A ascensão da nova ignorância

Nada é mais significativo e deprimente do que ver pessoas que estão juntas, mas que quase não se falam, e estão atentas ao telemóvel.

Público, 31 de Dezembro de 2016

Entre os temas tabus dos nossos dias está a ignorância. Parece que falar da ignorância coloca logo quem o faz numa situação de arrogância intelectual, o que inibe muita gente de a nomear. Mas não há muita razão para se enfiar essa carapuça, tanto mais que o problema é enorme e está agravar-se e a assumir novas formas, socialmente agressivas. Acompanha outro tipo de fenómenos como o populismo, a chamada “pós-verdade”, a circulação indiferenciada de notícias falsas, e, o que é mais grave, a indiferença sobre a sua verificação. Não explica, nem é a causa de nenhum destes fenómenos, mas é sua parente próxima e faz parte da mesma família. É, repetindo uma fórmula que já usei, como se de repente se deixasse de ir ao médico, e se passasse a ir ao curandeiro.
Uso aqui uma noção utilitária de ignorância que pode ser simplista, mas que serve. Ser ignorante é não ter os instrumentos para se mover no mundo que nos rodeia, ser sujeito mais do que ser actor, não conseguir atingir o empowerment que é suposto se poder ter para se actuar conforme as circunstâncias, de modo a crescer, ser capaz, viver uma vida qualificada e tirar dela uma experiência enriquecedora, controlando-se a si próprio tanto quanto é possível, e não menosprezando as condições para se ser feliz, “habitualmente” feliz. Isto é muito Dale Carnegie, mas serve, não é preciso complicar à partida.
Percebe-se, usando esta definição, que a ignorância pode ser descrita como a pobreza, cujos efeitos e condições de superação são exactamente do mesmo tipo. A ignorância é uma forma de pobreza e o seu crescimento acentua a pobreza em geral e, mais do que a pobreza, a exclusão e a diferenciação social. É até um dos mecanismos mais eficazes para aumentar a distância entre pobres e ricos, e para estabilizar um status quo nos pobres, que, como a droga, tem efeitos de satisfação instantânea, de paraíso artificial, ou, se se quiser de “ópio do povo”.
Faço uma distinção entre aquilo a que chamo “a antiga ignorância” e “a nova”. A antiga tem muito que ver com a baixa qualificação profissional, com a insuficiente escolaridade, com a má qualidade de muitas escolas, sem meios, sem professores preparados, com o analfabetismo funcional. É um factor do nosso atraso e ajuda a potenciar os efeitos perversos da nova ignorância, mas não a explica por si só.
Contentamo-nos muito com a diminuição estatística da antiga ignorância e isso em Portugal é mais do que compreensível. O sucesso da escola, e da escolarização, o ensino para adultos, as melhorias verificadas em disciplinas como Português e Matemática são instrumentos fundamentais, entre outras coisas, para a mobilidade social, mas, mesmo que tenhamos, como agora se diz, as gerações mais qualificadas, estamos cegos quanto ao crescimento da nova ignorância, não só em aliança e em tandem com a antiga, mas assumindo novas formas e efeitos. O facto de haver um modismo tecnológico e se confundir a utilização de gadgets, aliás bastante rudimentar, com um novo saber, que implica novas competências, esconde essa regra básica de que as literacias para os usar vêm do sistema escolar a montante e a possibilidade de os usar para uma melhoria social só existe a jusante se acompanhar uma evolução social que não se está a verificar. Mais do que uma evolução, há uma involução.
A antiga ignorância assentava numa carência, numa falta, a nova assenta numa ilusão. É por isso que a antiga ignorância era vista como um problema da sociedade e a nova é vista como um “progresso”, ou como uma tendência contra a qual é inútil lutar. Isso tem muito que ver com uma ideologia corrente face às novas tecnologias, em particular aquelas que têm imediatos efeitos sociais como os telemóveis, as redes sociais, e certos modos de usar os videojogos, a realidade virtual e mesmo o computador e a televisão.
