domingo, 14 de julho de 2013

Política e teatro


Václav HavelPresidente da República Checa entre 1993 e 2003 e último Presidente da Checoslováquia (1989-1993)

Texto originalmente publicado em 1997

Recentemente li um artigo intitulado A política como Teatro, uma crítica de tudo o que tentei fazer na política. Argumentava que, em política, não há lugar para um reino tão supérfluo como o do teatro. Realmente, nos primeiros meses da minha presidência, algumas das minhas ideias demonstravam mais talento teatral do que visão política. Mas o autor errou numa questão fundamental: ele entendeu mal quer o significado da palavra teatro quer uma dimensão crucial da política.

Aristóteles escreveu uma vez que todo o drama ou tragédia requerem um começo, um meio e um fim, com o antecedente a seguir o precedente. O mundo, experimentado como um ambiente estruturado, inclui a dimensão dramática inerente de Aristóteles e o teatro é uma expressão do nosso desejo de uma forma concisa de compreender este elemento essencial. Uma peça de não mais de duas horas apresenta sempre, ou visa apresentar, uma imagem do mundo e uma tentativa de dizer algo a respeito deste.
Uma das definições de política afirma que esta é a conduta, a preocupação com e a administração dos assuntos públicos. A preocupação com os assuntos públicos significa, obviamente, a preocupação com a humanidade e o mundo, o que exige um reconhecimento da autoconsciência da humanidade no mundo. Eu não vejo como pode um político conseguir isto sem reconhecer o drama como um aspecto inerente ao mundo tal como é visto pelos seres humanos e, portanto, como uma ferramenta fundamental da comunicação humana
A política sem um começo, um meio e um fim, sem exposição e catarse, sem gradação e sem sugestibilidade, sem a transcendência que desenvolve um drama real, com pessoas reais, num testemunho sobre o mundo é, na minha opinião, uma política castrada, coxa e desdentada.
Nem sempre sou bem-sucedido em praticar aquilo que prego, mas trabalho para uma política que sabe que é importante o que vem primeiro e o que se segue, uma política que reconhece que todas as coisas têm uma sequência e uma ordem certas. Acima de tudo, é uma política que percebe que os cidadãos – sem teorizar, como estou a fazer neste momento – sabem perfeitamente se as acções políticas têm direcção, estrutura, uma lógica no tempo e no espaço, ou se lhes faltam essas qualidades e são meras respostas dadas ao acaso para as circunstâncias.
Num palco limitado, em tempo limitado e com números ou ajudas limitados, o teatro diz algo sobre o mundo, sobre a história, sobre a existência humana. Explora o mundo, com o objectivo de o influenciar. O teatro é sempre o símbolo e a sigla. No teatro, a riqueza e a complexidade de ser são compactadas num código simplificado que tenta extrair o que há de mais essencial da substância do universo e transmiti-lo ao seu público. Isto, na verdade, é o que os seres pensantes fazem todos os dias. O teatro é simplesmente uma das muitas formas de expressar a capacidade humana de generalizar e compreender a ordem invisível das coisas.
O teatro possui igualmente uma habilidade especial para fazer alusão e expressar múltiplos significados. A acção mostrada em palco irradia sempre uma mensagem mais ampla, sem que esta seja necessariamente expressa em palavras. É um fragmento da vida organizado de forma a transmitir algo sobre a vida como um todo. A natureza colectiva de uma experiência teatral não é menos importante: o teatro pressupõe sempre a presença de uma comunidade – actores e público – que o experimentam juntos.
Todas estas qualidades têm contrapartidas na política. Um amigo disse uma vez que a política é "a soma de todas as coisas concentradas". Engloba o direito, a economia, a filosofia e a psicologia. Inevitavelmente, a política é teatro também – teatro como um sistema de símbolos que se nos dirige como um todo, como indivíduos e como membros de uma comunidade e que testemunha, através do evento específico em que se materializa, os grandes acontecimentos da vida e do mundo, reforçando a nossa imaginação e sensibilidade. Não consigo imaginar uma política bem-sucedida sem uma consciência destas coisas.
Os símbolos que a política utiliza são, por natureza, teatrais. Hinos nacionais, bandeiras, decorações, feriados, não significam muito por si mesmos, mas os significados que evocam são instrumentos do auto-entendimento de uma sociedade, são ferramentas para criar a consciência da identidade social e da continuidade. A política também está carregada de símbolos a outros níveis menos visíveis. Quando o presidente da Alemanha veio a Praga, pouco depois da nossa Revolução de Veludo, em 15 de Março de 1990 (o 51.º aniversário da ocupação nazi de terras checas), não teve de dizer muito, pois o facto de a sua visita ser naquele dia foi suficientemente revelador. Igualmente auspicioso foi o facto de o presidente francês e o primeiro-ministro britânico terem chegado quando se celebrava um aniversário do Acordo de Munique.Os actos políticos simbólicos assemelham-se ao teatro. Também eles envolvem alusão, multiplicidade de significados e sugestibilidade. Também eles retratam uma realidade resumida, fazendo uma associação essencial sem serem explícitos. E também eles dispõem de um quadro ritual universalmente aceite que resiste ao teste do tempo.
Nem mesmo os cépticos podem negar um dos aspectos da teatralidade na política: a dependência da política relativamente aos meios de comunicação social. Muitos políticos iriam sentir-se desamparados se não tivessem formadores para lhes ensinar as técnicas de actuação frente a uma câmara. Todos os políticos, incluindo aqueles que escarnecem do teatro considerando-o supérfluo, algo que não tem lugar na política, tornam-se involuntariamente actores, dramaturgos, directores ou entertainers.
O papel significativo que uma sensibilidade teatral desempenha na política tem duas facetas. Quem o detém pode despertar a sociedade para grandes feitos e nutrir a cultura democrática, a coragem cívica e um sentido de responsabilidade. Estas pessoas podem igualmente mobilizar os piores instintos e paixões, criar fanatismo nas massas e conduzir as sociedades para o inferno. Recordem-se os gigantescos congressos nazis, as procissões de archotes, os discursos inflamados de Hitler e Goebbels e o culto da mitologia alemã. Dificilmente se poderia encontrar um abuso mais monstruoso da faceta teatral da política. E actualmente – até na Europa – os governantes usam ferramentas teatrais para despertar o tipo de nacionalismo cego que conduz à guerra, à limpeza étnica, aos campos de concentração e ao genocídio.
Então, onde está o limite entre o respeito legítimo pela identidade nacional e pelos símbolos e a música diabólica dos flautistas de Hamelin, os magos negros e os hipnotizadores? Onde terminam os discursos apaixonados e começa a demagogia? Como podemos reconhecer o ponto a partir do qual a expressão da necessidade da experiência colectiva e dos rituais de integração se convertem em manipulação perversa e agressão à liberdade humana?
É aqui que encontramos a enorme diferença entre o teatro como arte e a dimensão teatral da política. Uma actuação teatral louca por um grupo de fanáticos faz parte do pluralismo cultural e, como tal, ajuda a expandir o reino da liberdade sem representar uma ameaça para ninguém. Uma actuação louca por parte de um político fanático pode mergulhar milhões numa calamidade sem fim.
Então o drama da política exige não um público, mas um mundo de actores. Num teatro, as nossas consciências são tocadas, mas a responsabilidade termina quando o pano cai. O teatro da política faz exigências permanentes a todos nós, como os dramaturgos, actores e público – ao nosso bom senso, à nossa moderação, à nossa responsabilidade, ao nosso bom gosto e à nossa consciência.

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