Como o Pedro estava a atulhar o prato com delícias do mar, chamei-lhe a atenção para a existência de pedaços de lagosta no bufete frio do restaurante de rodízio. Achava preferível que ele se banqueteasse com o verdadeiro produto, que nem todos os dias estava ao seu alcance, em vez de se empanturrar com aqueles baratos sticks de contraplacado, aromatizados com extracto de caranguejo e tingidos de vermelho por fora.
Estávamos a jantar no Chimarrão da Expo, antes de assistirmos ao arranque da Up Tour, dos REM, no Pavilhão Atlântico. Como só tinha 11 anos, o meu filho encarou a sugestão como uma ordem, mas depois de provar a lagosta confessou gostar mais das delícias do mar.
Tem a ver com a maneira como o nosso gosto é educado. O meu filho Pedro estava tão habituado ao sucedâneo que estranhou o paladar do produto. Tem também a ver com o facto de, por norma, nós apenas gostarmos do que já gostamos e querermos o que já quisemos.
Eu próprio, viciado em salmão de aviário - que apenas ganhou a sua cor característica graças à acção de um corante -, temo estranhar o sabor se um dia, numa escala em Anchorage, Alaska, ou algures junto à foz de um rio escocês, me aterrar no prato uma posta de salmão selvagem.
Vem esta deriva gastronómica a propósito do sistema político em que vivemos, a que nos habituamos a chamar democracia, apesar de, bem vistas as coisas, ter tanto a ver com a democracia original como as delícias do mar com a lagosta.
Há bem mais tempo do que seria desejável, os dois pilares em que tradicionalmente assentava a democracia - a igualdade dos cidadãos e a soberania do povo - deixaram de ser observados pelos administradores do regime político vigente, de acordo com a opinião dos mais directamente interessados na matéria: o povo.
Consultada pelo Barómetro da Qualidade da Democracia, uma larga maioria representativa de 59% dos portugueses acusa a Justiça de tratar os cidadãos de maneira diferente, consoante o seu estatuto económico, social e político. Basta recordar o caso Isaltino para ficarmos conversados sobre o princípio da igualdade dos cidadãos.
O mesmo barómetro revela que 78% dos cidadãos acham que os políticos se preocupam apenas com os seus interesses e que as decisões políticas no nosso país favorecem sobretudo os grandes interesses económicos. Ou seja, também estamos conversados sobre o princípio da soberania do povo.
A regeneração do nosso sistema político implica que os governantes encarem o dinheiro público como sagrado e percebam que deve ser o Governo a trabalhar para os cidadãos e não os cidadãos a trabalhar para alimentar o Governo.
A qualificação da nossa democracia exige, ainda, que todos nós tenhamos consciência que o Estado não dá nada, apenas distribui o que recebe de nós, cobrando para si uma gorda comissão que alimenta um anafado aparelho de Estado que não há meio de emagrecer.
Morte aos tolos pessimistas
A fantástica galeria de personagens do Tintin ficou mais rica, em
Charutos do Faraó, com a chegada de Oliveira da Figueira, bem disposto
comerciante, sempre pronto a oferecer um cálice de Vinho do Porto para
agilizar a conversão em cliente e amigo de um novo conhecido.
