domingo, 29 de novembro de 2020

Vítor Oliveira, o treinador que conquistou a promoção por cinco temporadas consecutivas

 

Vitor Oliveira

O legado indelével de Vítor Oliveira, treinador com vasta carreira no futebol português, que morreu este sábado, aos 67 anos, luziu com 11 promoções e seis títulos na II Liga, atribuindo um inigualável epíteto de 'rei das subidas'.

Em 18 presenças no segundo escalão, o técnico levou duas vezes à elite o Paços de Ferreira, em 1990/91, quando dava os primeiros passos na carreira, e em 2018/19, e, pelo meio, promoveu Académica (1996/97), União de Leiria (1997/98), Belenenses (1998/99), Leixões (2006/07), Arouca (2012/13), Moreirense (2013/14), União da Madeira (2014/15), Desportivo de Chaves (2015/16) e Portimonense (2016/17).


Vítor Manuel Oliveira nasceu em 17 de novembro de 1953, em Matosinhos, e jogou no Leixões, Paredes, Famalicão, Sporting de Espinho, Sporting de Braga e Portimonense, entre 1970 e 1985, contribuindo para o regresso dos famalicenses à I Liga em 1977/78.

Um ano depois, o ex-médio assumiu as funções de treinador-jogador do Famalicão por dois jogos, em substituição do argentino Mário Imbelloni, sem evitar a descida ao escalão secundário, tendo efetivado a carreira nos bancos desde 1985 com o Portimonense.

Vítor Oliveira orientou 18 clubes durante mais de três décadas, 10 dos quais na I Liga, e quase nunca prosseguiu os projetos de subida consumados, à exceção de Paços de Ferreira (1991/92), Belenenses (1999/2000) e Portimonense (2017/18).

"Às vezes é melhor estar na II Liga a jogar para subir do que estar na I Liga a perder e a desgastar-me. Nessas duas propostas, prefiro uma equipa da II. Gosto de futebol e de treinar, seja na I ou na II, mas bom mesmo é estar na I Liga", explicou em 2015.

Vítor Oliveira cumpriu 17 temporadas na I Liga, à qual regressou em 2019/20 para orientar o Gil Vicente - na sequência do 'caso Mateus' e a partir do Campeonato de Portugal -, obtendo a 10.ª posição, com 43 pontos, 10 acima da zona de despromoção.

Os 'galos' foram o clube mais treinado pelo matosinhense na carreira, com três passagens distintas por Barcelos (1992/95, 2001/03 e 2019/20), que ajudaram a superar a marca dos 400 jogos como treinador principal na I Liga, em setembro de 2019.

Após duas épocas iniciais em Portimão, onde voltou entre 2016 e 2018, o técnico ainda trabalhou na elite com Paços de Ferreira (1991/92), Vitória de Guimarães (1995/96), Sporting de Braga (1998/99), Belenenses (1999/00) e União de Leiria (2007/08).

Nesse trilho, integrou as descidas de Académica (2003/04) e Moreirense (2004/05) à II Liga, nas quais foi rendido por João Carlos Pereira e Jorge Jesus, e viu o União da Madeira, em 2015/16, a ser o único clube despromovido após subir sob o seu comando.

Dono de um discurso fácil e frontal, que originou várias declarações marcantes sobre o futebol português, Vítor Oliveira passou pela III Divisão em 1988/89, quando contribuiu para a subida do Maia, duas décadas antes de ser coordenador técnico do Leixões.

Durante vários anos impôs a si mesmo a condição de recusar convites para orientar os 'bebés do mar' enquanto o pai fosse vivo, evitando que uma família de pescadores conhecida em Matosinhos ouvisse comentários infelizes das pessoas da terra.

As primeiras épocas com o Leixões foram conciliadas com o curso de engenharia eletrotécnica da Universidade do Porto, que podia ter ficado concluído logo após ter pendurado as chuteiras, se não fosse o estímulo de Manuel João e Manuel José.

O então presidente e o técnico do Portimonense, de saída para o Sporting, foram fulcrais para que Vítor Oliveira se estreasse nos bancos, aos 31 anos, desbravando um percurso dourado, sem ligações aos três 'grandes' e com vários convites estrangeiros recusados.

