segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Dedicado a Beatriz Lebre

Nick Cave

A mãe de Beatriz Lebre escreveu uma carta a Nick Cave. Deu passos em volta daquilo que a filha amava. É uma forma de a encontrar.



Carmo Afonso 5 de Setembro de 2022

Quando acontece uma tragédia como a que aconteceu a Beatriz Lebre, assassinada por um colega da faculdade em 2020, há um derramamento de matéria corrosiva.

Para os mais próximos o efeito persiste. A intensidade da dor e a força do amor alimentam-se mutuamente e adiam a despedida. Torna-se preciso manter viva a ligação a quem já partiu. Saberão muitos do que estou a falar. Nick Cave também sabe. Perdeu dois filhos.

Foi através do The Red Hand Files – a plataforma onde Nick Cave recebe cartas e escritos dos seus admiradores e, aqui o detalhe que a torna especial, onde os lê e lhes responde – que recebeu uma carta da mãe de Beatriz Lebre. Tem existido algum mistério à volta da plataforma: saber se é mesmo Nick Cave o interlocutor das pessoas que tentam estabelecer contacto com ele. Sim, foi a resposta que Nick Cave deu este sábado à noite no festival Meo Kalorama.

Nick Cave criou a plataforma depois da morte do seu filho, Arthur, e, diz-se, na sequência de muitas cartas que recebeu de pessoas que também estavam de luto e que queriam falar sobre isso. O mote é “You can ask me anything. There will be no moderator. This will be between you and me. Let´s see what happens. Much love, Nick.”


Visitem o site: https://www.theredhandfiles.com/hard-to-find-happiness/. São diálogos de dor e de filosofia, mas também algumas notas leves. São publicadas apenas as perguntas (ou escritos; alguns não contêm nenhuma pergunta) às quais Nick Cave responde. E é interessante verificar que não está publicada a carta da mãe de Beatriz Lebre. Interessante porque demonstra que, mesmo o que não é respondido e publicado, é lido.

E recomendo algumas publicações. Vão à número 23, a carta de um homem que perdeu a mulher e ficou, sozinho, com uma filha de dois anos. Diz que quer ser feliz, até porque sabe que isso é importante para a filha, mas que não consegue. A pergunta que faz a Nick Cave, e a resposta dele, merecem leitura. Já agora vão depois à publicação número 187: uma segunda carta do mesmo homem, três anos depois. Conseguiu.

A mãe de Beatriz Lebre escreveu uma carta a Nick Cave. Deu passos em volta daquilo que a filha amava. É uma forma de a encontrar. É importante fazer alguma coisa, uma ação, para redimir o luto. Poucos terão conhecido Beatriz Lebre e não faço parte desse grupo. Agora muitos mais saberão da sua história e saberão que existe uma mãe que não desiste de o ser. Conheço e, mesmo sem conhecer, acompanho mais mães assim. Não dão tréguas na luta contra a lei do esquecimento.

“Esta canção é dedicada a Beatriz Lebre. Recebi uma carta muito bonita, no The Red Hand Files, da sua mãe. Ela disse na carta que esta é uma canção que ela amava muito. Isto é para a Beatriz.” Estas foram as palavras de Nick Cave, no sábado à noite, antes de cantar Into my arms, música com que encerrou aquele que foi o último concerto da tournée. É um hino para os que gostam de Nick Cave, uma música e uma letra que condensam a fórmula que Nick Cave tem de aceder às profundezas das pessoas.

Para a maioria dos artistas, sobretudo os que estão em processo criativo, cantar “aquela canção”, ou tocar “aquela música”, não é estimulante ou prazeroso. É o que acontece com o Creep dos Radiohead ou com o Parola do Donato Dozzy. Vamos lá ver: cada artista ou banda tem o seu próprio Into my arms e, normalmente, muito pouca vontade de o repetir em palco. Não é o caso de Nick Cave. Canta canções para a sua audiência. As canções são instrumentos na relação que estabelece com o seu público.

Diz quem lá esteve que, no sábado à noite, Nick Cave fez a sua magia. A dedicatória a Beatriz Lebre representa uma dedicatória à mãe dela e a todas as pessoas que vivem um luto. A música também pode servir como salvação; a história de Beatriz Lebre não teve um final feliz, mas agora Nick Cave acrescentou-lhe um capítulo.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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