domingo, 30 de março de 2014

CONSELHO DE EXTRAVAGÂNCIAS PÚBLICAS


 


PERSONAGENS DE FICÇÃO TEODORA DOS LEVANTAMENTOS CASH CARDOSO RUI CARDOSO MARTINS


Há bancos de ideias, bancos alimentares contra a fome, bancos de cardumes de peixe, bancos de esperma, bancos de sangue. Até há bancos que fazem operações bancárias... Finalmente inventaram a ideia de um banco que só serve para taxar impostos e nos descontar no salário, todos os dias

Teodora Cardoso foi, é e para sempre será uma economista portuguesa especialista em orçamentos e impostos (também Ramsés II, que percebia de finanças, ainda lá está no Cairo a cobrar entradas) que tentou introduzir em Portugal, e exportar para o mundo traumático do pós-troika, uma inovação fiscal: taxar todos os levantamentos bancários das contas onde serão obrigatoriamente depositados os salários e pensões. Sempre que te mexes, como diziam os egípcios, pinga para o Estado e o Estado sabe o que andas a cozinhar. Os egípcios ou outro povo com propensão para construir pirâmides que não se pagam a si próprias. Há décadas deu-se “o milagre da Via Verde”, e não há português que não passe por uma portagem de auto-estrada, sem aparentemente pagar (o tanso…), que não sinta o frisson maravilhoso do pioneirismo. Agora, se é para inventar, inventemos nós a palavra: o prazer da pioneirice fiscal. A proposta de Teodora, em que muitos leram a síntese e a corrente de ideias inglesas (as suas maiores influências intelectuais são o mundo anglo-saxão, o culto da independência ideológica e a fidelidade inteligente dos cães), começou a mudar o país. Pretendia-se um imposto que, “em vez de desincentivar o rendimento, incentiva a poupança”. Foi o que disse Teodora num dia em que foi à rua comprar ovos e se viu, sem mais nem menos, em Viseu e logo nas jornadas parlamentares do PSD! Já que a senhora está cá — trata-se da primeira mulher a usar calças no Banco de Portugal — diga qualquer coisa para que o pessoal do Governo, não esteja sempre a repetir que não vai aumentar impostos, ou cortar mais pensões, isso é que não, e depois olha… como é que isto aconteceu? Desde a histórica intervenção de Teodora, responsável pelo Conselho das Finanças Públicas, em Março de 2014, começou a sucessão de milagres e o país ficou melhor, como diz o outro. Tão melhor que é uma alegria conseguir voltar atrás, ao tempo em que éramos felizes. Como Teodora Cardoso, ainda menina de saias, a provar o seu primeiro rebuçado em Estremoz, onde nasceu. Quando foi aplicada a nova taxa dos levantamentos, perceberam os analistas, começou o “milagre do colchão de palha”: em vez de ter dinheiro no banco, os portugueses quiseram receber tudo em notas e de uma só vez, e pela porta do cavalo. E guardavam o dinheiro entre a esteira e o colchão, a ganhar patine e humidade, dando um gosto especial à aventura de ir comprar uma sardinha e duas carcaças para a família. O fim do dinheiro de plástico (sujeito a taxas e impostos automáticos) ditou também o reaparecimento dos açucareiros velhos, todos nicados nas bordas, transformados em mealheiros de notas enroladas. O êxito da iniciativa financeira foi tão grande que alastrou às solas falsas das botas dos cavalheiros (a chocalharem moedas de dois euros pela rua) e aos soutiens e cintos de ligas das senhoras, carregados de notas de 20 euros, a abanarem as ancas à frente dos homens. Imediatamente, apraz-nos dizer, se consolidou a viragem económica e houve efeitos colaterais muito positivos na demografia: nasceram milhares de bébés com estas medidas de ajustamento económico tão giras que despertam a vontade de fabricar mais heróis para uma nação que vai pagar as dívidas até ao último cêntimo. Estamos ou não estamos melhor, os que cá ainda estamos? Valeu a pena os sacrifícios, suas marotas e marotos. Mas não só: a imprensa internacional e os nossos credores testemunharam tudo. Já não há forma de negar a evidência duma viragem económica perfeita, os sinais encorajadores do sucesso que comovem Wall Street e a Alemanha. Os automóveis Audi de alta cilindrada sorteados pelo Governo, e entregues a contribuintes cumpridores, foram vendidos em minutos a cidadãos com o Visa Gold. No meio da rua, um Audi todo bonito foi trocado por um maço de notas, como um burro na Feira das Cebolas, e antes de chegar a guarda para prender alguém! Aos 70 anos, Teodora Cardoso ainda tem muito para dar ao país e ao esforço de consolidação orçamental. É com alegria que assistimos a esta fase mais criativa, abandonando anteriores posições negativistas, há poucos meses, como sugerir que a política de redução de salários da troika nos transformará num país de “terceiro ou quarto mundo”, ou insinuando que as previsões do Governo eram “demasiado optimistas”. Continue a surpreender-nos, a dar novos tópicos de discussão, doutora Teodora. Usando a longa experiência e a sua independência partidária, invente mais teorias que nos embalem neste sucesso. É o que lhe desejam, carinhosamente, os parlamentares do PSD

O país que vivia “vida de rico”




O país que vivia “vida de rico”

José Pacheco Pereira


A “riqueza” da classe média, é o primeiro grande alvo do “ajustamento”, mas não é o único Falando num debate corporativo, Vítor Bento, economista, conselheiro de Estado, disse, no mesmo dia em que novos dados sobre a gravidade do empobrecimento dos portugueses vieram a público, que “o país empobreceu menos do que parece. O país já era pobre, vivia era com vida de rico” (...). “Criávamos a aparência de ser mais ricos”. Deixo de barato a questão do sujeito da frase, esse perverso “nós”, que nos iguala a todos diante do professor com a palmatória na mão, mas volto-me para o que, nesta tese, é revelador dos discursos situacionistas dos nossos dias. Para além do desprezo e da nonchalance de falar assim do “empobrecimento” dos outros, e que tem entranhada uma condenação moralista dos maus hábitos dos portugueses, estes homens virtuosos como Vítor Bento dizenos coisas reveladoras. Uma, é que, no actual empobrecimento, há duas razões: uma conjuntural — “teve de se ajustar a despesa para o rendimento que existe e, no processo, o rendimento caiu” —, que foi uma maçada ter acontecido; e a outra estrutural — “o resto é empobrecimento aparente, porque a riqueza também era aparente”, ou seja, outra maneira de dizer que “vivíamos acima das nossas posses”, que é um programa económico, social, político e... moral. Num momento em que o conjunto de explicações simplistas e reducionistas à volta do “ajustamento” mostra os primeiros sinais de estar a perder força na sua circulação no espaço público, ele torna-se ao mesmo tempo mais defensivo e mais agressivo. Eu não menosprezo o seu sucesso mediático e a sua interiorização nas pessoas comuns, que foi e é maior do que os seus contraditores desejariam, muitas vezes como culpa, mas hoje pode-se ver como elas conduziram a um impasse quer no pensamento quer na acção. Ao passarem do imediato, da resposta quase pavloviana à bancarrota de Sócrates, para o mais longo prazo do pós-troika, elas revelaram enormes fragilidades a todos os níveis, do económico ao político. Voltemos às teses de Vítor Bento. Elas começam por nos falar do passado e percebe-se que não é o passado imediato da actual crise. Se fossem apenas os desvarios de Sócrates, dificilmente se encontraria justificação para ir mais longe do que corrigi-los. Não, eles precisam de algo mais de fundo, para poderem fazer a revolução dos maus costumes portugueses. A coisa já vem de trás, mas desde quando? Desde quando é que os portugueses foram “ricos”? Quantos portugueses fi zeram, como ele diz, “vida de rico”? Quando é que se viveu uma “riqueza que era aparente”? Em 2005, quando Sócrates começou a cortar o défice, com um aplauso hoje esquecido? Em 2004, no rápido reino de Santana Lopes quando anunciou ao Frankfurter Allgemeine que vinha aí a “retoma”, o “fim da crise”, a “economia a recuperar”, “todos os sinais são bons” e “nova baixa de impostos”? Em 2002, quando estávamos de “tanga” e ou era ou estradas ou criancinhas? Nos anos de Guterres, onde se distribuiu o bodo (como aliás com Sócrates) aos mesmos empresários e banqueiros que louvaram esses governos com a mesma intensidade com que louvam o actual? No tempo de Cavaco Silva e dos milhões que chegavam todos os dias? Ou desde o 25 de Abril, em que se perdeu o respeito pelo ouro das caves do Banco de Portugal? Estamos a falar de Portugal? Por isso, esperem por mais, porque se “o país empobreceu menos do que parece”, é porque ele ainda não empobreceu tudo o que podia e devia podia e devia Mas de que “riqueza” é que estamos a falar? Não é a dos ricos da Forbes. Eu sei o que é a “vida de rico” a que ele se refere, quer àquela que serve para ilustrar o moralismo do discurso, quer àquela que verdadeiramente o preocupa. Para agitar a bandeira moral, servem algumas patetices avulsas: as férias a Acapulco, os divãs da Conforama, os plasmas para ver jogos de futebol, os jipes do FEOIGA (atenção que aqui já se está a entrar por outro caminho perigoso, não vá a CAP protestar), comprar um molho numa loja gourmet para épater les bourgeois do emprego ou a bourgeoise, gastar dinheiro insensato nos centros comerciais, alguma capacidade de consumo lúdico a que pela primeira vez muitos portugueses tiveram acesso e que mostraram a marca do novo-riquismo e da silly season. Ele não se refere a isso, mas a “vida de rico” incluí também comprar o Expresso aos sábados, ter televisão por cabo, ser sócio do Benfica MIRIAM LAGO/ARQUIVO e ir aos jogos, ir ao restaurante de vez em quando, comer marisco, comprar livros do José Rodrigues dos Santos, ter expectativas europeias, de ser como os franceses que se vêem nos filmes, ter um carro, mandar os f i lhos à universidade e ser parte da muito escassa opinião pública. Ou seja, fazer parte da primeira geração em Portugal que já não tem memória directa da enorme pobreza rural que os seus pais e avós ainda conheceram, que beneficiou do elevador social que foi a educação e o Estado (sim o Estado que, em todos os países democráticos, tem essa função de criar uma classe média... nem que seja para servir de tampão entre os proletários e os milionários. Perguntem ao Bismarck.) e que representa... a única, débil e, pelos vistos, precária modernização de Portugal. Ou, para quem abomina o termo modernização, a primeira geração que acedeu aos padrões de consumo, que a pequena burguesia europeia, a chamada “classe média baixa”, já tem há muitos anos. Ficamos a saber que eles são em Portugal os “ricos” (suspeitávamos, por o limiar da riqueza para efeitos de impostos ser 1000 euros) e, pior do que isso, cometerem o pecado mortal de levarem “vida de ricos”. Mas foram mesmo as férias de sombrero feitas com o crédito prestimoso da banca, “faça férias agora pague depois”, o verdadeiro problema dessa “riqueza aparente” contra a qual brada? Não, ele sabe que tudo isto foi irrelevante face, por exemplo, ao endividamento que resultou da compra de casa própria, esse sim, um dos ónus actuais mais importantes para as famílias. Mas, apesar da contínua jigajoga que se anda a fazer com o tempo, para trás e para a frente, para legitimar opções do presente, haverá alguém capaz de negar que a opção de comprar a casa era uma decisão racional até ao fi m da década de 2000, racional de todos os pontos de vista, até porque não havia a alternativa do aluguer?... E por que razão a culpa é sempre das pessoas e das famílias e o comportamento de bancos e empresas é sempre deixado numa sombra benévola? A “riqueza” da classe média é o primeiro grande alvo do “ajustamento”, mas não é o único. Há outra “riqueza” no alvo, a dos menos pobres dos pobres, a daqueles que dependem de prestações sociais, quase metade dos portugueses, e os que ainda têm emprego e vivem do seu salário. Esta “riqueza” foi a difícil, tímida, demasiado recente (comparada com a Europa) ascensão de uma segurança social, em que ainda a maioria de reformas está abaixo do limiar da pobreza. Esta “riqueza” foi a saúde e a educação, garantidas pelo Estado. A “riqueza” é ter um Estado com obrigações sociais. A legitimação do ataque a salários, pensões e reformas, do quase confi sco administrativo e fiscal do rendimento das pessoas e das famílias, da facilitação do despedimento para criar um exército de mão-de-obra barata, enquadra-se na ideia de que é aí que está a “riqueza aparente” que uma sã economia não pode tolerar, primeiro porque as pessoas consomem mais do que o que devem, depois porque é preciso baixar os salários para o “custo” da mão-de-obra ser “competitivo”. Atacar essa “riqueza” inexistente para abrir caminho à absoluta necessidade da pobreza, é um instrumento político, e é uma ideia sobre Portugal e os portugueses. Por isso, esperem por mais, porque se “o país empobreceu menos do que parece”, é porque ele ainda não empobreceu tudo o que podia e devia. E a receita que vem aí é óbvia, é tornar permanente os cortes de salários e pensões, para que o tempo actue todos os dias tornando as pessoas e as famílias insolventes, endividadas perante credores muito mais hostis, incapazes de gerir a sua situação e a sua vida, e os que não podem emigrar fi carem por aí aos caídos ou à porta de qualquer banco alimentar. Sem estes portugueses poderem viver aquilo a que Bento chama com desprezo “vida de ricos” ou aceder a ela, sem esses portugueses restaurarem uma escada social que permita a pobreza não se tornar num gueto, e haver uma classe média que puxe para cima, não há saída para Portugal.