Desse currículo ressaltam seis títulos (1990/91, 1997/98, 2006/07, 2013/14, 2016/17 e 2018/19) e quatro prémios de melhor treinador da II Liga, além da presença na Supertaça Cândido de Oliveira de 1997/98, que o Sporting de Braga perdeu frente ao FC Porto (1-0 e 1-1).

Com mais de 1.000 jogos disputados no futebol português, Vítor Oliveira privilegiou a contratos de um ano, dispensou relações com empresários e escolheu sempre onde queria trabalhar, cultivando o respeito de jogadores, treinadores, dirigentes e adeptos.

Nas últimas semanas, estreou-se no comentário televisivo, depois de ter anunciado uma pausa na carreira de treinador, finalizada com uma manutenção surpreendente pelo Gil Vicente, no qual se cruzou com o diretor-geral Dito, que tinha falecido em setembro.

Reconhecido pelo perfil discreto e honesto, capaz de assumir as culpas próprias, Vítor Oliveira morreu hoje, aos 67 anos, depois de se sentir indisposto enquanto caminhava na zona de Matosinhos, confirmou à agência Lusa fonte próxima da família.

A morte acontece na mesma semana em que o futebol português viu partir José Bastos, antigo guarda-redes do Benfica, e Reinaldo Teles, histórico dirigente do FC Porto, além da comoção mundial provocada pela morte do ex-futebolista argentino Diego Armando Maradona.

Um Homem Normal

The Guardian 
Desde que começou como treinador há 32 anos, Vítor Oliveira conseguiu 22 empregos em 17 clubes e foi promovido 10 vezes

Por Will Sharp para o These Football Times , da Guardian Sport Network

Vitor Oliveira, o rei da segunda divisão portuguesa. Fotografia: Gualter Fatia / Getty Images

Exerceu 22 cargos de gestão em 17 clubes portugueses ao longo da sua longa e contínua carreira, Vítor Oliveira tem demonstrado uma extraordinária e irreprimível veia nómada. Mas o jovem de 63 anos é conhecido em Portugal por muito mais do que apenas o seu desejo de viajar. Ao longo de sua carreira de 32 anos como técnico, Oliveira foi promovido 10 vezes, incluindo cinco consecutivas sem precedentes em suas últimas cinco temporadas.

Depois de convocar uma carreira indefinida como jogador em junho de 1985, o meio-campista de 31 anos foi rapidamente nomeado treinador de seu clube mais recente, o Portimonense , que por acaso é o clube que dirige hoje. Ele mostrou pouco da habilidade que o ajudaria a fazer seu nome em seu primeiro emprego e logo se viu procurando um emprego alternativo. Depois de uma breve passagem pelo FC Maia , Oliveira assumiu o Paços de Ferreira , onde alcançou a primeira de muitas promoções no final da terceira temporada completa. Oliveira liderou a sua equipa da segunda divisão portuguesa e manteve-a no topo na temporada seguinte, melhorando a sua reputação e ganhando uma passagem de três anos como treinador do famoso Gil Vicente , antes de passar paraVitória de Guimarães .

A passagem de Oliveira por Guimarães revelou-se nada favorável e em menos de um ano voltou a navegar, desta vez para liderar um ambicioso projecto na Académica de Coimbra . A mudança foi inspirada e ele garantiu a segunda promoção de sua carreira na temporada 1996-97, levando a Académica ao topo. Oliveira ficou apenas mais uma época na Académica após a sua promoção, antes de optar por mais uma mudança de cenário, assumindo o cargo de União de Leiria . Ele ficou por uma única campanha, apenas o tempo suficiente para levar o time ao título da liga e, claro, à promoção à Primeira Liga.