O primeiro efeito nefasto dessa ideologia é a crença de que são as novas tecnologias que estão a mudar a sociedade. É o contrário. É a mudança da sociedade que potencia o uso de determinadas tecnologias, que depois acentuam os efeitos de partida. Muitas tecnologias de “contacto” — como programas de “presentificação”, que fazem as pessoas olharem para os seus telemóveis centenas de vezes por dia, e os adolescentes, na vanguarda desta nova ignorância juntamente com os seus jovens pais adultos, passarem o dia a enviarem mensagens sem qualquer conteúdo — só têm sucesso porque se deu uma deterioração acentuada das formas de sociabilidade interpessoais, substituídas por um Ersatz de presença e companhia tão efémero que tem de estar sempre a ser repetido. Sociedades sem relações humanas de vizinhança, de companhia e amizade, sem interacções de grupo, sem movimentos colectivos de interesse comum dependem de formas artificiais e, insisto, pobres, de relacionamento que se tornam adictivas como a droga. Não há maior punição para um adolescente do que se lhe tirar o telemóvel, e alguns dos conflitos mais graves que ocorrem hoje nas escolas estão ligados ao telemóvel que funciona como uma linha de vida.
Nada é mais significativo e deprimente do que ver numa entrada de uma escola, ou num restaurante popular, ou na rua, pessoas que estão juntas, mas que quase não se falam, e estão atentas ao telemóvel, mandando mensagens, enviando fotografias, vendo a sua página de Facebook, centenas de vezes por dia. Que vida pode sobrar?
Ainda há-de alguém convencer-me que este comportamento lá por usar tecnologias modernas representa uma vantagem e não uma patologia. Faz parte de sociedades em que deixou de haver silêncio, tempo para pensar, curiosidade de olhar para fora, gosto por actividades lentas como ler, ou ver com olhos de ver. E se olharmos para os produtos de tanta página de Facebook, de tanta mensagem, de tanto comentário não editado, de tanta “opinião” sobre tudo e todos, escritas num português macarrónico e cheio de erros, encontramos fenómenos de acantonamento, de tribalização, de radicalização, de cobardia anónima, de ajustes de contas, de bullying num mundo que tem de ser sempre excitado, assertivo e taxativo. Um dos maiores riscos para o mundo é ter um presidente dos EUA que governa pelo Twitter como um adolescente, com mensagens curtas, sem argumentação, que, para terem efeito, têm de ser excessivas e taxativas.
Não é por acaso que o grande reservatório do populismo político e social nas sociedades ocidentais são as redes sociais, que, não sendo a causa do populismo, são um seu grande factor de crescimento e consolidação. São como as poças de água estagnada para os mosquitos. Funcionam como o lubrificante do populismo em momentos cruciais, dando-lhe uma rapidez de resposta aos eventos e condicionando o mundo exterior, com jornalistas que “emprenham” pelas redes, tanto mais quanto já não ouvem ou vêem nada fora do seu pequeno ecrã.
A crise das mediações profissionais — que retirou aos jornalistas e aos profissionais da comunicação o papel de transformarem qualitativamente os eventos em notícias, muito, aliás, por culpa própria desde a treta do “jornalismo dos cidadãos” até à divulgação não mediada de tweets e comentários — acompanha um dos aspectos mais agressivos desta nova ignorância: o ataque ao saber, ao conhecimento certificado, em nome de um igualitarismo da ignorância.
O facto de poderem escrever potencialmente para todos não significa que as suas “opiniões” — tanto mais quando pretendem ter um estatuto de idêntica qualidade ao de quem conhece as matérias sobre as quais opina, ou tem uma criatividade evidente — têm um efeito de rasoira por baixo, que se reproduzem sem qualquer verificação. Se acrescentarmos que muitos consumidores das redes sociais obtêm aí quase toda a sua informação, percebe-se os efeitos devastadores no debate público e como servem para a indústria das notícias falsas e para alicerçarem o populismo com boatos, afirmações infundadas, presunções, invenções. Como, na nova ignorância, se trata de uma atitude hostil ao saber e ao seu esforço, mais do que um efeito de fonte única, há uma guetização da opinião, com arregimentação entre os próximos e a diabolização dos “outros”. Ler só aquilo com que concordamos pode ser satisfatório psicologicamente, mas destrói o debate público fundamental numa sociedade democrática.