sábado, 29 de março de 2014

Assunção Esteves, possidónia



Assunção Esteves é uma personagem no sentido plano e caricatural do termo. Nos romances, as Assunções surgem nos capítulos secundários para dar um colorido sociológico ou histórico ao cenário onde a personagem principal actua. Ora, a nossa Assunção Esteves representa o colorido cómico de um certo Portugal, o Portugal da comédia snob, do nariz empinado por questões de nascimento. Sim, é o Portugal que brinca aos pobrezinhos, mas também é o Portugal que quer brincar aos riquinhos. Assunção Esteves encaixa na segunda espécie. Julgo que aqueles que brincam aos pobrezinhos têm uma palavra gira para descrever esta segunda categoria: possidónios. Palavra giríssima, sei lá.
A segunda figura do estado recusa admitir que o seu pai era alfaiate. Aquilo que devia ser motivo de orgulho é motivo de vergonha. Como é evidentíssimo, a filha de um pobrezinho não pode chegar ao topo, é contranatura. Apesar da origem humilde, Assunção Esteves aceitou o ethos pseudo-aristocrático da "Lesboa" que se repete em todas as povoações portuguesas com mais de, vá, 10 habitantes. E a mutação não se ficou por aqui. Segundo uma peça da Sábado, a Presidenta tem aquela obsessão típica pelo luxo. Ele é roupa de alta-costura, ele é carteiras que custam 10% da sua reforma (valor da pensão: 7200 euros por 10 anos de trabalho), ele é um corrupio de assessores que trata como escravos coloniais, ele é gastos sumptuários: assim que chegou à Presidência da Assembleia, Assunção Esteves mudou a casa de banho do seu gabinete para não usar a mesma retrete do antecessor. Que magno problema viu Assunção Esteves no bumbum de Jaime Gama?
Os regimes mudam, mas este Portugal não morre. A comédia social parece que tem o dom da imortalidade. Tal como em 1950, ainda temos fidalgos a viver em bolhas sem qualquer contacto com a realidade. E, tal como em 1950, ainda temos fidalgos wannabe que querem à força brincar aos riquinhos para depois brincarem aos pobrezinhos. País giríssimo, sei lá.


Henrique Raposo

segunda-feira, 24 de março de 2014

A ética exige o tratamento da dor


Ficheiro:Asklepios - Epidauros.jpg


WALTER OSSWALD
24/03/2014 - 01:06

Dêmos a devida prioridade ao tratamento da dor, para podermos minorar ou suprimir o sofrimento dos doentes.

O tratamento da dor, ou ao menos a tentativa de a minorar, representam, na longa história (e pré-história) da medicina, um dos dados adquiridos que ninguém põe em dúvida.

Há imagens de Esculápio (ou Asclépio, na versão grega original) segurando na mão esquerda a serpente enrolada no bastão e, na mão direita, algumas cápsulas de dormideira ou Papaver somniferum, cujo sumo concreto, obtido por incisão, é o ópio. Repare-se: o símbolo da própria arte de curar fica assim preterido (na sinistra) em relação ao princípio vegetal capaz de tratar a dor (na dextra). Hipócrates, no século IV antes de Cristo, não hesitou em atribuir às mãos dos médicos características divinas, mormente quando da sua acção resultasse o alívio da dor (“É divino sedar a dor”, proclamava). E o nosso Zacuto lusitano (nascido como Francisco Nunes em 1575) deixou inscrita, na listagem dos preceitos médicos, esta notável instrução: "Medicus inter omnia symptomata, prius dolorem sedet" ("Entre todos os sintomas, dê o médico primazia ao alívio da dor").

Esta especial atenção à dor parece compreensível: é o sintoma que mais incomoda, aterroriza ou provoca sofrimento ao doente e, por extensão, aos que o rodeiam. Por natureza, é entendida como sensação desagradável, podendo ter uma graduação que vai do ligeiro incómodo ao insuportável sofrimento. Temos, pois, doentes que desejam obter alívio e médicos que são competentes para conhecer os meios propiciadores desse alívio e o modo como podem ser usados. Os médicos da antiguidade só podiam recorrer ao ópio e às bebidas alcoólicas: só a partir de 1820 é que fica disponível a morfina, que, para maior eficácia, passa a ser administrada por via injectável, graças à invenção da seringa hipodérmica. Mas só no adiantado século XIX é que surgem os anestésicos e, graças ao seu uso, a cirurgia torna-se uma terapia e deixa de ser uma indizível tortura à qual só se recorria em desespero de causa.

Depois vieram analgésicos, activos por via oral, opióides, analgésicos e antipiréticos, com ou sem componente anti-inflamatória, anestésicos locais, técnicas psicológicas, aplicações eléctricas, etc. Ou seja, temos hoje armas potentes, diversificadas, que permitem um tratamento diferenciado dos mais diversos tipos de dor (de que temos também cada vez melhor conhecimento científico, quanto aos seus mecanismos e mediadores). Mas é surpreendente verificar que ao sintoma dor não parece dar-se hoje a importância que os antigos lhe atribuíam. Ou seja, ao maior conhecimento da natureza da dor e dos mecanismos que lhe subjazem não tem correspondido uma uniforme e acentuada melhoria do seu tratamento, apesar dos meios eficazes de que dispomos para a combater.

De facto, se cerca de um terço da população portuguesa sofre de dor crónica, tal só se pode dever a um tratamento ineficaz, por esporádico, insuficiente (na posologia e na duração) e muitas vezes menos correcto (por não se recorrer aos medicamentos e esquemas terapêuticos mais indicados e apoiados em sólidas provas clínicas). Não é crível que estas circunstâncias adversas se compaginem com ignorância ou dolo médico, antes se deverão a uma subavaliação da dor (descartado por pacientes e, sobretudo, por médicos quando não aguda e intensa) e ao preconceito da perigosidade dos analgésicos, mormente dos anti-inflamatórios e dos opióides.

Ora, a deontologia, apoiada numa ética universalmente aceite (mas nem sempre presente na decisão médica) e no bom senso, apontam a dor como sintoma a valorizar, certamente, mas como situação mórbida a exigir tratamento. Os princípios éticos da beneficência, da solidariedade e da subsidiariedade não levam a outra conclusão senão a propugnada há tantos séculos por Hipócrates ou por Zacuto: é fortíssima obrigação médica a de tratar, sempre, a dor; é perverso pactuar com a dor, deixando o doente à sua mercê, por não ser alvo de tratamento ou por o ser de forma incompleta ou inadequada. Não recorrer a um meio apropriado e disponível, em face de uma situação que constitua uma indicação para o seu uso, constitui erro grave ou indício de negligência médica.

Prius dolorem sedet, dêmos a devida prioridade ao tratamento da dor, para podermos minorar ou suprimir o sofrimento dos doentes e assim nos aproximarmos do ideal multissecular do médico sábio e compassivo.

Presidente da Fundação Grünenthal


domingo, 23 de março de 2014

Tango, Eco, Romeo, Eco, Sierra, Alfa: Teresa


Pai, Tiveste Medo? é um livro feito de histórias de filhos de combatentes que cresceram a ouvir falar da guerra colonial em casa. É sobre as perguntas que se fizeram aos pais, outras que nunca se ousaram fazer. São memórias também feitas de imaginação. A história de Teresa é uma de 12. Tudo começou num artigo no PÚBLICO que Catarina Gomes escreveu como se conta o horrível a uma criança? É fácil: relatando tudo como se fosse apenas uma aventura, adoptando quem a narra o tom de contador de histórias. Quase como se o pai estivesse a falar de outra pessoa que não ele, mesmo sabendo a filha que lhe estava a falar de si próprio e do que lhe aconteceu há muito, muito tempo...