O sucesso em Leiria deu-lhe a oportunidade de gerir o Braga , oportunidade que mostrou que a sua carteira estava a subir. Mas, depois de apenas três vitórias nos primeiros 14 jogos do campeonato, Oliveira voltou a olhar para o sul - geográfica e competitivamente - ao regressar à categoria que conhecia tão intimamente, ao trabalhar no Belenenses . Ele chegou algumas semanas antes do Natal, mas, no final da temporada, havia garantido um segundo lugar na liga e um retorno imediato ao topo - a primeira promoção do clube em quase uma década e a quarta de Oliveira em nove temporadas .

Então veio uma espécie de período estéril, o pior da carreira de Oliveira até então. Manteve o seu credo saltitante, entrando e saindo de passagens curtas por clubes antigos e novos - Rio Ave , Gil Vicente, Académica, Moreirense - mas não conseguiu repetir o sucesso recente. As coisas melhoraram na época 2006-07, altura em que ajudou o Leixões a conseguir a promoção, mas depois vieram mais seis anos de relativa dificuldade, com passagens por União de Leiria , Trofense e Aves a trazerem poucos sucessos.

Felizmente para Oliveira, este período de estagnação foi o precursor de uma mudança completa na sorte, uma vez que a sua mudança para Arouca em 2011 trouxe um período de sucesso surpreendente, mesmo para os seus próprios elevados padrões. Oliveira levou o Arouca ao segundo lugar na temporada 2012/13, garantindo a sua sexta promoção, depois desistiu em busca de uma segunda passagem pelo Moreirense, onde conquistou o quarto título da segunda divisão, junto com a sétima promoção.

O União da Madeira foi o próximo a receber a sorte de sua técnica de escolha de carreira de fechar os olhos e apontar no mapa. Eles garantiram seus serviços no verão de 2014 e, com certeza, terminaram em segundo lugar no mês de maio seguinte e ganharam a promoção aparentemente inevitável ao topo, onde se juntaram a nove dos ex-clubes de seu treinador.

Não que ele ficasse para desfrutar da companhia. Quando o clube estreou na primeira divisão, Oliveira saiu em busca de mais uma festa de promoção, desta vez com o Chaves . Outro segundo lugar em 2015-16 trouxe Oliveira a sua quarta promoção em outras tantas temporadas.

No ano passado, Oliveira deu uma volta completa à sua carreira de treinador ao ingressar no Portimonense, clube onde a sua grande jornada tinha começado há 32 anos. E como exatamente se saiu seu antigo clube com Oliveira? Eles ganharam promoção, é claro, como campeões nem menos.

Enquanto outro longo verão se passa, o fascínio de uma sexta promoção em seis anos deve atrair o treinador. Mas Oliveira diz que quer ficar no Portimonense. “Vou continuar em Portimão,” disse no final da temporada. Se ele conseguirá ou não reprimir seu impulso de abandonar uma divisão em busca de outra promoção, resta saber. Talvez ele continue e tente ganhar a Primeira Liga, uma liga que ele ainda não conquistou.



terça-feira, 24 de novembro de 2020

O futuro (provavelmente brilhante) das big tech

 

Donald Trump acendeu uma disputa comercial com a China e, a reboque disso, atropelou a Huawei. Decidiu abrir guerra ao TikTok, a primeira aplicação social chinesa a singrar no Ocidente. Tornou-se uma dor de cabeça para o Facebook e o Twitter, que já tinham problemas em lidar com a desinformação mesmo sem um Presidente americano tóxico. Além disto, foi na recta final da Administração Trump que os executivos de topo de algumas das maiores empresas tecnológicas foram ouvidos no Congresso.


É por tudo isto que é interessante a pergunta feita neste artigo: Qual o futuro das gigantes tecnológicas numa presidência Biden?

As respostas dadas pelos especialistas ouvidos pela Karla Pequenino apontam para um regresso a alguma normalidade. “Esperamos ver menos uso de agências governamentais e ordens executivas para punir plataformas de tecnologia sobre temas que não são do interesse público”, disse a investigadora de Yale Farzaneh Badiei.

Porém, Trump não foi a única coisa que aconteceu nestes últimos anos.

O futuro das grandes empresas tecnológicas assenta num contexto mais vasto: uma pandemia que veio alterar hábitos de consumo e de trabalho; a perda de reputação do mundo da tecnologia; e a ascensão tecnológica chinesa.

