sábado, 20 de julho de 2013

AGIR (IN)UTILMENTE


Salvador Dalí, O Farmacêutico de Ampurdán à Procura de Absolutamente Nada, 1936.
Séneca escreveu que «durante grande parte da vida agimos mal, durante a maior parte não agimos nada, durante toda a vida agimos inutilmente» (1). As três ideias são discutíveis. A primeira reclama um esclarecimento, alusivo ao significado do agir mal, e um estudo susceptível de nos fornecer a percentagem do agir mal e do bem agir. A segunda apela a que se defina com exactidão o conceito de agir, porventura destacando a intenção, os movimentos do corpo e os repousos do espírito. A terceira exige uma análise em vários parágrafos.
Dispensando agora as subtilezas que a noção deagir implica, fácil nos é achar uma lista de contra-exemplos que inviabilizem a perspectiva ali exposta. Naturalmente que a existência individual, encarada de forma abrangente, poderá ser tida por inútil – se se admitir que ela um dia se reduzirá a pó, disperso ou concentrado –, mas não em suas acções concretas, que servem de condição de possibilidade a diferente s modos de estar, de fazer ou de reflectir, e menos ainda no caso de, afastando o egocentrismo, a julgarmos profícua para as vidas dos semelhantes.
Se, indo mais longe, colocarmos a sinistra hipótese de ser a espécie humana uma presença inútil, ou uma inútil paixão, emendar-nos-emos ao considerá-la uma espécie virtualmente útil às demais – tese que, no entanto, a realidade poucas vezes ajuda a sustentar.
Se nem um panorama assim nos deixa satisfeitos, então voltemo-nos para o conjunto indeterminado e universal dos seres, dos deuses, dos objectos, do imaginável, do insensato, do dito e do que ficou por dizer. “Qual a utilidade desta paisagem metafísica, imensa e embaraçosa?”, perguntar-se-á. Se tal “paisagem” for vista em termos de "lucro global", a sua utilidade é nenhuma, porque nada há de exterior a ela que dela extraia algum proveito.Talvez fosse isso que Séneca tivesse no seu estóico entendimento ao declarar que agimos inutilmente a vida inteira. A Totalidade carece de um para quê. Em rigor, nem sequer seria correcto afirmar que ela é inútil. Ela transcende as categorias da utilidade e da inutilidade: é só no seu interior que o útil e o inútil surgem e se apagam – e que o filósofo cultiva a liberdade, mesmo se o louco imperador o obriga a cortar os pulsos.

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