Desde os seus quatro anos que Teresa Capítulo ouve falar da história. O pai foi­-lhe contando que um dia, num país chamado Guiné, num tempo em que Portugal vivia em guerra, ele estava lá a combater e houve uma emboscada. A prisão para onde o levaram era escura, de paredes cinzentas coloridas pelo sangue dos insectos sugado a ele e aos outros prisioneiros. Lá, à chegada, no seu primeiro dia, recebeu-o um misterioso homem de barbas longas e cicatriz que lhe atravessava a cara; esse homem, que sorriu quando viu o pai a separar os bichos do arroz branco antes de o comer, disse­-lhe: “Amanhã já não separas, é isso que te vai alimentar.”

Teresa conseguia imaginar esse lugar imundo e sombrio. Para ela, esse homem estranho simbolizava o primeiro contacto com aquele que seria doravante o mundo do pai, “a pessoa que o tinha recebido à entrada da porta do inferno”, mas também um mensageiro de esperança, uma espécie de homem de sabedoria que o ajudou a duvidar da sensação inicial, de que não conseguiria aguentar naquele sítio nem mais uma hora. Foi aquele homem que depois contou ao pai que estava preso há cinco anos e meio, isso mesmo, cinco anos e meio, e que escusava de se assustar: Nesse momento até lhe deu uma pancadinha nas costas, porque ali aguentariam os dois “cinco, dez anos”, tantos quantos fossem precisos até um dia saírem em liberdade — foi­-lhe dizendo o pai.

Entretanto, em Sesimbra, a terra que também é a de Teresa e de onde o pai saíra para a guerra antes de ela ter nascido, quando ainda era pescador e só tinha dezoito anos, chegou a notícia da sua morte. Isso mesmo, a morte do pai vinha escrita num recorte de jornal sem data, colado no álbum verde da tropa que Teresa se habituou a folhear desde menina e a ler quando já tinha aprendido a juntar letras e a tirar­-lhes o significado: “Ao serviço da pátria, na província da Guiné, morreram (…) e o soldado Vítor Manuel de Jesus Capítulo” — que era o nome do pai — “natural de Setúbal” — onde ele nascera — “filho da Sra. D. Januária de Jesus Capítulo e do Sr. Joaquim M. Capítulo” — os nomes dos avós paternos de Teresa. No final dessa notícia, o jornal até dava “às famílias dos malogrados militares sentidas condolências”, que Teresa criança aprendeu que é o que se faz quando alguém morre.

Ela sabia­-o mas era sempre entusiasmante ouvir a parte da história em que se percebeu que a notícia era mentira, que não era verdade que o pai tivesse morrido. Pouco tempo depois, veio a notícia de que, afinal, estava vivo mas tinha sido preso pelo inimigo. À espera, a mãe do pai, quando ainda não era sua avó, caiu no desespero. Quis viver a vida que imaginava que o filho­ prisioneiro em África teria, seria uma afronta ter mais do que ele. Passou a dormir no chão, a vestir roupa que não mudava e usava até ficar rota, a não comer, porque ter conforto e acesso a alimentação era ter o que o filho não tinha. Em Sesimbra, acorria muita gente lá a casa a querer ajudá­-la a passar o mau bocado, familiares, conhecidos, os últimos foram diminuindo com o avançar do tempo.

Nessa mesma terra, a sua prometida, uma rapariga de vinte e um anos que fazia costura como muitas da sua idade, ouvia todos os dias de muitas bocas, “refaz a tua vida, rapariga, ele não volta e se voltar não se sabe como, eles lá tiram olhos e unhas. Refaz a tua vida, rapariga”.

Na prisão deixaram­-no escrever-lhe algumas vezes e essa namorada foi sabendo que se mantinha vivo, mentindo para a sossegar — “estamos em segurança e têm­-nos tratado bem”. Vivia com uma lata para as necessidades e outra com água para beber, havia dias em que acordava de pestanas coladas, de tantos bichos acumulados, tinha que abrir os olhos de manhã com um pauzinho. Mas isso não estava escrito nas cartas, assim como o estarem todos eles cheios de feridas abertas e de problemas de pele causados pela falta de higiene. Teresa recorda-se sempre de o pai lhe ter contado que um dos colegas de prisão, por não haver mais nada com que se tratar, se decidiu besuntar de creolina, uma substância mais potente que a lixívia usada como desinfectante para os sanitários. O pai e os outros bem o avisaram, “ainda morres, pá”; ele respondeu que não aguentava mais e, depois de ter usado a creolina, esteve horas aos pulos com as dores. Ele curou­-se e os outros segui­ram­-lhe o exemplo.

O pai de Teresa foi sobrevivendo a bananas e a arroz com o gorgulho que se habituou a ter como prato principal, tal como lhe dissera o homem de barbas longas e cicatriz de uma catanada gravada na cara. Nos raros dias em que na prisão havia peixe para a refeição, o pai de Teresa era o primeiro a oferecer a sua mestria no amanho; ele era, afinal, homem do mar, era esta a forma de ir vendo o céu. Teresa não sabe exactamente quando foi no tempo mas lembra­-se bem de, no cubículo que era a cela, o pai ter sido obrigado a passar sete meses sem ver luz e sair de lá cego temporário a habituar­-se outra vez à claridade, ele que sempre andou ao céu de Sesimbra e o viu reflectido no mar, a bordo da Marília ou da Taínha, as traineiras com que andava à pesca antes de partir para a guerra.

Nos longos dias de prisão, contados com pauzinhos raspados na parede cinzenta pintalgada de vermelho, como nos filmes americanos, umas quantas vezes o chamaram a ele e aos outros para serem fuzilados. Alinhados em fileira, com armas apontadas. “Aconteceu várias vezes, chegava alguém à última hora e dizia, ‘Não os matam nada’. Era tudo muito desorganizado. Sentia­-se a fragilidade da situação, a precariedade”.

Passaram­-se trinta e três meses de cativeiro, quase três anos. Houve um dia em que, numa operação secreta, as tropas portuguesas rebentaram à noite com os muros da prisão que ficava em Conacri, a capital de um país chamado República da Guiné — um barulho tão forte que fazia lembrar os rebentamentos das pedreiras da Serra da Arrábida que se ouvem em Sesimbra —, onde o pai e os vinte e cinco colegas estavam, e os levaram. E ele contou­-lhe que muitas vezes, naquela altura, já solto, pensou que já não se importava de morrer ali, mesmo sendo no estrangeiro. “Não se importava de morrer lá, mas não na prisão”. Por isso, no barco onde os puseram a todos para fugir, em vez de se agachar em segurança dos disparos, pôs­-se em pé à proa, mesmo estando debaixo de fogo. “Era Sesimbra outra vez, era a liberdade”. Os militares portugueses que o salvaram a ordenar­-lhe, “baixa­-te, baixa­-te”, mas já não interessava. Estava louco de liberdade e ali já podia ficar.

De tão secreta que era a operação, estiveram uma semana incomunicáveis, isolados num forte, o Catalazete, em Oeiras. A família tinha apenas um telegrama a que se agarrar, “em breve vos abraçarei”. Durante tantos anos quantos os que demorou a chegar o 25 de Abril o pai não pôde revelar, compro­metendo­-se a isso por escrito e por sua honra, como o tinham salvado a ele e aos outros; um deles, o tal homem das barbas brancas e cicatriz na cara — que já mais velha aprendeu que era o sargento­ aviador da Força Aérea Portuguesa António Lobato, detido sete anos e meio — chegou mesmo a ter de dizer publicamente que se haviam salvo a si mesmos, que tinham fugido todos depois de um golpe de Estado no tal país.

Pele e osso — voltou com menos doze quilos do que levara para lá, com sessenta —, a 4 de Dezembro de 1970, Sesimbra encheu­-se de um mar de gente para o receber, tanto que mais parecia o dia da procissão do Senhor Jesus das Chagas, padroeiro dos pescadores, assim lhe descreveram o acontecimento para que Teresa percebesse o tamanho da multidão que o esperava. Para o imaginar, tinha também a ajuda dos recortes de jornal colados no álbum do pai. Uma outra notícia do jornal, título “Soldado regressado do Ultramar”: “conduzido num veículo militar, foi recebido à entrada da vila por grande multidão de sesimbrenses que lhe dispensou carinhoso acolhimento, entre palmas vivas, lágrimas e o estalar de foguetes, seguindo depois em cortejo pelas ruas da vila”. Não era o pai que contava, vinha escrito no Sesimbrense. Era a continuação dessa história que muita gente seguiu na vila como se fosse de suspense, porque não se sabia como acabaria. Sobreviveria o rapaz? Ali se soube que sim.

Regressado, voltaria bem de saúde? A do corpo parecia que sim. E a da cabeça? Teria a sua prometida ouvido os conselhos e seguido em frente com a sua vida? Afinal, já lá iam quase três anos.

Depois de tanto tempo de cativeiro, Teresa sabe que o pai chegou abalado, que não queria visitas nem falar com ninguém, que se isolou em casa dos pais, que dormiu um mês como se fosse um dia. Teresa também ouviu falar de uma carta que a tal namorada recebeu desse lugar longínquo de onde o pai lhe dizia para não esperar por ele, para refazer a sua vida, que o mais certo era não voltar.

Foi a primeira carta que Victor Capítulo enviou e uma das cerca de duas dezenas que tem guardadas com esmero; as que recebeu ficaram no calabouço dessa prisão de onde saiu só com a roupa interior. “Sinto-me na obrigação de dizer­-te estas palavras (…) Queridinha, caso não estejas disposta a esperar por mim, faz o que a tua consciência decidir, que eu sempre te saberei compreender”. “Essa carta era a mais forte”, diz Teresa, por isso sempre se falou dela nesta história de família.

A rapariga não ligou à carta do namorado e continuou à espera, mesmo com ele já chegado a Sesimbra e a querer passar dias a dormir. No ano seguinte ao seu regresso, a 26 de Setembro de 1971, o pai casou com Maria Raquel, a mãe de Teresa. Vingou o amor contra os maus agoiros; ele namorava com ela desde os catorze anos, ela esperara por ele mais de três anos. Ele voltou saudável, tiveram dois filhos. Teresa nasceu a 29 de Março de 1972, cerca de dois anos depois da chegada apoteótica de que fala o Sesimbrense.