No que concerne à pandemia, as chamadas big tech – Amazon, Apple, Google, Microsoft e Facebook – surgem como grandes vencedoras. Sem excepção, apresentaram bons resultados financeiros, viram as acções subir (em alguns casos, estrondosamente), beneficiaram com o teletrabalho, com o acelerar da digitalização das empresas, com o aumento das encomendas online e com a necessidade de mais entretenimento caseiro.

Do ponto de vista regulatório, o que se vai passar nos EUA tem mais importância do que as investidas europeias. A União Europeia tem mão mais pesada sobre as gigantes americanas, mas os processos são lentos e, mesmo quando culminam em multas recorde, não resultam em mudanças de fundo. Do outro lado do Atlântico, o precedente da Microsoft no final da década de 1990 joga a favor da manutenção destas enormes corporações.

Na questão da responsabilidade no espaço público (um assunto que toca mais em algumas destas big tech do que noutras), 2020 deixou o copo meio cheio. O Facebook, em particular, esforçou-se por resolver as suas falhas (dada a pressão pública, não tinha grandes hipóteses) – mas chega-se ao fim de um ciclo com a sensação de que a desinformação é uma nódoa entranhada.

Surge também a questão de saber quão feroz será a concorrência chinesa face às empresas americanas (a Europa é espectadora neste jogo). A Apple já há muito que lida com rivais asiáticos (a começar pela sul-coreana Samsung e pela Huawei). O TikTok mostrou que é possível uma rede social chinesa conquistar utilizadores que o Facebook (mesmo com o Instagram) tinha problemas em cativar. Será que a médio prazo, poderão, por exemplo, os gigantes chineses do comércio online – Alibaba, JD.com e Pinduoduo – perturbar à Amazon mais perto de casa? E quem ganhará terreno na corrida da inteligência artificial? Na China, o Estado, com menos preocupações éticas e de privacidade, proporciona condições mais férteis para o desenvolvimento de algumas destas tecnologias.

Por fim, o que os últimos tempo mostraram é que as big tech são tão poderosas (e espalhadas por tantas áreas de negócio) que é possível que se tenham tornado à prova de crise económica e de investida política. A façanha não se deve apenas ao tamanho. Estas empresas granjearam recursos que lhe permitem andarem há anos (há décadas, em alguns casos) a inventar o futuro. E é sempre mais fácil prosperar num futuro que conseguimos desenhar.

 João Pedro Pereira

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Palácio da Comenda

Depois de anos de abandono, o palácio da Arrábida que serviu de refúgio a Jackie Kennedy foi vendido por 50 milhões

Pertenceu a Vasco da Gama e à Rainha D. Maria II e, ao longo do século XX, foi casa de veraneio do Conde D'Armand e dos seus amigos da alta sociedade e realeza europeia. Agora vai ser a residência privada de um casal de milionários


A Comenda é um local tão belo que chega a parecer irreal. Como se flutuasse nas margens de um outro mundo, onde o tempo desacelera e as perturbações da civilização vizinha não têm forma de entrar.

É num promontório sobre o rio Sado que se ergue um palácio com cinco pisos e 26 quartos, desenhado pelo arquitecto Raul Lino, em 1903, para servir de residência de veraneio ao Conde D’Armand, ministro de França.

Tem uma praia privada e das grandes janelas e varandas que rasgam a fachada avistam-se apenas as matizes de azul do estuário, do mar e do céu. Recortada contra o horizonte, como que à deriva, a ilha de Tróia. Nas traseiras da Comenda, e em toda a envolvente, estende-se “outro mar”, em tons de verde: 600 hectares de floresta, em zona de reserva integral do Parque Natural da Serra da Arrábida.


Foi ali que Jacqueline Kennedy se refugiou, logo após o assassínio do presidente JFK, em 1963. A princesa Lee Radziwill, irmã mais nova de Jackie, era amiga da família D’Armand, e já tinha passado alguns dias inesquecíveis de verão no palácio português – numa das ocasiões levando consigo o escritor Truman Capote, um dos seus confidentes mais próximos.


