domingo, 11 de setembro de 2022

Barbara Ehrenreich (1941-2022), a jornalista e activista que desafiou o sonho americano


Barbara Ehrenreich durante uma conferência em Pasadena, Califórnia, em 2006. A escritora tinha 81 anos FREDERICK M. BROWN/GETTY IMAGES

 
Escreveu mais de 20 livros sobre as injustiças sociais e as fragilidades do sistema de saúde norte-americano com o objectivo de dar voz às pessoas desfavorecidas. “Como jornalista, procuro a verdade. Mas, enquanto pessoa moral, sou também obrigada a fazer qualquer coisa quanto a isso”, dizia Barbara Ehrenreich.


Nina Muschketat 11 de Setembro de 2022



O que via na América não lhe agradava e não foi capaz de guardar os seus pensamentos “sombrios e furiosos” só para si mesma. Ao longo de meio século, Barbara Ehrenreich escreveu sobre o seu país enquanto activista política e feminista, apontou o dedo, sugeriu melhorias, moveu pessoas. Não descansou até ao dia em que, pela primeira vez, não teve hipótese de contra-argumentar — mas é provável que tenha preferido assim, uma vez que há anos que se achava “velha o suficiente para morrer” e vinha a criticar a relutância da sociedade em aceitar a inevitabilidade da morte. A jornalista e activista morreu no passado dia 1 de Setembro num hospital na Virgínia, depois de um AVC, confirmou a sua filha, Rosa Brooks. Tinha 81 anos.

Foi uma vida de luta. Pelos pobres, pelas mulheres, pelos trabalhadores explorados, pelas pessoas “normais” que vivem iludidas pelo mundo de infinitas oportunidades evocado pelo “sonho americano”. Barbara Ehrenreich quis dar voz a estas pessoas, pelo que fez das suas palavras enquanto jornalista (e também doutorada em Biologia Celular) a sua principal arma.

Escreveu mais de 20 livros sobre as injustiças sociais nos EUA e as fragilidades do sistema de saúde norte-americano, mas foi com Nickel and Dimed: On (Not) Getting By in America (2001) que alcançou o maior sucesso. Com ele mostrou como estava disposta a sentir o que outros sofriam para poder retratá-lo com a maior acuidade possível: questionando-se sobre a forma como os americanos sobreviviam com um salário mínimo de sete dólares por hora, Ehrenreich (que na altura trabalhava para a revista Harper) resolveu vestir a pele de empregada de mesa ou de limpeza, ou ainda de funcionária de supermercado.

Três anos depois, saía o resultado do seu trabalho, cuja conclusão era clara: são necessários pelo menos dois destes empregos — que lhe “absorveram” toda a sua “energia” e “intelecto”, notou no livro —, em simultâneo, para se conseguir ganhar a vida. “Um emprego não é necessariamente a cura para pobreza”, diria mais tarde, em entrevista ao canal de televisão Democracy Now.

 Barbara Ehrenreich em 2001. A jornalista criticava a relutância da sociedade contemporânea em aceitar a inevitabilidade da morte Bryan Chan/Los Angeles Times via Getty Images


“Muitas pessoas elogiaram-me pela minha coragem por ter feito isto, ao que apenas podia responder: ‘Milhões de pessoas fazem este tipo de trabalho todos os dias durante toda a sua vida, não reparou neles?’”, afirmou quando recebeu, em 2018, o Prémio Erasmus, que distingue uma pessoa ou instituição pelo seu contributo nas áreas das humanidades, ciências sociais ou artes. O livro acabou por impulsionar o movimento social nos EUA em prol de salários melhores.

Na verdade, esta vida de classe operária que viveu enquanto jornalista infiltrada não lhe era estranha, uma vez que cresceu, em Butte, Montana, com uma mãe que se ocupava das tarefas domésticas e um pai que trabalhava numa mina de cobre. Mais tarde, porém, este tirou um doutoramento em Metalurgia e chegou ao cargo de director de investigação num instituto em Massachusetts, obrigando a família a mudar-se por várias vezes. “Dificilmente posso reivindicar quaisquer raízes geográficas”, escreveu a autora no seu site oficial.

Depois de sair do Reed College, em Portland, em 1963, Barbara Ehrenreich doutorou-se em Biologia Celular na Universidade Rockefeller, em Nova Iorque, onde conheceu John Ehrenreich, o seu primeiro marido.

Manteve-se ainda alguns anos no mundo académico enquanto professora universitária. Mas já aqui mostrava sinais da sua faceta activista e feminista, falando com frequência sobre temas como as condições precárias das clínicas públicas em Nova Iorque, com as quais se deparara durante o nascimento da sua filha Rosa, em 1970. A falta de uma boa “rede de segurança, infra-estruturas sociais e preparação para emergências” torna os americanos “vulneráveis”, apontaria 50 anos depois, em entrevista à revista New Yorker.

 O rei Willem-Alexander da Holanda e Barbara Ehrenreich, que foi reconhecida em 2018 com o Erasmus Prize Patrick van Katwijk/Getty Images

A partir de 1974 dedicou-se exclusivamente à escrita, sempre a pensar nos outros. “Assim, para mim, sentar-me todo o dia a uma secretária não era apenas um privilégio, mas um dever: algo que eu devia a todas aquelas pessoas na minha vida, vivas e mortas, que tinham muito mais a dizer do que alguém alguma vez ouviu”, escreveu na introdução da obra Nickel and Dimed.

Além dos mais de 20 livros, também publicou ensaios e artigos no New York Times, na The Washington Post Magazine, The Atlantic ou Harper, cruzando sempre o jornalismo com o activismo. “Como jornalista, procuro a verdade. Mas, enquanto pessoa moral, sou também obrigada a fazer qualquer coisa quanto a isso”, lê-se no seu site.

Recentemente, criou uma plataforma, o Economic Hardship Reporting Project, para que as pessoas possam erguer a sua própria voz, facultando a publicação de artigos e fornecendo ajuda financeira a profissionais mais necessitados.

Desde 2000, quando foi diagnosticada com cancro da mama, que a saúde de Barbara Ehrenreich se vinha a deteriorar. Recusava “aceitar uma vida medicada”, escreveu em 2018, citada pelo Washington Post, o que vai ao encontro do seu livro Natural Causes, publicado no mesmo ano. Como explicou numa entrevista à PBS NewsHour, “passamos tanto tempo a prolongar a nossa vida, ou a tentar prolongá-la, que ficamos sem tempo para vivê-la”.

Por duas vezes se casou e divorciou. Barbara Ehrenreich, que curiosamente manteve o apelido do primeiro marido, deixa dois filhos, três netos e um livro a meio sobre a evolução do narcisismo.

E um repto para os que ainda têm voz darem continuidade à sua lucidez e trabalho em prol da mudança. “Podem honrar a sua memória amando-se uns aos outros e lutando que nem loucos”, apelou o seu filho Ben Ehrenreich, também jornalista.

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