quinta-feira, 6 de junho de 2013

Ligações perigosas: a vigilância oculta na Internet.

por Marcos Dantas [*]
entrevistado por Coryntho Baldez



As grandes corporações privadas que actuam na internet, como Google e o Facebook, não apenas usam o enorme volume de dados que possuem sobre os utilizadores como fonte de benefícios financeiros.
Elas são capazes, hoje, de exercer um refinado controle ético e político sobre os indivíduos, de acordo com Marcos Dantas, professor titular da Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

"Estas corporações detêm informações quotidianas sobre os nossos hábitos e gostos, nível educacional, opção política e religiosa, que o próprio Estado não tem", alerta o Prof.Marco Dantas, que lecçiona as disciplinas de "Sistemas e Tecnologias de Comunicação" e "Economia Política da Comunicação".

Nesta entrevista, o docente afirma ainda que cerca de 70% das comunicações da internet no mundo estão nas mãos de uma única empresa norte-americana: a Level Three. E, segundo ele, quem financia a construção da imensa infraestrutura física necessária para a internet funcionar – "o mundo virtual é mera ideologia" – é o capital financeiro.

Marcos Dantas não acredita que o movimento Cypherpunks, liderado por Julian Assange e que defende a criptografia como meio de preservar os direitos civis das pessoas e a soberania dos povos, seja uma solução para democratizar a Internet. Para isso, em sua opinião, será preciso um amplo processo de mobilização política que coloque em xeque o poder das grandes corporações de controlar a rede.

UFRJ Plural – Muitos dos que defendem e ajudam a construir uma internet livre, como Julian Assange, o criador do WikiLeaks, temem que ela se transforme em centro de vigilância dos cidadãos por parte de Estados imperiais. Qual a sua avaliação sobre isso?

Marcos Dantas – Acho que é uma preocupação importante, lúcida e necessária. Mas, sob esse aspecto, também há controle da vida do cidadão por parte das grandes corporações . Não é só o Estado que preocupa. Diria até que é menos o Estado que preocupa. Isto porque, se o Estado é democrático, ele também pode ser vigiado pelos cidadãos. As grandes corporações privadas não. As pessoas não sabem o que é feito com os seus dados. E as organizações privadas não somente controlam e fazem dessas informações uma fonte de muito dinheiro, mas também podem exercer um controle ético e político sobre os indivíduos. E, eventualmente, ser fonte de informação para o próprio Estado.

UFRJ Plural – A política de privacidade do Google tem sido alvo de várias críticas. No início deste mês, inclusive, alguns governos da Europa decidiram investigá-la mais a fundo. Por quê?

Marcos Dantas – Eles temem exactamente que corporações como o Google, o Facebook, a Microsoft e a Apple substituam o Estado no controle do cidadão. E passem a deter informações e orientar as práticas das pessoas em função dos interesses delas, e não dos interesses públicos. Essas corporações não são públicas e, hoje, são detentoras de enorme quantidade de informações quotidianas de todos nós, de hábitos e gostos, que o próprio Estado não possui. Elas têm informações até sobre a nossa saúde, o nosso nível educacional, as nossas opções políticas, religiosas, que o Estado não tem. Com isso, passam a ter o poder de orientar a vida dos cidadãos.

UFRJ Plural – Os utilizadores do Google e das redes de relacionamento, especialmente o Facebook, têm alguma ideia do uso de suas informações privadas para obtenção de lucro, à sua revelia?

Marcos Dantas – Nenhuma. Vou contar um caso pessoal que estou a viver neste exacto momento. Há alguns dias, comprei um smartphone mais moderno. E acabo de descobrir que, se eu quiser fazer uma transferência de um arquivo de números telefônicos que está no meu computador para o aparelho, tenho que entrar numa nuvem controlada pela Microsoft. O funcionário da loja afirmou que só é possível fazer essa transferência dessa maneira. Ora, não vou dar as minhas informações privadas e os meus contactos para a Microsoft.