Alguns anos antes da tragédia, as duas irmãs viajaram juntas pela Europa e voltavam frequentemente às águas quentes do Mediterrâneo, mergulhando nas ilhas gregas ou na francesa Cote D’Azur. Mas era ali, na Arrábida, que estava o que Jackie Kennedy precisava naquele momento de luto: o mar, sempre o mar, mas também paz e silêncio, longe dos holofotes do mundo.


Depois da morte de Kennedy, Jacqueline fez o luto no palácio da Comenda, por sugestão da sua irmã mais nova

Jackie e Lee, bem como outras figuras da alta sociedade e realeza europeia, foram as últimas personalidades a frequentar a casa de veraneio dos nobres franceses, que a venderiam poucos anos depois.

O construtor português António Xavier de Lima tornou-se proprietário da Casa da Comenda a partir dos anos 1980 e com a sua morte, em 2009, os herdeiros colocaram-na à venda. Foram precisos 11 anos para aparecer o dono certo para o palácio: alguém que, além de pagar 50 milhões de euros, aceitasse preservar as características do edifício histórico e manter intocados os 600 hectares de terreno em volta.

O palácio da Comenda, na Arrábida, em Setúbal, é uma das obras mais belas do arquitecto Raul Lino, tendo sido construído entre 1903 e 1908



À partida é um local que parece perfeito para um hotel de charme, mas como explica Filipe Lourenço, CEO da Property Luxury Real Estate, que realizou a venda deste palácio, sem autorizações para construir naqueles terrenos de reserva integral tornar-se-ia difícil obter retorno num investimento tão avultado. Surgiram vários interessados ao longo dos anos e, em três ocasiões, ofereceram até “valores superiores ao solicitado”, revela o CEO desta imobiliária, especializada na venda de imóveis de luxo.

O palácio da Comenda precisa de obras profundas, no valor de vários milhões de euros, depois de anos de abandono. As estruturas principais estarão preservadas, mas o telhado desabou parcialmente, há zonas do chão dos pisos superiores que cederam, todas as portas e janelas estão partidas, as paredes foram grafitadas e os painéis de azulejos roubados.

Palácio da Comenda, na Arrábida

Como foi possível deixar ao abandono um edifício como este, ninguém sabe. Certo é que se arrasta desde 2004 um processo de classificação do imóvel, primeiro no IPPAR, depois na Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), estando neste momento “em vias de classificação”.

Esse estatuto, obtido em 2017, já lhe confere alguma protecção, no que a intervenções arquitectónicas futuras diga respeito. Mas o Estado não podia intervir numa propriedade particular, pelo que a Comenda teve de ficar à espera que um “príncipe” a resgatasse da morte certa a que parecia condenada.

O casamento foi oficializado em Dezembro de 2019, como confirma Filipe Lourenço à VISÃO, depois de três anos e meio de namoro. Irá ser a residência privada de um casal de milionários, que prefere manter o anonimato.

Palácio da Comenda, na Arrábida

Segundo o jornal Diário da Região Setubalense, na última reunião pública camarária foi comunicado que o Parque da Comenda e o estacionamento e acesso à praia de Albarquel, que fazem parte da propriedade privada, poderão vir a manter a utilidade pública, mas as negociações com os novos proprietários não se avizinham fáceis.

O parque de estacionamento já está inacessível (o jornal Setúbal Mais noticiou que foi “destruído”) e o Parque da Comenda, que foi alvo de profundas obras de melhoramento realizadas pela Câmara de Setúbal, poderá ter de encerrar ao público até final deste ano. A autarquia estará ainda a tentar negociar ainda a livre passagem nos trilhos para caminhadas, nomeadamente naquele que integra a rota do Caminho de Santiago.

À VISÃO, fonte do gabinete da presidência do município disse apenas que “a situação está a ser acompanhada de perto”.