Para Teresa Capítulo, esta é a história de um herói, a quem aconteceu o impensável, passou por sofrimentos e adversidades, mas o final foi feliz, contra todas as probabilidades. O pai era o herói que tinha tudo contra si e pensava a toda a hora “quando é que morro? Quando é que me dão um tiro? Quando é que apanho uma doença e morro?”, como aconteceu aos três prisioneiros que morreram junto dele de males de saúde que nunca tiveram nome.

Esse herói era o seu pai, que tinha voltado à sua terra natal em festa, tinha casado com a sua princesa, grato pela segunda oportunidade de vida. “Era uma história de livro, o argumento de um filme. Tinha todos os ingredientes: a noiva que estava à espera, a mãe deprimida, ele dado como morto… Às vezes a pessoa pensa que há coisas que só acontecem nos filmes”. Teresa sempre soube que isso não é verdade.

Cada retalho desta história foi sendo contado aqui e ali, ao longo do processo de crescimento de Teresa, peças sem sequência certa. “São episódios soltos, não os consigo arrumar no tempo”, explica. Não é como o pai, que lhes sabe os dias, porque os viveu, sentiu­-lhes o vagar do tempo a passar. A imaginação foi fazendo esse trabalho, tratando de dar forma a uma história com obstáculos que conduziam ao final feliz que tinha dado origem à sua existência.

Houve uma altura a partir da qual deixou de haver novidades na história contada e os episódios foram­-se repetindo, mas nunca cansavam, eram reconfortantes. “Pai, pai conta lá outra vez…” E ele contava, paciente, como quando um filho pede para lhe ser repetida sempre a história do mesmo livro, só que esta era verdadeira e era onde assentavam as fundações da ­família.

Mesmo assim, quando Teresa era pequena, estar o pai a contar a sua história ou um daqueles contos infantis como “o da Gata Borralheira” parecia quase igual. Nunca houve nesse contar qualquer sinal de comoção de, por ser aquela uma história na primeira pessoa, transtornar o relato, nunca transpareceu o sofrimento de quem a viveu. Para ela era hipnotizante.

Para ela e para outros. Eram histórias contadas ao serão em família ou em convívios com amigos e conhecidos. Vem­-lhe à memória uma vez em que estava um grupo à mesa, várias pessoas concentradas e caladas, a ouvir o pai contar a sua história. “Punha­-me de lado e percebia, ‘não acontece só comigo’. Havia uma sensação de encantamento. Tinha orgulho do meu pai”.

Naquele álbum bonito que agora afaga e que está arrumado como objecto importante que só sai de casa dos pais a pedido, quase todas as imagens desse tempo da guerra são de um pai feliz e bem­ disposto, bem nutrido, nas poses e cenários que, sabe Teresa, se devem repetir por álbuns de ex­-combatentes da guerra colonial por esse Portugal afora: o pai fardado ao lado de meninos negros de barrigas redondas, ao pé de mulheres negras de peitos nus, posando ao pé de bananeiras, de casas de colmo, o “‘teatrito’ empunhando armas de aspecto super sofisticado”, o pai agarrado ao seu equipamento de comunicações, a sua especialidade.

Ao ver esta última foto, veio-lhe logo à memória mais um episódio da aventura que mostrava a inteligência do seu protagonista: quando foi capturado, tinha no bolso papéis com códigos de comunicações que foi disfarçadamente desfazendo em pedacinhos e largando durante a marcha forçada, a seguir à captura, no Sul da Guiné, de acampamento em acampamento do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde). Algo parecido com o conto de Hansel e Gretel na floresta a largar as migalhas de pão.

Quando os homens que capturaram o pai lhe perguntaram o que fazia (tinha acabado de transmitir que estavam a ser atacados e a sua localização), teve a rapidez de espírito de mentir dizendo que era maqueiro e não radiotelefonista. Se dissesse a verdade iam obrigá­-lo a revelar códigos que podiam pôr operações e pessoas em perigo. Ainda o chamaram para fazer tratamentos, na sua qualidade de suposto maqueiro, e ele lá ia para ao pé de feridos sem saber o que fazer mas a fingir que sim, porque um maqueiro está habituado a ver homens naquele estado.

O assunto da guerra era de tal forma natural na família que Teresa até se lembra de, quando era pequena, brincar com o pai às comunicações. Nunca se esqueceu desses jogos, ainda hoje sabe “papaguear” o seu nome em código: Tango, Eco, Romeo, Eco, Sierra, Alfa. “Ó pai diz lá outra vez como é o meu nome em código”, pedia­-lhe muitas vezes, e ele: “Tango, Eco, Romeo, Eco, Sierra, Alfa.”

Apesar de, aos seus olhos de filha, ele surgir como o herói desta história, não quer dizer que tenha sido passada a imagem do super­-homem. “Não se sentia um homem de guerra, deve ter chorado, deve ter deprimido muito.” Transmitiu-lhe o medo que sentiu quando teve uma arma apontada a si e de, durante a longa caminhada pela selva depois da captura, “o inimigo” ser muito diferente entre si. Viu nos olhos de alguns “ódio profundo, de quem só não o matava porque não podia, em aldeias onde os soldados portugueses tinham destruído e matado as suas famílias”, mas também humanidade, como a do comandante guineense que impediu que ele e os dois colegas capturados fossem fuzilados e lhes disse, em crioulo, “coragem, camarada, que soldado veio ao mundo para sofrer”. Ou então nos aldeamentos onde “nunca tinham visto brancos e ficavam extasiados, ofereciam­-lhes coisas”. E, claro, nunca esquece a descrição do encontro com o líder do PAIGC, Amílcar Cabral, que lhe apertou cordatamente a mão e o convidou a desertar. “Há um carrossel de emoções, ambivalências. Não há bons e maus. Eles não se sentiam guerrilheiros, não estavam motivados para ir para a guerra, iam porque tinham de ir.”

Embora a história do cativeiro seja quase o único episódio de guerra que lhe foi contado e recontado, no álbum que está identificado como pertencendo ao “soldado radiotelefonista c. auto n.º 034680160”, a maioria das imagens dizem respeito ao período de cerca de um ano que passou na Guiné, antes de ser preso, são como as de qualquer outro soldado. Só há duas fotos que remetem para o campo de aprisionamento. Uma é uma fotocópia sumida de jornal, uma fileira de homens de farda pardacenta e ar esquálido onde Teresa consegue a custo identificar o pai. Havia uma outra foto, uma única, que procura no álbum que hoje tem nas mãos, mar de Sesimbra no horizonte, para a ajudar a rememorar. “Não está cá. Lembro­-me que me incomodou, fiquei impressionada, mostra um pouco o que ele passou.” Já na altura “era uma foto tresmalhada, não é daquelas fotos que é para guardar, é uma daquelas fotos que aconteceram. A gente não tira fotos de coisas negativas”. Era uma imagem do pai “com ar de refugiado, magro, com ar de pessoa doente, como um cadáver. É o confronto com a debilidade. Torna evidente o grau de sofrimento, a subnutrição. Já dá um outro lado não tão cor­-de­-rosa”. É a ponta solta da história de final feliz tornada ligeira para a filha e o filho ouvirem.

“É mais bonita a história que eu me lembro.” Não sabe porque desapareceu a imagem, há­-de perguntar ao pai. Aquela fotografia, que andava solta pelo álbum, não era das que estava fixada com cantinhos autocolantes em forma de triângulo. Congelava o sofrimento que não lhe havia sido transmitido pelo pai. Teresa sabe que a história que lhe foi relatada “não é uma tentativa de esconder, é uma opção de narrativa, uma versão suave”.

Aquela imagem que Teresa agora não encontra no álbum de fotografias fugia ao florear da história a que se habituou, e vai mais ao encontro de uma narrativa que se desenrolava em paralelo, mas à qual não prestava tanta atenção, a da mãe, do que sentiu, de como ele voltou e não queria falar com ninguém, só queria dormir.

Nunca presenciou sinais, mas há pormenores que foi apanhando em conversas de família quando era mais pequena. Teresa sabe que, a certa altura, o pai teve manifestações de stress­ pós­-traumático, chegou a ir a consultas, “terá havido episódios de pesadelos, houve períodos mais difíceis”, mas no geral desvaloriza essas manifestações. “Não estou a dizer que não tenha sequelas, mas não lhe perturbam a vida. O que ele tem é mínimo, proporcionalmente ao que passou. Vir melhor era quase impossível.”

A vida do pai e de quem ele se tornou depois do que passou simboliza a ideia de uma nova oportunidade, de relativizar o que não importa. Teresa ouviu de um dos seus colegas de cela que o pai “pregou-lhe um estaladão” quando um dia ele disse que não aguentava mais e se ia suicidar. E isso condiz com o pai que conhece, alguém moldado pelo seu percurso.

Teresa nunca viu o pai chorar, nem emocionar­-se, nem quando falou “dos colegas que viu ‘rebentar à frente’, um colega com quem ele trocou de posto e que pisou uma mina”, antes de ser preso. “A esse tipo de histórias eu não tinha perguntas para fazer. O que é que ia perguntar? Ficaram em quantos pedaços? Não me apeteceu perguntar, não queria saber mais.”

Se o pai optou por lhe contar uma versão da história, Teresa optou por querer ouvir apenas esta. “Não vale a pena mexer, escarafunchar. Está bem arrumado. Foi um episódio da vida do meu pai que foi resolvido, faz parte do passado.

O que está no presente é recordação, é memória, está integrado, não perturba.”

Por isso, foi muito estranha a entrevista gravada em vídeo que o pai deu recentemente para a junta de freguesia de Santiago (pertencente a Sesimbra), numa iniciativa “de recolha de memórias da terra”. Foi estranho ouvi­-lo a contar as histórias que lhe contava a si com ar sereno mas agora a emocionar­-se. Quando fala do momento em que o mudaram de uma cela completamente escura para uma outra onde uns ferrinhos no tecto deixavam entrar alguma claridade e como, num acto de agradecimento, disse “obrigado, eu aqui já vivo”. Naquele momento, aos vinte e sete minutos dos quarenta que tem de gravação, viu o pai de olhos cheios de lágrimas que não chegaram a cair, a pedir desculpa: “Estou comovido, estou a viver o que estou a dizer.”

Teresa não pôde evitar perguntar­-se. “Será que ele tem outro discurso sobre a guerra? Com os colegas? Com a mãe? Imagino que não.” Porém, não se lembra de alguma vez ter ido a um desses convívios de ex­-combatentes, é só ele e a mãe, mas sabe que são “mais que amigos, há um clique, quando estão juntos saltam para outro mundo”. Há uma realidade não partilhável.