UFRJ Plural – Isso ocorre em qualquer sistema operacional?

Marcos Dantas – Comprei um com windows phone [sistema operacional móvel desenvolvido pela Microsoft], da marca Nokia. Mas com o sistema android acontece o mesmo. Quando alguém compra um smartphone, a primeira coisa que faz é ligar-se à internet. Abrir um endereço no Google, se for android, ou então na Microsoft, se for o windows phone. A partir daí, toda transacção que se fizer pelo smartphone, seja baixar um dado ou marcar uma agenda, vai passar pelos servidores de uma dessas duas corporações. Por exemplo, se eu marcasse no aparelho a agenda da entrevista que estamos realizando, ela ficaria reigistada na Microsoft.Ou seja, o meu quotidiano é controlado. Quando as pessoas usam o smartphone para qualquer tipo de transação, não têm a menor consciência de que estão fazendo um trabalho de graça para essas empresas. É a mais-valia mais absoluta que existe no mundo, um traballho gratuito para enriquecer Bill Gates. E também um repasse de informações poderosas para que essas organizações possam controlar o mundo!

UFRJ Plural – Mas não há o risco de essas informações migrarem para determinados Estados para que se faça uma vigilância política sobre os cidadãos?

Marcos Dantas – Não tenho nenhuma dúvida de que, na história dos Estados Unidos, as grandes corporações, ao longo de todas as épocas, desde os tempos da famosa Standard Oil, sempre foram instrumentos da política norte-americana. E vice-versa, ou seja, o Estado abria caminho para a expansão de suas grandes empresas. As novas corporações norte-americanas, como o Google e a Microsoft, se já não são, serão instrumentos do poder imperial, numa perfeita simbiose.

UFRJ Plural – Existem na rede iniciativas com potencial libertário, como o WikiLeaks, e também sites e blogueiros que fazem circular informações omitidas na mídia tradicional. Essas iniciativas ainda não são capazes de contrabalançar a influência que o grande capital exerce sobre a internet?

Marcos Dantas – Não, porque se baseiam em princípios, na minha avaliação, equivocados. Elas não colocam a crítica ao capital como fundamento das suas propostas. Se isso não acontecer, essas inciativas permanecerão no plano do idealismo. Obviamente, permitem chamar a atenção e alertar a sociedade de que outro mundo é possível, o que é um aspecto positivo. Mas elas não colocam em questão o cerne do problema, o fato de que quem alimenta essa engrenagem são as relações capitalistas de produção e o capital.

UFRJ Plural – A Primavera Árabe é apontada como exemplo de que a internet também pode estar a serviço de movimentos democráticos de massa, de um novo modo de fazer política. Qual a sua avaliação sobre isso?

Marcos Dantas – Na verdade, superestimaram essas tecnologias. Elas foram usadas como meio de comunicação e, dessa forma, são extremamente eficientes. Em vez de eu pegar o telefone para convocar alguém para uma reunião, posso usar o Twitter ou o Facebook, e fazer isso com muito mais velocidade. Mas as grandes manifestações não são espontâneas. Vou dar um exemplo de uma época em que a internet não existia. Em 1968, mataram um estudante no Rio de Janeiro, o Edson Luís, e uma semana depois 100 mil pessoas estavam nas ruas protestando contra a ditadura militar. Mas esse fato foi apenas o estopim que gerou uma mobilização extraordinária. Antes já havia um processo de debate político acumulado entre jovens universitários, além de partidos políticos clandestinos atuantes. Se, por hipótese, os debates e reuniões que se faziam para discutir ações de resistência tivessem sido feitos em redes de amigos de Facebook, a polícia bateria em cima nos primeiros encontros. Outro exemplo foi quando o Collor estava sofrendo o processo de impeachment e convocou o povo a usar verde e amarelo. Como já havia uma mobilização contra o governo, os brasileiros usaram o preto como forma de protesto, numa manifestação nacional que não precisou de Twitter ou Facebook para acontecer. E na Primavera Árabe um dos líderes das mobilizações no Egito era um executivo do Google. Isso já diz tudo.