A ascensão da nova ignorância e a democracia como fragilidade – Continuação
Público – 7.1.2017
Também é verdade que por muito maus que muitos órgãos de comunicação social sejam, são infinitamente melhores do que as redes sociais como fontes de informação.
O artigo que precedeu o actual, sobre a “nova ignorância”, suscitou todas as reacções esperadas, muitas das quais nem justificam resposta, porque não são críticas ao que eu disse, mas ao que eu não disse. Há excepções e nesse caso voltaremos a elas, como é o caso da crítica de António Guerreiro de que o “meio” inquina o conteúdo, logo uma crítica da natureza da que faço à questão da ignorância não pode ser feita nos jornais. Guerreiro admite que a contradição que aponta se aplica a si próprio, mas vale a pena discutir essas críticas, feitas na tradição de Karl Kraus, e que contêm um problema quando generalizadas ao debate racional em democracia, por escasso que seja. O mesmo se aplica à tradição crítica oriunda da chamada “escola de Frankfurt” e de um marxismo assente nos primeiros textos de Marx.
Há também o problema da relação da antiga e nova ignorância e se tem sentido falar em “nova” ignorância e sobre a sua caracterização, questões que justificam ser mais discutidas, assim como saber se o que se passa é apenas uma evolução de novas (in)competências que não justificam ser desvalorizadas ou anatemizadas.
A maioria das críticas, algumas, insisto, que nem merecem esse nome, é feita a posições que não são as que defendo. Aliás, nalguns casos, acusando-me de posições que são explicitamente negadas no artigo. Muitas das críticas têm a habitual agressividade de quem pensa que está a ser moderno ou que emigrou para as redes onde encontra uma sociabilidade que lhe basta e uma fama paroquial entre pares, e por isso considera-se visado na nova ecologia onde “existe”. É penoso ver pequenas personagens que vivem no Twitter entre variantes do mau engraçadismo e a coluna social da irrelevância e que estão muito contentes consigo próprias, com o aconchego de uma pequena corte de ecos. O mal é do Twitter? Em si não é, como não é da Internet, nem do telemóvel, nem das aplicações, nem de nada. Repito-me: recuso “a crença de que são as novas tecnologias que estão a mudar a sociedade. É o contrário. É a mudança da sociedade que potencia o uso de determinadas tecnologias, que depois acentuam os efeitos de partida”.
Basta compreender isto que estou sempre a repetir, para se perceber que a acusação de ludismo também não tem pés nem cabeça. Sejam bem-vindos todos os devices, todos os gadgets, todas as máquinas, desde que não as liguem ao meu corpo, ao meu sistema nervoso, nem à minha cabeça, se não forem próteses, pacemakers, bombas de insulina, etc. Como com os químicos, sempre que seja o meu comportamento e a minha autonomia que está em causa, há um problema. Claro que a morfina pode ser particularmente bem recebida, mas não preciso de estar a enunciar excepções, quando se percebe bem o que quero dizer.
Um exemplo de que é o uso social e não o gadget que conta é o telemóvel. Voltemos à nova ignorância, com exemplos daquele que é o principal instrumento de mudança da sociabilidade, o telemóvel. Há dois mecanismos em que o telemóvel, em conjugação próxima com a autopublicação nas redes sociais, exerce efeitos socialmente perversos: a prevalência do controlo em relação à comunicação e a perda da privacidade. São efeitos conjugados todos associados a uma espécie de presentificação da vida, uma obrigação, cuja ausência é socialmente punida, de estar sempre presente, de estar sempre a responder a telefonemas ou mensagens que fazem o efeito dos velhose pings destinados a saber se dois equipamentos estavam ligados. Quem envia um ping espera um pong, e isso é que explica os biliões de telefonemas, mensagens de sms, ou no Whats App que são o contínuo ruído de fundo de uma nova sociabilidade e que representam novas formas de controlo. Comunicar no sentido de enviar ou de fornecer uma informação útil é um uso muito minoritário, face ao enviar o ping do “onde estás?” ou qualquer outra variante, que é controlo.