É como se essa experiência de guerra do pai estivesse dividida em dois: o ano de comissão em que passou a combater, como qualquer outro militar na altura, e os quase três que passou aprisionado. Por isso, o pai mantém o convívio anual da companhia a que pertencia, mas a que só vai quando se realiza perto de Sesimbra, e um outro, em paralelo, o almoço dos prisioneiros de guerra. Este segundo “é, de longe, o mais importante”. Teresa conhece um grande amigo do pai, ex­-pri­sioneiro de guerra, a quem um dia tentou fazer as mesmas perguntas que colocava ao pai — “para mim era um tema tão natural” —, mas compreendeu que com ele não podia seguir em frente, “as respostas foram escassas, vagas, fugidias”. Ali percebeu que nem todos falavam com o à-vontade que conhecia ao pai em relação a esta porção da sua vida. Para a sua família “era um assunto normalíssimo, até achava que ele gostava de partilhar, era uma coisa que nos unia”. Aos outros prisioneiros conhece­-lhes as histórias através das fotos. E sabe: “De uma situação destas ou se sai melhor ou pior, ele saiu fortalecido.”

“Na gravação emocionou­-se, ele dantes não se emocionava.” Teresa explica que talvez seja da idade a avançar, vê isso com outras pessoas que com o envelhecer vão mostrando outra parte de si, “noto­-o mais frágil”.

Também viu esse lado do seu pai quando o convidaram para participar, em 2010, numa recriação da Operação Mar Verde encenada numa base; agora sabe que é esse o nome de código da operação secreta de que se falava lá em casa, por ter sido a que, a 22 Novembro de 1970, o libertou.

Teresa, entretanto, quis saber mais do que o pai lhe contava sobre “esta operação secreta, à filme americano” e comprou um livro publicado sobre a tal Operação Mar Verde. Percebeu que a libertação dos presos foi das poucas coisas que correram bem nessa operação, cujo objectivo era depor o Chefe de Estado da República da Guiné, Sékou Touré. Foi anti-natural perceber que pouco se fala dos reclusos no tal livro, dos vinte e seis prisioneiros de guerra que estiveram enclausurados períodos que foram desde os dois anos e meio até aos quase sete anos e meio do aviador. Foi estranho perceber que em cento e setenta e cinco páginas de livro o capítulo Libertação dos presos portugueses tem apenas cinco. Na sua família, a narrativa é mais simples, a Operação Mar Verde só é conhecida pelo nome e contornos gerais porque foi ela que trouxe o pai de volta. “Para mim é uma história da nossa família, não é política” e, na sua perspectiva, a todas as outras formas de a contar falta­-lhes “sumo e significado”.

A recriação em que o pai aceitou participar, em homenagem ao general que liderou a operação, Guilherme Alpoim Calvão, mexeu com ele, andava nervoso antes de acontecer, como se recriar fosse em parte reviver. Teresa não presenciou, ele contou­-lhe pouco, mas disse­ lhe que mesmo sendo a fazer de conta, foi fiel à cena original, não se baixou das balas e “foi de pé no barco, à proa”, como no dia em que se reencontrou com o mar, como se tivesse chegado ao Atlântico de Sesimbra, ainda estando nos mares da Guiné­ Conacri.

Este pai que se comove e o pai aparentemente sereno que lhe foi contando a sua história não são incompatíveis, a história é a mesma. “O importante não foi a forma como a viveu, mas como a contou.” E ele contou para ser isso mesmo, uma mensagem pedagógica passada aos filhos. “É pai. Como adultos, temos cuidado”, diz Teresa que é psicóloga e mãe de duas raparigas.

Teresa lembra­ se de que, na infância, sempre que ela ou o irmão diziam que não queriam comer ou que não gostavam da comida que tinham à frente, “lá vinha a história dos três anos que o pai teve que passar a comer arroz”. Esses retalhos de história foram usados para educar, para ir passando a mensagem de forma construtiva. Mas nunca estes relatos lhe tiraram o sono ou a perturbaram. O pai evitou que fosse um episódio negro que assombrasse a família.

Por essa razão, opôs­-se a que Teresa se chamasse Maria da Liberdade, como a mãe tinha prometido a Nossa Senhora ­baptizar uma filha, caso o futuro marido regressasse com vida. “Eu não me chamar Maria da Liberdade foi motivo de desavença nos primeiros tempos”, conta a sorrir. Era uma coisa séria, uma promessa. Foi o meu pai que não quis: “andei a penar três anos não quero que ela fique marcada com esse nome” — era essa a justificação que ele dava. “Passou a ser daquelas graças de família. Eu digo sempre que adoro o meu nome, Maria Teresa, porque quase me chamei Maria da Liberdade.”

Não ficou com o nome, mas Teresa diz que a forma como o pai escolheu contar o que viveu aos filhos é uma história fundadora da sua identidade, de quem ela é como pessoa, e também de quem são enquanto família: “pessoas que dão a volta por cima”. “Há forças que temos que não usamos. Socorro­-me disso quando preciso. E que a vida não é o que dela se espera e que o mais fácil é desistir”, explica. “O normal era ter sido fuzilado, ter posto termo à vida, era ter desistido ou ter apanhado uma doença.” A mãe podia ter dado ouvidos às vozes da vila que lhe repetiam “Refaz a tua vida, rapariga. Ele não volta e, se voltar, não se sabe como”, e arranjado outra pessoa, o pai podia não ter sido libertado por uma operação que nem sequer tinha como objectivo principal dar­-lhes a liberdade. “Bastava uma coisa ter falhado. Nem sempre a vida é o mais provável.”

Ainda hoje, em Sesimbra, onde Teresa vive com a família, continua a ser conhecida pelos mais velhos como “a filha daquele rapaz que esteve lá fora, a filha daquele que esteve preso”. De todas as vezes lhe sabe bem ouvir o final deste drama individual e familiar que a dada altura foi colectivo. “As pessoas sabem quem eu sou, associam­-me ao meu pai. ‘Ai és filha daquele rapaz. Ai, eu fiquei tão contente quando ele voltou’.” E Teresa tem consciência de que é uma experiência que a ajuda a fundar­-se. “É uma história que me arruma, que me guia, que me sabe bem relembrar. Seria uma pessoa diferente se não fosse Teresa Capítulo, filha de um prisioneiro de guerra.”

quarta-feira, 19 de março de 2014

«A ÚLTIMA MAMADA» (The last feed) by PAULA REGO

Imagem intercalada 1


A ÚLTIMA MAMADA» (The last feed) by PAULA REGO



Um dos últimos quadros de Paula Rego.
Quiçá, como reação à extinção da Fundação Paula Rego, instalada na Casa das Histórias em Cascais,


a pintora apresentou o trabalho intitulado The last feed (a última mamada).
Tendo sido apresentado em Londres, na sua última exposição (jan-março 2013),representa a figura de um 'palhaço rico' (onde se reconhece perfeitamente o retrato de Aníbal Cavaco Silva), com um pé no pedestal, a mamar nos seios de uma velha e decrépita Republica aperaltada com um chapéu.
O palhaço com a mão esquerda 'coça a micose'. A Velha pode representar a política, ou a nação.
Apesar de ter tido algum eco nas redes sociais não há registo de grandes referências à exposição (ou ao quadro) na imprensa portuguesa.
Ainda não se sabe se/quando a exposição virá a Portugal e se o quadro fará parte dela.

PARECER Por: Ricardo Araújo Pereira





"Caro Sr. primeiro-ministro, 

O conjunto de medidas que me enviou para apreciação parece-me extraordinário. Confiscar as pensões dos idosos é muito inteligente. Em 2015, ano das próximas eleições legislativas, muitos velhotes já não estarão cá para votar. Tem-se observado que uma coisa que os idosos fazem muito é falecer. É uma espécie de passatempo, competindo em popularidade com o dominó. E, se lhes cortarmos na pensão, essa tendência agrava-se bastante. Ora, gente defunta não penaliza o governo nas urnas. Essa tem sido uma vantagem da democracia bastante descurada por vários governos, mas não pelo seu. Por outro lado, mesmo que cheguem vivos às eleições, há uma probabilidade forte de os velhotes não se lembrarem de quem lhes cortou o dinheiro da reforma. O grande problema das sociedades modernas são os velhos. Trabalham pouco e gastam demais. Entregam-se a um consumo desenfreado, sobretudo no que toca a drogas. São compradas na farmácia, mas não deixam de ser drogas. A culpa é da medicina, que lhes prolonga a vida muito para além da data da reforma. Chegam a passar dois ou três anos repimpados a desfrutar das suas pensões. A esperança de vida destrói a nossa esperança numa boa vida, uma vez que o dinheiro gasto em pensões poderia estar a ser aplicado onde realmente interessa, como os swaps, as PPP e o BPN. Se me permite, gostaria de acrescentar algumas ideias para ajudar a minimizar o efeito negativo dos velhos na sociedade portuguesa:

1. Aumento da idade de reforma para os 85 anos. Os contestatários do costume dirão que se trata de uma barbaridade, e que acrescentar 20 anos à idade da reforma é muito. Perguntem aos próprios velhos. Estão sempre a queixar-se de que a vida passa a correr e que 20 anos não são nada. É verdade: 20 anos não são nada. Respeitemos a opinião dos idosos, pois é neles que está a sabedoria.

2. Exportação dos velhos. O velho português é típico e pitoresco. Bem promovido, pode ter aceitação lá fora, quer para fazer pequenos trabalhos, quer apenas para enfeitar um alpendre, um jardim.

3. Convencer a artista Joana Vasconcelos a assinar 2.500 velhos e pô-los em exposição no MoMa de Nova Iorque.

Creio que são propostas valiosas para o melhoramento da sociedade portuguesa, mantendo o espírito humanista que tem norteado as suas políticas.

Cordialmente,

Nicolau Maquiavel"

terça-feira, 18 de março de 2014

A GOLPADA- LEI 64/2013 de 27 de Agosto.