De torre medieval a “prémio” para Vasco da Gama

Este local encerra uma história que começou, pelo menos, nos tempos do império romano. Como explica Isabel Sousa de Macedo, da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, no trabalho A Casa da Comenda de Raul Lino: de torre medieval a residência de veraneio, “se, no dealbar do século XX era o lugar de implantação de uma estância de veraneio aristocrática, quinze séculos antes, em pleno domínio romano, servia de cenário a um complexo industrial” e, “pelo meio, foi palco de importantes episódios na história da nação”.

Ali se fixou a Comenda de Mouguelas, pertencente à Ordem de Santiago, que construiu a “torre” ou “fortaleza” de Mouguelas, conjunto edificado que, mais tarde, no âmbito das obras de reforço defensivo da Restauração, foi transformado na plataforma de S. João da Ajuda.

O mestre da Ordem de Santiago doou mais tarde a Comenda a Pedro Salgado, tesoureiro-mor de D. Dinis, que, durante mais de 20 anos recebeu os rendimentos da propriedade que, nesse início do século XIV, incluíam “uma torre-fortaleza, casas, vinhas, gado, entre outros bens de natureza agrícola”.

Em 1495, o notável cavaleiro da Ordem de Santiago, Vasco da Gama, é agraciado com a Comenda de Mouguelas por D. Jorge de Lencastre, filho ilegítimo de D. João II, duque de Coimbra e governador da Ordem de Santiago. A propriedade ficará na sua posse até 1507.

Segundo documentação encontrada por Isabel de Sousa Macedo, em 1506, enquanto a Comenda se encontrava ainda sob a posse de Vasco da Gama (agora já feito almirante após uma bem sucedida segunda viagem à Índia (1502/1503), D. Manuel I convocou vários elementos das autoridades municipais de Lisboa, para uma “reunião secreta”, no dia 4 de maio, em Mouguelas.

Uma epidemia de peste assolava Lisboa, determinando a mudança da corte para locais não contagiados. A rainha, Maria de Aragão e Castela, encontrava-se recolhida em Abrantes, enquanto o rei se encontrava em Setúbal. “Daí que fosse natural que, necessitando o rei de se reunir para tratar de algum assunto, convocasse os intervenientes para junto de si, evitando deslocações maiores do monarca”, diz a investigadora. Em Mouguelas “existia acomodação na torre de vigia e demais dependências que aí se localizavam, e seriam dignas para a “aposentadoria” dos visados.

Transformada em fortaleza de São João da Ajuda depois de 1640, a Comenda de Mouguelas permaneceria propriedade da nobreza portuguesa até 1848, quando foi vendida pela Rainha Dona Maria II ao rico comerciante Agostinho Rodrigues Albino, que detinha o monopólio do tabaco.

A propriedade viria a ser comprada pelo conde D’Armand em 1872, por cinco contos de réis. Ernest Armand tinha sido chefe de Gabinete do Ministro dos Negócios Estrangeiros de França e assumido vários postos diplomáticos na Europa. Foi após a sua “valorosa prestação” em Roma, junto à Santa Sé, que o Papa Pio IX lhe conferiu o título de conde, em 1867.


Em 1870 foi colocado em Lisboa, arrendando um palácio em Santos, usando depois a Comenda como retiro de fim de semana. Em 1898 a casa foi herdada pelo filho varão do conde, Abel Henri Georges Armand, militar de carreira, que ali decidiu realizar obras profundas, para criar uma residência de verão onde pudesse passar férias com os seus cinco filhos e convidar membros das famílias reais europeias com quem privava.

Projeto de Raul Lino para o Conde D’Armand, 1903


Em 1903, o n.º 104 da revista de arquitectura A Construção Moderna apresentava a futura “Casa do Ex.mo Sr. Conde de Armand”, desenhada pelo jovem arquitecto Raul Lino:

A construção é feita num pequeno promontório, de luxuriante vegetação, sobranceiro ao rio Sado, em Setúbal, posição extremamente pictoresca, como podem attestá-lo aquelles que tem visto as ridentes margens do bello rio, junto à linda cidade de Bocage.

No citado promontório existe actualmente uma velha casa, cujas paredes, em parte, se aproveitam pois foram levantadas sobre as muralhas de um antigo forte. As grandes varandas da nova construcção deitam para sobre o rio.

