Hieronymus Bosch, A Nave dos Loucos, c. 1490-1500 |
Ao expor, de maneira profética, as características daquele a que chama o último homem, Nietzsche fornece-nos um quadro que estaremos dispostos a reconhecer, sem esforço, em muitas situações dos tempos actuais. Entre outros aspectos, o último homem tornar-se-á «incapaz de gerar uma estrela dançante» (1), modo poético de aludir ao niilismo passivo, à abolição do entusiasmo e até à perda de interesse por questões um pouco mais profundas, «com medo de estragar a digestão» (2). O retrato inclui aquilo que podemos descrever como ditadura da uniformidade: «Todos quererão a mesma coisa, todos serão iguais.» (3) Haverá, no entanto, excepções. Mas quem tiver um sentimento distinto do do rebanho «entrará voluntariamente no manicómio» (4).
Para o autor de Assim Falava Zaratustra, o último homem é inseparável de um contexto marcado pela esperança no advento do super-homem. Vislumbra-se, pois, uma saída, concorde-se ou não com os valores que o super-homem perfilha. O problema é que nos faltam garantias de que a realidade apresentada não evolua, antes, para uma espécie de indiferenciação absoluta e irreversível, por efeito simultâneo de factores genéticos e sócio culturais, neutralizando a emergência de traços de autenticidade ou de alento criador. Nessa altura, se se der o caso milagroso de sobrar algum resistente à tirania instalada, o «entrar voluntariamente no manicómio», por paradoxal que o gesto se nos afigure, será a derradeira tentativa de conservar ainda a mente sã.
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