A facilidade em convencer os outros a comprar-lhe artigos de utilidade duvidosa é a principal característica deste português, a que Hergé recorreu em mais três aventuras (No País do Ouro Negro, Carvão no Porão e Jóias da Castafiore). Menino para vender ventoinhas as esquimós e aquecedores na Guiné, Oliveira da Figueira simboliza o desenrascanço e o espírito aventureiro que fazem parte do nosso código genético e se revelaram em todo o seu esplendor na empresa dos Descobrimentos e da expansão marítima, em que demos novos mundos a conhecer ao Mundo, enquanto fazíamos negócio com o ouro da Mina e a pimenta da Índia. Este nosso jeito não desapareceu com o fim do Império e foi ele que, aliado à grande capacidade exportadora da indústria do Norte, poupou o país à bancarrota na dúzia de anos que mediou entre a perda das colónias e a admissão no clube que nos deu dinheiro fácil. Após 25 anos em que a fonte que jorrava de Bruxelas disfarçou a incompetência da governação, assegurada à vez por PS e PSD, Portugal volta a balouçar à beira do abismo, por culpa de um modelo errado de desenvolvimento que apostou todas as fichas nos serviços e em Lisboa, criou uma abundante classe de corruptos e parasitas (Duarte Lima e Oliveira e Costa são apenas a ponte do iceberg) e negligenciou a agricultura e a indústria, produtoras de bens transaccionáveis. Um quarto de século volvido, são novamente as PME e o Norte que estão a impedir o país de ir pelo esgoto abaixo. Com três motores (investimento e os consumos público e privado) em desaceleração, as exportações, que no 1.oº trimestre cresceram 11,6%, são o único motor que mantém o avião da nossa economia a voar, creio que na boa trajectória. Face a este formidável desempenho, os velhos do Restelo preferem chamar a atenção para o abrandamento de Março (em que as exportações cresceram 8,3% face aos 13,5% dos dois primeiros meses), esquecendo-se de referir a grande queda no consumo verificada em Espanha (que absorve 1/4 das nossas vendas externas) e na Alemanha nesse mês em que as importações caíram 10%. As cassandras catastrofistas acusam Vítor Gaspar de um "optimismo incompreensível" por prever para 2012 um aumento de 3,4% nas exportações, que, recordo, cresceram 11,6% no 1.0º trimestre, e 7,9% no ano passado - uma excelente surpresa face às estimativas de que apenas subissem 2,2%. Em vez de se entregarem a inúteis exercícios de autoflagelação, os tolos pessimistas, que olham para os dois lados antes de atravessarem uma rua de sentido único, fariam melhor em aplaudir de pé os heróis que fazem de Portugal o país da Zona Euro onde mais crescem as exportações - apesar das extremas dificuldades no acesso ao crédito e a seguros de exportação. O caso das prostitutas gregas
Um dos feitos maiores do cavaquismo, de que o
próprio Aníbal mais se orgulhou à época, foi conseguir tirar Portugal da
cauda da Europa, quando passámos aos gregos a lanterna vermelha do
último lugar na estatística do PIB per capita na UE. Foi uma enorme
alegria patriótica mas não durou muito, por causa não só da esperteza
dos gregos mas também dos alargamentos que levaram a casa europeia a
crescer da antiga dúzia para os actuais 27.
Os gregos sempre foram muito marotos, e em 2006, num golpe de magia abençoado por Bruxelas, aumentaram o seu PIB em 25%, através de uma mudança do método de cálculo da riqueza produzida, que passou a contabilizar o contrabando de tabaco, a lavagem de dinheiro e o valor acrescentado produzido pelas prostitutas. Esta operação bizarra não foi inédita. Em 1987, a Itália tinha feito crescer o seu PIB em 15% num passe idêntico, que pôs os italianos a serem estatisticamente mais ricos que os ingleses. Estes aumentos artificiais têm efeitos práticos bastante simpáticos numa data de estatísticas importantíssimas. Ao aumentar em 25% o PIB, mediante a incorporação do suposto valor acrescentado produzido de actividade ilegais, Atenas reduziu automaticamente o défice de 2,4% para 1,9%. A simplicidade desarmante destes truques contabilísticos obriga-nos a olhar com desconfiança para as estatísticas que nos servem diariamente e estão a transformar a nossa vida num pesadelo - pois só de pensar no futuro ficamos logo com dores de cabeça. Se o Eurostat autorizasse o INE a reavaliar em alta o nosso PIB, pondo uma lupa em cima do contributo da economia subterrânea, tiraria um grande peso de cima de Vítor Gaspar, que veria facilitada a tarefa de cumprir as metas que prometemos à troika - mas, na vida real, continuaríamos tão pobres ou tão ricos como antes desse exercício de carácter iminentemente ficcional. As estatísticas valem o que valem - e na maior parte das vezes valem pouco. Sabe como é calculada a contribuição para o PIB de professores, médicos e enfermeiros do SNS, militares, políticos e restantes funcionários públicos? É simples. O contributo deles para a ficção da riqueza nacional medida pelo PIB é calculado pelo que ganham e gastam. Dito por outras palavras. O recuo do PIB é umas das consequências negativas de um saudável emagrecimento do Estado e diminuição das suas despesas. Ao baixar em 25% o poder de compra dos funcionários públicos, o Governo está também a encolher o PIB! As estatísticas valem o que valem - e na maior parte das vezes valem pouco, como o demonstra a anedota do homem que casou com a sua mulher a dias. Ela continuou a fazer a mesmas coisas que fazia enquanto era solteira, mas como o homem lhe deixou de pagar, ao passar de patrão para marido, o PIB diminui, apesar de tudo levar a crer que eles ficaram mais felizes. Moral da história. O que temos a fazer é não levar isso do PIB muito a sério - e sermos felizes. O que é ser preguiçoso na cama?
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