O segredo dos privilégios dos políticos já é lei!
Já tem a forma de Lei n.º 64/2013, de 27 de agosto, o sigilo dos privilégios dos políticos e foi publicado no Diário da República.
Portanto, por proteção da lei agora aprovada pela Assembleia da República, com os votos favoráveis do PSD, CDS/PP e do PS, passaram a ser secretos os privilégios dos políticos.
Vejam-se, neste caso e segundo esta lei, por exemplo, as chamadas pensões de luxo atribuídas aos ex-políticos (ex-deputados, ex-Presidentes da República, ex-ministros e ex-primeiros-ministros, ex-governadores de Macau, ex-ministros daRepública das Regiões Autónomas e ex-membros do Conselho de Estado) e os ex-juízes do tribunal constitucional, passaram a ser escondidas do povo português.
A partir de agora e na vigência desta lei, os portugueses e contribuintes ficam a desconhecer quem são e quanto recebem financeiramente do erário público e do orçamento geral de estado os ex-políticos e governantes.
O que é o mesmo que dizer que os políticos e governantes passam a poder decidir secretamente entre eles a atribuição a si mesmos dos benefícios, regalias, subsídios ou outras mordomias, sem que os portugueses, o povo português portanto, ou até mesmo os tribunais, tenham direito a saber o que os políticos fazem com o dinheiro que é de todos nós.
De facto e de lei, passou a haver uma qualidade superior de sujeitos, ao caso os políticos, governantes e juízes do tribunal Constitucional, que estão isentos do escrutínio público, não se encontram mais obrigados a revelar as fontes, as origens e a natureza dos seus rendimentos de proveniência pública, ou seja, que fazem com o dinheiro público o que muito bem entendem e não estão obrigados a prestar contas públicas do que fazem.
Lida esta nova lei tive de socorrer-me do Código Penal, onde fui encontrar semelhantes comportamentos e condutas nos dois artigos 308º e 375º do Código Penal, respectivamente o crime de "Traição à Pátria" por abuso de órgão de soberania e o crime de "Peculato".
Triste república esta em que vivemos, a delinquência já tem proteção de lei !

quarta-feira, 12 de março de 2014

MARINHO PINTO DENUNCIA A IMORALIDADE DAS LEIS QUE NOS IMPÕEM, PARA ELES TUDO , PARA O POVO NADA?




Pagamos 3,1€ para votar em políticos isentos de impostos e de responsabilidade?

UM ROUBO DE PROPORÇÕES INIMAGINÁVEIS!

http://www.youtube.com/watch?v=okhalDdjCmQ

As Finanças/As SS nazis



1 A história da falência da Throttleman e Red Oak, duas marcas de vestuário português que fecharam as lojas na semana passada, é o melhor exemplo de como, por debaixo da demagogia sobre o Portugal de sucesso, a vida prossegue, inexorável, a matar a pequena e média economia portuguesa. Esta história é tão irreal (e não é a única) que até dá vontade de fugir do país.

Antes de mais: a Throttleman foi criada em 1991 por três gestores (Pedro Pinheiro, Eduardo Barros e Nuno Gonçalves) acabados de sair da faculdade. O profeta do cavaquismo industrial, Mira Amaral, pedia, e bem, marcas próprias e redes de lojas nacionais, sobretudo em setores como o do vestuário onde vendíamos esmagadoramente para subcontratação. Quem ousasse devia até internacionalizar.

A Throttleman fez isso mesmo: lojas nos shoppings ao lado das grandes Zaras, Benettons ou Lacoste. Vendia camisas portuguesas e outro vestuário a preço médio-alto. Chegou a dar emprego a quase 750 pessoas. E chegou a abrir lojas nos Emirados Árabes Unidos e em Angola - em resumo, fez o que está escrito nos livros de gestão. Só que a derrocada de 15 de setembro de 2008, nos Estados Unidos, provocou o brutal arrefecimento do consumo mas não o da conta mensal de quem tinha investimentos a pagar. Uma média de 12 milhões de vendas anuais revelavam-se insuficientes.

Os 23 milhões de euros de passivo acumulado pela Throttleman e Red Oak levaram então a que, em novembro de 2012, ambas avançassem para o "Processo Especial de Revitalização", um mecanismo criado pelo Estado para ajudar empresas em dificuldades. Viáveis ou não? Os credores decidiriam. E neste caso as coisas correram de forma extraordinária: em apenas 76 dias conseguiu-se um acordo com cerca de 80% de créditos, incluindo a Segurança Social. Quem faltou? Praticamente apenas o Ministério das Finanças, ainda por cima credor privilegiado.

Aceite pelo tribunal o Plano de Recuperação, vida nova? Errado. As Finanças interpõem um recurso judicial que impediu a recuperação de arrancar. Há um ano. Apesar das Finanças e da Segurança Social terem assegurado o ressarcimento de 100% da dívida em 150 prestações, acrescidas de juros a uma média de 6,25%, as Finanças não aceitaram que os juros antigos e as coimas fossem perdoados em 80%. Uma gota no conjunto de todo o processo. (Note-se que, entretanto, as Finanças perdoaram 100% dos juros e 90% das coimas, em dezembro último, a quem pagou impostos em atraso por razões tão absurdas como fugas para off-shores, etc...).

A Throttleman andou 12 meses a lutar com as Finanças em recursos judiciais e depois o processo encalhou no Tribunal Constitucional. Entretanto, a gestão tornou-se impossível. Há dias anunciou o pedido de insolvência. Tinha 200 trabalhadores. As Finanças (e todos os outros) vão agora receber zero ou pouco mais.

2. Quando leio as notícias sobre o aumento da arrecadação fiscal, mês após mês, penso em casos como este e temo o pior. As Finanças estão a usar expedientes claramente selvagens para conseguir tirar o pouco que resta à economia. Penhoram tudo a toda a gente - até por pequenas multas. Sabem que os tribunais não funcionam e são inúteis como recurso dos contribuintes.

Uma empresa que recorra judicialmente contra o Fisco fica registada como incumpridora se não pagar à cabeça e é inibida de direitos básicos (ex: estágios profissionais apoiados). Passa a ter o seu nome publicado na lista "negra" dos devedores. Todos os meios valem. O novo sistema de fornecimento de informação - SAFT - obriga as empresas a porem nas mãos do Estado 100% da sua vida - clientes, preços, prazos, pagamentos.

As Finanças são um Estado prepotente (sem aspas nem metáforas), amoral, dentro de um país que tenta sobreviver à sistemática e brutal cobrança e aumento de impostos. Ainda vamos brevemente descobrir que boa parte do sucesso das exportações inclui também uma coisa óbvia: as mercadorias vão mas o lucro não volta. O Fisco está enganado se pensa que mete os empresários em campos de concentração fiscais (onde estão os trabalhadores por conta de outrem e pensionistas). O inimigo é comum - o Fisco. A ordem é "fugir". O ódio ao Estado é total. Lutar contra a carga fiscal é como militar na Resistência.

Manifesto: Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente


A nuvem de palavras do manifesto dos 70

Nenhuma estratégia de combate à crise poderá ter êxito se não conciliar a resposta à questão da dívida com a efectivação de um robusto processo de crescimento económico e de emprego num quadro de coesão e efectiva solidariedade nacional. Todos estes aspectos têm de estar presentes e actuantes em estreita sinergia. A reestruturação da dívida é condição sine qua non para o alcance desses objectivos.

O que reúne aqui e agora os signatários, que têm posições diversas sobre as estratégias que devem ser seguidas para responder à crise económica e social, mas que partilham a mesma preocupação quanto ao peso da dívida e à gravidade dos constrangimentos impostos à economia portuguesa, é tão-somente uma tomada de posição sobre uma questão prévia, a da identificação das condições a que deve obedecer um processo eficaz de reestruturação.

O que a seguir se propõe tem sempre em atenção a necessidade de prosseguir as melhores práticas de rigorosa gestão orçamental no respeito das normas constitucionais, bem como a discussão de formas de reestruturação honrada e responsável da dívida no âmbito de funcionamento da União Económica e Monetária, nos termos adiante desenvolvidos.

A actual dívida é insustentável na ausência de robusto e sustentado crescimento
A crise internacional iniciada em 2008 conduziu, entre outros factores de desequilíbrio, ao crescimento sem precedentes da dívida pública. No biénio anterior, o peso da dívida em relação ao PIB subira 0,7 pontos percentuais, mas elevou-se em 15 pontos percentuais no primeiro biénio da crise. No final de 2013 a dívida pública era de 129% do PIB e a líquida de depósitos de cerca de 120%. O endividamento externo público e privado ascendeu a 225% do PIB e o endividamento consolidado do sector empresarial a mais de 155% do PIB. A resolução da questão da dívida pública não só se impõe pelas suas finalidades directas, como pela ajuda que pode dar à criação de condições favoráveis à resolução dos problemas específicos do endividamento externo e do sector empresarial, que são igualmente graves.

A dívida pública tornar-se-á insustentável na ausência de crescimento duradouro significativo: seriam necessários saldos orçamentais primários verdadeiramente excepcionais, insusceptíveis de imposição prolongada.

A nossa competitividade tem uma base qualitativa demasiado frágil para enfrentar no futuro a intensificação da concorrência global. É preciso uma profunda viragem, rumo a especializações competitivas geradas pela qualidade, pela inovação, pela alta produtividade dos factores de produção envolvidos e pela sagaz capacidade de penetração comercial em cadeias internacionais ou nichos de mercado garantes de elevado valor acrescentado.

Trata-se certamente de um caminho difícil e de resultados diferidos no tempo. A sua materialização exige continuidade de acção, coerência de estratégias públicas e privadas, mobilização contínua de elevado volume de recursos, bem como de cooperação nos mais diversos campos de actividade económica, social e política. Será tanto mais possível assegurar a sustentabilidade da dívida, quanto mais vigoroso for o nosso empenho colectivo no aproveitamento das oportunidades abertas pela reestruturação no sentido de promover esse novo padrão de crescimento.

É imprescindível reestruturar a dívida para crescer, mantendo o respeito pelas normas constitucionais
Deixemo-nos de inconsequentes optimismos: sem a reestruturação da dívida pública não será possível libertar e canalizar recursos minimamente suficientes a favor do crescimento, nem sequer fazê-lo beneficiar da concertação de propósitos imprescindível para o seu êxito. Esta questão é vital tanto para o sector público como para o privado, se se quiser que um e outro cumpram a sua missão na esfera em que cada um deles é insubstituível.

Sem reestruturação da dívida, o Estado continuará enredado e tolhido na vã tentativa de resolver os problemas do défice orçamental e da dívida pública pela única via da austeridade. Deste modo, em vez de os ver resolvidos, assistiremos muito provavelmente ao seu agravamento em paralelo com a acentuada degradação dos serviços e prestações provisionados pelo sector público. Subsistirá o desemprego a níveis inaceitáveis, agravar-se-á a precariedade do trabalho, desvitalizar-se-á o país em consequência da emigração de jovens qualificados, crescerão os elevados custos humanos da crise, multiplicar-se-ão as desigualdades, de tudo resultando considerável reforço dos riscos de instabilidade política e de conflitualidade social, com os inerentes custos para todos os portugueses.

