” Ele respondia: “Não, absolutamente, não. A tortura cobra um preço elevado. Não apenas à pessoa que a sofre, mas também àquela que a exerce”. Depois, às vezes, falava acerca de si próprio.

Um dos autores deste trabalho, John Goetz, é jornalista de investigação na NDR, estação do serviço público de radiotelevisão da Alemanha. Já tinha feito peças sobre Mohamedou Slahi em 2008. Após Slahi ter sido libertado de Guantánamo em 2016, Goetz visitou-o na Mauritânia. Slahi comunicou-lhe então o desejo de se encontrar com os seus torturadores. Goetz saiu em busca destes e descobriu, entre outros, o homem que Slahi indicava como o seu principal carrasco: o Senhor X. Bastian Berbner, editor do semanário Die Zeit, juntou-se-lhe na pesquisa em 2021. Seguiram-se deslocações às moradas de Slahi e do Senhor X, bem como entrevistas com investigadores, elementos dos serviços secretos e membros da equipa de tortura de Guantánamo. A reportagem saiu no dia 2 de Setembro de 2021 no Die Zeit.

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