UFRJ Plural – Pode-se considerar preocupante o fato de todas as comunicações via internet da América Latina para a Europa ou a Ásia passarem pelos Estados Unidos?

Marcos Dantas – Pior do que isso. Cerca de 70% das comunicações da internet no mundo estão nas mãos de uma única empresa norte-americana, chamada Level Three .

UFRJ Plural – E como isso funciona?

Marcos Dantas – A rigor, para que a internet funcione, é preciso uma imensa estrutura física. O mundo virtual é mera ideologia. São necessários cabos, satélites, torres, servidores espalhados pelo mundo. É uma estrutura caríssima. Fazer um blog é barato, basta dispor de tempo, mas não seria possível sem essa estrutura física, que requer milhares de milhões de dólares de capital. Como ela é muito cara, poucas organizações no mundo podem fazer os investimentos necessários para construí-la e operá-la. Ou o Estado constrói esse tipo de estrutura, e hoje em dia ele não faz mais isso, ou grandes corporações financeiras o fazem. E é exatamente o capital financeiro que está por trás da Level Three, da AT&T, da British Telecom ou da Telefônica. Basicamente, as estruturas de comunicação servem ao capital financeiro nas transferências de fundos ao redor dos mercados mundiais.

UFRJ Plural – Essas redes passam, então, pelo centro de poder do capital financeiro?

Marcos Dantas – Sim, e obviamente pelos centros de poder militar também. Como acontece desde o tempo da telegrafia, essa infraestrutura tem sempre, acima do Equador, uma direção horizontal, ou seja, Estados Unidos, Europa e, cada vez mais, o Japão. E no sul tem uma direção sul-norte, da América do Sul para os Estados Unidos e para a Europa. Então, é claro que, se houver uma série crise internacional, essa configuração pode pesar na balança. Se o Brasil quiser fazer hoje uma comunicação com a África, terá que, necessariamente, passar pela Europa.

UFRJ Plural – Julian Assange afirma que a China está oferecendo a alguns países da África a construção de infraestrutura de backbones de acesso à internet em troca de grandes contratos comerciais. E aponta isso como a possibilidade de se configurar um novo colonialismo no século XXI. Como você avalia essa questão?

Marcos Dantas – Da mesma maneira que, no século XIX, os ingleses construíram ferrovias no Brasil e na Argentina. No Brasil, em São Paulo, para escoar café. E na Argentina, em Buenos Aires, para escoar carne. Na Índia, construíram uma malha ferroviária importante porque precisavam dela para movimentar o seu exército, porque lá a briga era dura. Portanto, os meios de comunicação sempre foram instrumentos fundamentais na geopolítica do poder. E a China está hoje construindo uma alternativa de poder geopolítico aos Estados Unidos, olhando os seus interesses muito bem olhados. Está sabendo por onde pode se expandir, e com muita inteligência.

UFRJ Plural – Por quê?

Marcos Dantas – Porque a África é um continente que foi completamente abandonado pelo Ocidente, depois de ter sido espoliada até dizer chega. É um estorvo para o grande capital o que fazer com aquela região. Quando eles estão se matando numa guerra e os humanistas pedem intervenção para evitar um genocídio, qual é a reacção do grande capital e de seus governos? Deixa se matarem! É o que acontece a todo instante nos mais variados lugares da África. Só intervieram no Mali porque lá tem urânio, matéria-prima que interessa à França porque 70% da energia do país é nuclear. Então, a China, com a velha estratégia de avançar pelo elo mais fraco, está se expandindo na África a fim de construir cabeças de ponte para um projecto estratégico de longo prazo.



16/Abril/2013

[*] (*) Entrevista publicada na edição de 15/abril/2013 do UFRJ Plural, boletim eletrônico da Coordenadoria de Comunicação da UFRJ.

O original encontra-se em www.plural.ufrj.br/007/entrevista.php

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