O mesmo “recuo” se dá na privacidade e no seu valor, com o retorno nas redes sociais à sociabilidade da aldeia, ao mundo pequeno e claustrofóbico onde se sabe tudo sobre todos, onde todos se revelam, expõem, justificam e cometem inconfidências sobre si próprios e outros, sem reserva e discrição, valores em desuso.
Também nunca falei de jornais bons versus redes sociais más. Bem pelo contrário, há anos que digo que o nosso jornalismo é de péssima qualidade e, pior ainda, que mais do que a pressão totalitária de fora o risco para as democracias vem de uma usura do espaço público que vem de dentro e que também é recente na sua dimensão, porque acompanha o acesso das “massas” a consumos materiais e “espirituais” que ocorrem desde o início do século XX e foram potenciados por conquistas sociais como o tempo livre pago. Fenómenos como a publicidade e a propaganda, ou mecanismos cada vez mais sofisticados de manipulação da opinião acompanham este processo, mas, para o que penso ser uma democracia, tem de haver circulação de informação mediada profissionalmente, pelas mesmas razões, repito-me, que não troco um médico por um curandeiro.
Por isso, também é verdade que por muito maus que muitos órgãos de comunicação social sejam, são infinitamente melhores do que as redes sociais como fontes de informação. O que disse e digo é que o que falta é “edição”, ou seja, a aplicação de regras profissionais que transformam um evento numa notícia. Existe uma ideologia nessas regras, tais como são aplicadas? Existe, mas também existe ideologia quando não o são.
A rasoira da complexidade, a redução de tudo ao preto e branco facilita como é óbvio uma contestação fácil. Por exemplo, nunca disse que as razões do crescendo populista se encontram nas redes sociais. Explicitamente neguei-o, mas não vale a pena. Cito-me “[A nova ignorância] não explica, nem é a causa de nenhum destes fenómenos, mas é sua parente próxima e faz parte da mesma família.” É mais simples responder ao que não disse do que ao que disse. O que disse é que as redes sociais são um importante reservatório desse populismo e um mecanismo de ampliação “as redes sociais, que, não sendo a causa do populismo, são um seu grande factor de crescimento e consolidação”. Não é o mesmo, pois não? E por aí adiante.
Há um ponto essencial no que escrevi e escrevo que é o que me interessa desenvolver. E esse ponto não precisa de nenhuma sofisticação, é um modus vivendi, é uma escolha precária e débil, impressionista e muito pouco intelectualizada.
Tenho a posição, que é eminentemente subjectiva, ou seja, cultural, de que a democracia, entendida como uma conjugação entre a vontade popular, a lei e o direito, e o melhorismo social, é a única forma que temos de viver razoavelmente. Tenho também a posição de que se trata de uma opção cultural, uma escolha que contraria tudo, a natureza, todas as variantes de darwinismo social, a sociobiologia, o Id do dr. Freud, a seta da história de Marx e as múltiplas variantes actuais da TINA (“there is no alternative”). É, digamos, uma suspensão volitiva, assumida colectivamente, de que é melhor viver assim do que de qualquer outra maneira. Por ser apenas isto é de uma fragilidade extrema, é a excepção à regra, uma violação da entropia, que talvez por isso dure pouco ou seja sempre minoritária, já que imperfeita é certamente. Não produz uma qualquer teleologia da história, nem emana dela, mas também não é uma utopia, porque circunstancialmente na história existiu e existe por mera vontade dos homens.
É uma posição minimalista que reconhece todas as forças e todos os poderes, muito mais “naturais”, mas que se centra na ideia, que me parece moralmente satisfatória, de que só há uma possibilidade de “paraíso” e ele é terrestre, e que o único mecanismo político aceitável é o que assenta no “bem comum”, seja lá o que isso for. “Seja lá o que isso for”, mas, repito, quando não há, sabemos todos que não há. Não é sequer o churchilliano “menos mau de todos os regimes”, porque, quando existe, não é mau, é bom. É uma manifestação social e socializada do “milk of human kindness” de Shakespeare. Parte, no fundo, da consciência da finitude, da morte, do carácter único da vida e da vontade de a viver o melhor possível.
Esta ideia da democracia é particularmente ameaçada pela ignorância, como por todas as formas de pobreza material e espiritual.
PACHECO PEREIRA

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