O sr. Conde d’Armand entendeu, e muito bem que, no meio de uma paisagem caracteristicamente clássica, em qua abundam as oliveiras, os pinheiros, as agaves, figueiras da Índia e palmeiras, cyprestes, etc., não se deveria collocar um edifício que não fosse de uma grande simplicidade, com grandes superfícies lisas, não regulares e com uma silhueta serena, que esteja em harmonia com aquelas amenas paisagens.


O palácio em construção, na primeira década do século XX

Foto: Arquivo pessoal da família Armand/DR



Raul Lino dizia, a propósito do projecto:

[...] |As obras de arquitectura são o produto de um consórcio entre o arquitecto e a entidade que as encomenda. Se se entendem bem, a criação sai escorreita; quando não há entendimento, o resultado é defeituoso se não mesmo aleijado.

[…] o que me surpreendeu foi o Conde Armand dizer-me que não desejava que eu fizesse um só traço do projecto sem ter primeiro gozado uma noite de luar no sítio onde tencionava fazer a sua casa.

[…] o resultado lá está; e percebe-se no todo o gosto académico e meridional que agradava àquele francês civilizado.


A família D’Armand numa das varandas do rés do chão do palácio, no início do século XX

Foto: Arquivo pessoal da família D’Armand/DR


No final da obra, em 1908, Raul Lino escreveu ao conde, agradecendo a confiança:

“Foi uma homenagem que prestou à classe dos architectos portugueses, confiando a um d’elles a dispendiosa edificação da sua nova casa da Commenda. Suspeito que não terá de arrepender-se. [Mas] algum portuguez talvez haja, que, no seu caso, tivesse mandado vir […] architecto francez.“


Textos e fotografias
retirados da internet

domingo, 15 de novembro de 2020

Quando a bela Comporta era uma espécie de “África metropolitana”

 


Em pouco mais de um século, passou de antecâmara do inferno a paraíso na terra. Os escravos e degredados foram substituídos pela nata da sociedade, rendida a paragens tão desejadas hoje como o foram temidas e desprezadas num passado não muito distante.

Huuummm, Comporta: praias maravilhosas, areais e mar azul a perder de vista; gente bonita, festas de verão...Huuummm, Comporta: terra de degredados e outros condenados, uma espécie de “antecâmara do inferno”, onde a vida era de extrema dureza e nem a morte era pacífica, porque não havia sequer cemitério onde se pudesse descansar em paz.



Era esta a imagem, quiçá exagerada, que os portugueses tinham daquela que é hoje uma das mais badaladas e concorridas áreas turísticas do País. Até aos anos 20 do século passado, efetivamente, a Comporta era constituída sobretudo por areais estéreis, terrenos incultos e pantanosos, só frequentados por quem a isso era obrigado, como os escravos da Guiné, para ali enviados por se supor serem mais resistentes à malária, mas que “caíram que nem tordos”, porque aos mosquitos pouco interessa a cor da pele; ou os degredados deixados a cumprir pena antes deste tipo de condenação passar a ter como destino preferencial as colónias ultramarinas*.



Efetivamente, a Comporta chegou a ser denominada de “África metropolitana”, tão difícil era considerada a vivência naquela zona do concelho de Alcácer do Sal, “onde se entrava já contaminado de sezões em companhia de milhões de mosquitos traiçoeiros e venenosos”.
Estradas não havia, o trajeto de barco a Setúbal demorava hora e meia e, no Inverno, a zona chegava a estar isolada durante semanas.

Não admira que os poderes públicos ali nada investissem e que até os representantes do Estado se recusassem a efetuar diligências em tão remotas e esquecidas paragens.



Os poucos habitantes viviam em cubatas miseráveis e nem depois de mortos podiam descansar em paz, pois não existia – ainda hoje não existe – sequer um cemitério onde pudessem ser enterrados, ou caixões para uma “transição” mais digna. Os que ali pereciam eram invariavelmente enrolados em serapilheira e atados ao dorso de um burro, levado pela arreata ao cemitério mais próximo, a 15 quilómetros de distância, em Montevil, onde, finalmente, podiam ser depositados em campo sagrado.
Não havia médico, correio ou outra força de segurança para além os guardas dos serviços florestais.