Por outro lado, a economia sofrerá simultaneamente constrangimentos acrescidos, impeditivos em múltiplas dimensões do desejável crescimento do investimento, da capacidade produtiva e da produtividade, nomeadamente pela queda da procura e desestruturação do mercado, diminuição da capacidade de autofinanciamento, degradação das condições de acesso, senão mesmo rarefacção do crédito da banca nacional e internacional, crescente liquidação de possibilidades competitivas por défice de investimento e inovação. Por maioria de razões, o ganho sustentado de posições de referência na exportação ficará em risco e inúmeras empresas ver-se-ão compelidas a reduzir efectivos.

Há que encontrar outros caminhos que nos permitam progredir. Esses caminhos passam pela desejável reestruturação responsável da dívida através de processos inseridos no quadro institucional europeu de conjugação entre solidariedade e responsabilidade.

Há alternativa.

A reestruturação deve ocorrer no espaço institucional europeu
No futuro próximo, os processos de reestruturação das dívidas de Portugal e de outros países – Portugal não é caso único – deverão ocorrer no espaço institucional europeu, embora provavelmente a contragosto, designadamente dos responsáveis alemães. Mas reacções a contragosto dos responsáveis alemães não se traduzem necessariamente em posições de veto irreversível. Veja-se o que vem sucedendo com a Grécia, caso irrepetível, de natureza muito diferente e muito mais grave, mas que ajuda a compreender a lógica comportamental dos líderes europeus. Para o que apontam é para intervenções que pecam por serem demasiado tardias e excessivamente curtas ou desequilibradas. Se este tipo de intervenções se mantiver, a União Europeia correrá sérios riscos.

Portugal, por mais que cumpra as boas práticas de rigor orçamental de acordo com as normas constitucionais – e deve fazê-lo sem hesitação, sublinhe-se bem –, não conseguirá superar por si só a falta dos instrumentos que lhe estão interditos por força da perda de soberania monetária e cambial. Um país aderente ao euro não pode ganhar competitividade através da política cambial, não lhe é possível beneficiar directamente da inflação para reduzir o peso real da sua dívida, não pode recorrer à política monetária para contrariar a contracção induzida pelo ajustamento e não tem banco central próprio que possa agir como emprestador de último recurso. Mas se o euro, por um lado, cerceia a possibilidade de uma solução no âmbito nacional, por outro, convoca poderosamente a cooperação entre todos os Estados-membros aderentes. A razão é simples e incontornável: o eventual incumprimento por parte de um país do euro acarretaria, em última instância, custos difíceis de calcular, mas provavelmente elevados, incidindo sobre outros países e sobre o próprio euro. Prevenir as consequências nefastas desta eventualidade é, de facto, um objectivo de interesse comum que não pode ser ignorado.

Após a entrada em funções da nova Comissão Europeia, deverá estar na agenda europeia o início de negociações de um acordo de amortização da dívida pública excessiva, no âmbito do funcionamento das instituições europeias. Na realidade, esse processo já foi lançado e em breve iniciará o seu caminho no contexto do diálogo interinstitucional europeu, entre Comissão, Conselho e Parlamento. É essencial que desse diálogo resultem condições fundamentais para defender sem falhas a democracia nos Estados-membros afectados, como valor fundacional da própria União.

Três condições a que a reestruturação deve obedecer
A Comissão Europeia mandatou um grupo de peritos para apresentar, designadamente, propostas de criação de um fundo europeu de amortização da dívida. O seu relatório será publicado antes das próximas eleições para o Parlamento Europeu. Essas propostas juntar-se-ão a várias outras formuladas nos últimos quatro anos. Recorde-se que a presente tomada de posição visa apenas a questão prévia da identificação das condições a que deve obedecer um processo eficaz de reestruturação. Serve-nos de guia o exposto sobre a dívida portuguesa, mas pensamos que as condições adiante sugeridas defendem também os melhores interesses comuns dos países do euro.

Tendo presente que a capacidade para trazer a dívida ao valor de referência de 60% do PIB depende fundamentalmente de três variáveis (saldo orçamental primário, taxa de juro implícita do stock de dívida e taxa nominal de crescimento da economia), identificam-se três condições a que deve obedecer a reestruturação da dívida.

1) Abaixamento da taxa média de juro
A primeira condição é o abaixamento significativo da taxa média de juro do stock da dívida, de modo a aliviar a pesada punção dos recursos financeiros nacionais exercida pelos encargos com a dívida, bem como ultrapassar o risco de baixas taxas de crescimento, difíceis de evitar nos próximos anos face aos resultados diferidos das mudanças estruturais necessárias. O actual pano de fundo é elucidativo: os juros da dívida pública directa absorvem 4,5%. do PIB. Atente-se ainda no facto de quase metade da subida da dívida pública nos últimos anos ter sido devida ao efeito dos juros.

2) Alongamento dos prazos da dívida
A segunda condição é a extensão das maturidades da dívida para 40 ou mais anos. A nossa dívida tem picos violentos. De agora até 2017 o reembolso da dívida de médio e longo prazo atingirá cerca de 48 mil milhões de euros. Alongamentos da mesma ordem de grandeza relativa têm respeitáveis antecedentes históricos, um dos quais ocorreu em benefício da própria Alemanha. Pelo Acordo de Londres sobre a Dívida Externa Alemã, de 27 de Fevereiro de 1953, a dívida externa alemã anterior à II Guerra Mundial foi perdoada em 46% e a posterior à II Guerra em 51,2%. Do remanescente, 17% ficaram a juro zero e 38% a juro de 2,5% Os juros devidos desde 1934 foram igualmente perdoados. Foi também acordado um período de carência de cinco anos e limitadas as responsabilidades anuais futuras ao máximo de 5% das exportações no mesmo ano. O último pagamento só foi feito depois da reunificação alemã, cerca de cinco décadas depois do Acordo de Londres. O princípio expresso do Acordo era assegurar a prosperidade futura do povo alemão, em nome do interesse comum. Reputados historiadores económicos alemães são claros em considerar que este excepcional arranjo é a verdadeira origem do milagre económico da Alemanha. O Reino Unido, que alongou por décadas e décadas o pagamento de dívidas suas, oferece outro exemplo. Mesmo na zona euro, já se estudam prazos de 50 anos para a Grécia. Portugal não espera os perdões de dívida e a extraordinária cornucópia de benesses então concedida à Alemanha, mas os actuais líderes europeus devem ter presente a razão de ser desse Acordo: o interesse comum. No actual contexto, Portugal pode e deve, por interesse próprio, responsabilizar-se pela sua dívida, nos termos propostos, visando sempre assegurar o crescimento económico e a defesa do bem-estar vital da sua população, em condições que são também do interesse comum a todos os membros do euro.

3) Reestruturar, pelo menos, a dívida acima de 60% do PIB
Há que estabelecer qual a parte da dívida abrangida pelo processo especial de reestruturação no âmbito institucional europeu. O critério de Maastricht fixa o limite da dívida em 60% do PIB. É diversa a composição e volume das dívidas nacionais. Como é natural, as soluções a acordar devem reflectir essa diversidade. A reestruturação deve ter na base a dívida ao sector oficial, se necessário complementada por outras responsabilidades de tal modo que a reestruturação incida, em regra, sobre dívida acima de 60% do PIB. Nestes termos, mesmo a própria Alemanha poderia beneficiar deste novo mecanismo institucional, tal como vários outros países da Europa do Norte.

Os mecanismos da reestruturação devem instituir processos necessários à recuperação das economias afectadas pela austeridade e a recessão, tendo em atenção a sua capacidade de pagamento em harmonia com o favorecimento do crescimento económico e do emprego num contexto de coesão nacional. Se forem observadas as três condições acima enunciadas, então será possível uma solução no quadro da União e da zona euro com um aproveitamento máximo do quadro jurídico e institucional existente.

A celeridade da aprovação e entrada em funcionamento do regime de reestruturação é vital. A única maneira de acelerar essa negociação é colocá-la desde o início no terreno firme do aproveitamento máximo da cooperação entre Estados-membros, de modo a acolher o alongamento do prazo de reestruturação, a necessária redução de juros e a gestão financeira da reestruturação, tendo em atenção as finalidades visadas pelos mecanismos de reestruturação.

Cada país integraria em conta exclusivamente sua a dívida a transferir e pagaria as suas responsabilidades, por exemplo, mediante a transferência de anuidades de montantes e condições pré-determinadas adequadas à capacidade de pagamento do devedor. As condições do acordo a estabelecer garantiriam a sua estabilidade, tendo em conta as responsabilidades assumidas por cada Estado-membro. Deste modo, a uma sã e rigorosa gestão orçamental no respeito das normas constitucionais acresceria o contributo da cooperação europeia assim orientada. As condições relativas a taxas de juro, prazos e montantes abrangidos devem ser moduladas conjugadamente, a fim de obter a redução significativa do impacto dos encargos com a dívida no défice da balança de rendimentos do país e a sustentabilidade da dívida pública, bem como a criação de condições decisivas favoráveis à resolução dos constrangimentos impostos pelo endividamento do sector empresarial público e privado e pelo pesado endividamento externo.

O processo de reestruturação das dívidas públicas já foi lançado pela Comissão Europeia. Fomos claros quanto a condições a que deve obedecer esse processo. A sua defesa desde o início é essencial. O nosso alheamento pode vir a ser fatal para o interesse nacional

A reestruturação adequada da dívida abrirá uma oportunidade ímpar, geradora de responsabilidade colectiva, respeitadora da dignidade dos portugueses e mobilizadora dos seus melhores esforços a favor da recuperação da economia e do emprego e do desenvolvimento sustentável com democracia e responsabilidade social.

Por quanto ficou dito, os signatários reiteram a sua convicção de que a estratégia de saída sustentada da crise exige a estreita harmonização das nossas responsabilidades em dívida com um crescimento duradouro no quadro de reforçada coesão e solidariedade nacional e europeia.

Estes são os termos em que os signatários apelam ao debate e à preparação, em prazo útil, das melhores soluções para a reestruturação da dívida.