O denominado Paul da Comporta era uma região inóspita e “quase inabitável”, onde, no entanto, em finais do século XIX já se extraía junco, palha, turfa e sobreiros, produtos para reduzir a cinza, usados como combustível. E, claro, já se pescava, num mar sempre rico mas que pouco atenuava a vida numa região onde, por ser tão “primitiva e desértica”, “só se podia contar com o auxílio divino”.


Em 1925 tudo mudaria. A Atlantic Company Limited** adquiriu os 15.700 hectares incultos de Pera e Comporta, encravados entre os concelhos de Alcácer do Sal e Grândola, que haviam sido da Casa do Infantado e depois da Companhia das Lezírias do Tejo e do Sado, transformado-os, progressivamente, numa das mais importantes produtoras orízicolas do país.



Mesmo antes da chegada das preciosas águas da barragem Pego do Altar, a empresa com capitais portugueses e ingleses tratou de introduzir novas técnicas de cultivo que ali tiveram sucesso.

Transformou os pântanos em arrozais, derrubou as cubatas e substituiu-as por casas para os trabalhadores, construiu celeiros, oficinas, silos, cantina, padaria e escola. Mandou plantar pinheiros e outras árvores que amenizassem a paisagem e o ar.

Nos anos 40, a beleza da praia, talvez “a maior e mais serena” do País, era já admirada pelos poucos que a visitavam, vaticinando-se que, num futuro próximo, pudesse originar “um desenvolvimento extraordinário” também no turismo.
Assim foi.



A família Espírito Santo, que desde 1958 passou a deter a totalidade da herdade - embora com um interregno durante a época em que esta foi nacionalizada, no pós 25 de abril – seria mentora de outra grande transformação.

A partir de 2003, este portento agrícola é convertido em poiso do jet set e, embora os arrozais se mantivessem, aliados à vinha e aos hortícolas, passaram a ser outro tipo de “culturas”, mais urbanas, a dar nas vistas.
Com o descalabro do Grupo e a venda das terras, antes tão desprezadas e hoje tão desejadas, abre-se novo capítulo e fazem-se apostas sobre o que se segue.

À Margem
Noudar, no atual concelho de Barrancos, no Alentejo; Lagos, Sagres, Silves, Tavira, Alcoutim e Castro Marim, no Algarve; mas também, ainda que de forma menos constante, Linhares, Pinhel, Castelo Branco, Guarda, Trancoso, Moncorvo e Bragança gozaram, em diferentes épocas da história de Portugal, de estatuto especial que as transformou em terras sem lei, onde fugidos da justiça encontravam “asilo”, ou colónias penais, onde os condenados cumpriam as suas penas e, em simultâneo, contribuíam para o repovoamento de áreas pouco atrativas para o português comum. Nos denominados “coutos de homiziados”, podia-se comutar as penas de prisão ou degredo para o Ultramar em exílio forçado em território da metrópole, o que acabava por ser vantajoso para o Estado e para os degredados, que fugiam à morte certa em África ou no Oriente, à mercê de climas extremos e doenças exóticas. A coroa beneficiava da colonização interna, ao sabor das necessidades de povoamento ou defesa, mas também, por exemplo, suprindo a falta de indivíduos de uma determinada atividade para a qual a terra tinha natural vocação. Foi o que aconteceu em Portimão, por exemplo, que serviu para acolher os pescadores condenados por praticamente todos os crimes, que ali colmatavam a escassez de mareantes “indígenas”.
Mas isso é outra história...

…...
*Li haver memória oral da Comporta ter sido uma colónia penal, mas não encontrei fontes que o confirmassem efetivamente.
** Os diretores William A. Tait, Franck Jeatrunes e Jorge Nunes de Matos; o administrador delegado João José Soares e, depois da morte deste, Manuel José Soares Mendes, são apontados como principais impulsionadores desta mudança.


Arquivo Municipal de alcácer do Sal