Adriano Moreira
Adalberto Campos Fernandes
Adriano Pimpão
Alberto Ramalheira
Alberto Regueira
Alexandre Quintanilha
Alfredo Bruto da Costa
André Machado
António Bagão Félix
António Capucho
António Carlos Santos
António Eira Leitão
António Sampaio da Nóvoa
António Saraiva
Armando Sevinate Pinto
Artur Castro Neves
Boaventura Sousa Santos
Carlos César
Carlos Moreno
Constantino Sakellarides
Diogo Freitas do Amaral
Eduardo Cabrita
Eduardo Ferro Rodrigues
Eduardo Paz Ferreira
Emanuel Santos
Esmeralda Dourado
Eugénio Fonseca
Fausto Quadros
Fernanda Rolo
Fernando Gomes da Silva
Fernando Rosas
Francisco Louçã
Henrique Neto
João Cravinho
João Galamba
João Vieira Lopes
Joaquim Gomes Canotilho
Jorge Malheiros
Jorge Novais
José Almeida Serra
José Maria Brandão de Brito
José Maria Castro Caldas
José Reis
José Silva Lopes
José Vera Jardim
José Tribolet
Júlio Mota
Luís Braga da Cruz
Luís Nazaré
Luís Veiga da Cunha
Manuel Carvalho da Silva
Manuel de Lemos
Manuel Macaísta Malheiros
Manuel Porto
Manuel Sobrinho Simões
Manuela Arcanjo
Manuela Ferreira Leite
Manuela Morgado
Manuela Silva
Mariana Mortágua
Paulo Trigo Pereira
Pedro Adão e Silva
Pedro Bacelar de Vasconcelos
Pedro Delgado Alves
Pedro Lains
Pedro Marques Lopes
Ricardo Bayão Horta
Ricardo Cabral
Ricardo Paes Mamede
Rui Marques
Teresa Pizarro Beleza
Viriato Soromenho-Marques
Vítor Martins
Vítor Ramalho

quinta-feira, 6 de março de 2014

'Almofada financeira': Sete questões, sete pecados?



por VIRIATO SOROMENHO MARQUES E RICARDO CABRALHoje18 comentários

A retórica de sucesso nas operações de "regresso aos mercados", contrasta com as graves consequências da aparente falta de prudência na gestão do erário público, e não dissipa as dúvidas sobre se o controlo parlamentar, exigido pela Constituição e pela Lei-Quadro da Dívida Pública(LQDP), está a ser respeitado.
Desde 2011 o Governo passou a manter uma importante "almofada financeira", ou seja, um nível significativo de depósitos. No final de 2011, de acordo com a Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP), essa "almofada financeira" representava 8,4% do PIB (14,4 mil milhões de euros). Inicialmente foi uma almofada involuntária, consequência do memorando assinado pela troika que obrigava o Governo Português a utilizar euro12 mil milhões de euros do financiamento do programa de resgate para recapitalizar a banca.
Essa "almofada financeira" não está prevista na LQDP e até poderá considerar-se incompatível com os princípios da gestão eficiente da dívida pública e da minimização de custos consagrados nessa lei (art.os 2.º e 12.º). Estranhamente, não obstante a utilização dos fundos da "almofada financeira" para as recapitalizações bancárias (entre junho de 2012 e janeiro de 2013 foram utilizados 5,6 mil milhões de euros, do fundo de recapitalização da troika), a "almofada financeira" em vez de diminuir aumentou até 10,5% do PIB (17,2 mil milhões de euros) no final de 2013. Isso significa que houve uma ação deliberada do Governo ou do IGCP para aumentar o seu montante.
Primeira questão: a Assembleia da República mandatou o Governo ou o IGCP para criar e aumentar a dimensão da "almofada financeira"? A margem de manobra que as leis do Orçamento do Estado cedem ao Ministério das Finanças para o "reforço das dotações para amortização de capital" não constitui base legal alternativa suficiente ao estipulado pela LQDP.
Segunda questão: quem tem competência legal para definir a dimensão adequada da "almofada financeira" e para a gerir? Na prática, quem aparenta assumir essas competências é o IGCP. Mas não estarão em causa, nos termos do art.º 161.º da Constituição da República Portuguesa, competências do Parlamento?
A "almofada financeira" tem custos exorbitantes: o dinheiro que o Estado deposita junto do Banco de Portugal rende 0% por ano; o dinheiro que o Estado pediu emprestado à troika tinha, em abril de 2013, uma taxa de juro média de 3,2%, de acordo com o IGCP; o dinheiro que o Estado pediu emprestado em quatro emissões sindicadas de dívida de médio e longo prazo desde janeiro de 2013 (um total de 11 750 milhões de euros), tem uma taxa de juro média de 5,08%; e as emissões sindicadas têm ainda custos em termos de comissões pagas a bancos.
De acordo com as nossas estimativas, a taxa de juro bruta que deveria ser imputada a essa "almofada financeira" é de 4,4%. Portanto, a despesa bruta com juros de uma "almofada financeira" de tal dimensão é de 755 milhões de euros por ano.
Terceira questão: a Assembleia da República autorizou, especificamente, o Governo a realizar essa despesa em juros com a "almofada financeira"?
Ao aprovar (os mapas) da Lei do Orçamento do Estado, a Assembleia da República autoriza um dado nível de despesa com juros (em 2014, foram autorizados 7239 milhões de euros de despesa com juros). Contudo, se a "almofada financeira" tem custos brutos diretos de 755 milhões por ano, superiores ao orçamento de vários ministérios, a questão de uma autorização específica coloca-se como exigência legal e de ética pública elementar.
Sobre as duas recentes operações financeiras do IGCP: O artigo 4.º da LQDP define que a Assembleia da República estabelece, por lei, para cada exercício orçamental, as "condições gerais a que se deve subordinar [...] a gestão da dívida pública".
Na primeira das operações do IGCP, realizada a 11 de fevereiro de 2014, o Estado, apesar da volumosa almofada já constituída, pediu dinheiro emprestado: foi uma emissão "sindicada" de 3000 milhões de euros de obrigações de tesouro a uma taxa de juro de 5,11%. Na segunda, realizada a 27 de fevereiro de 2014, o Estado pagou parte de dois empréstimos antigos, antecipando em 7,5 e 19,5 meses o seu vencimento: uma operação de recompra de parte de duas séries de obrigações de tesouro que venciam em 15 de outubro de 2014 e 15 de outubro de 2015. Essas operações, tal como outras anteriores, que se inserem nas operações de gestão da dívida pública (artigo 12.º da LQDP) levantam as seguintes questões.
Quarta questão: dado o elevado montante dessas operações de gestão de dívida, não deveriam ser elas objeto de autorização específica da Assembleia da República?
Analisando a emissão sindicada a 11.2.2014 e a recompra em 27.2.2014 das obrigações que vencem a 15 de outubro de 2015, conclui-se que para conseguir recomprar 1026,6 milhões de euros dessa dívida o Estado pagou, em média, 103,437 euros por cada 100 euros de dívida. Isso significa que a dívida recomprada tinha uma taxa de juro implícita de 1,19%.
Há quem, olhando somente para a segunda operação, refira que o Estado poupou com essa operação de recompra perto de 20 milhões de euros em juros até outubro de 2015, esquecendo que o Estado irá gastar, durante esse mesmo período, 4,3 vezes mais na despesa com os juros dos fundos que utilizou para recomprar essa dívida. De facto, como o Estado se financiou, na emissão sindicada, à taxa de juro de 5,11% e utilizou esse dinheiro para recomprar dívida que rende 1,19%, esta operação de gestão de dívida custou 3,92 pontos percentuais (5,11% -- 1,19%), a que acrescem as comissões para os bancos do sindicato bancário. Ou seja, da emissão de 1026,6 milhões de euros de uma série de obrigações de tesouro e subsequente recompra dos mesmos 1026,6 milhões de euros de outra série de obrigações do tesouro resultou um aumento da despesa pública de, pelo menos, 40,14 milhões de euros por ano até à maturidade da segunda série de obrigações (15.10.2015). No atual quadro de restrição financeira é difícil compreender a realização de operações de "gestão da dívida" cujos principais efeitos são aumentar a despesa com juros e agravar a taxa de juro média da dívida da República.
Quinta questão: como pode a Lei do Orçamento de 2014 ser tão específica com cortes de salários e pensões e não impor (artigos 132.º e 136.º) quaisquer limites a taxas de juro e a operações de gestão de dívida, permitindo aumentos da taxa de juro em 4 pontos percentuais ou superiores numa mera operação de gestão de dívida?
Sexta questão: dado o montante do aumento da despesa com juros e/ou dívida deste género de operações ditas de gestão de dívida, não deveria a Assembleia da República fixar um limite para a despesa (em juros) e para as menos-valias resultantes de tais operações?
Sétima questão: o IGCP, em diversos roadshows internacionais tem anunciado a sua estratégia publicamente. Em resultado, investidores do sector privado podem antecipar as recompras do IGCP em vários meses e obter retornos elevados, à custa de um menor retorno para o erário público. Afirma-se que a recompra visa "antecipar a entrega de liquidez aos investidores", tentando seduzi-los para próximas emissões de dívida de longo prazo. Não se percebe se o que está em causa é aliviar o garrote da dívida do Estado, ou colocar os contribuintes a dar prémios de antecipação aos credores! Não seria mais justo e estimulante para a saúde económica do País se o Estado cedesse liquidez às PME, saldando as dívidas pendentes de mais de três mil milhões de euros, que tantas falências e desemprego provocam?

quarta-feira, 5 de março de 2014

DO BOM E DO MELHOR



(Leila Ferreira) 

Estamos obcecados com "o melhor". Não sei quando foi que começou essa mania, mas hoje só queremos saber do "melhor".
Tem que ser o melhor computador, o melhor carro, o melhor emprego, a melhor dieta, a melhor operadora de celular, o melhor ténis, o melhor vinho.
Bom não basta.
O ideal é ter o top de linha, aquele que deixa os outros pra trás e que nos distingue, nos faz sentir importantes, porque, afinal, estamos com "o melhor".
Isso até que outro "melhor" apareça - e é uma questão de dias ou de horas até isso acontecer. Novas marcas surgem a todo instante.
Novas possibilidades também. E o que era melhor, de repente, nos parece superado, modesto, aquém do que podemos ter.
O que acontece, quando só queremos o melhor, é que passamos a viver inquietos, numa espécie de insatisfação permanente, num eterno desassossego.
Não desfrutamos do que temos ou conquistamos, porque estamos de olho no que falta conquistar ou ter. Cada comercial na TV nos convence de que merecemos ter mais do que temos.
Cada artigo que lemos nos faz imaginar que os outros (ah, os outros...) estão vivendo melhor, comprando melhor, amando melhor, ganhando melhores salários.
Aí a gente não relaxa, porque tem que correr atrás, de preferência com o melhor ténis. Não que a gente deva se acomodar ou se contentar sempre com menos. Mas o menos, às vezes, é mais do que suficiente. Se não dirijo a 140, preciso realmente de um carro com tanta potência?
Se gosto do que faço no meu trabalho, tenho que subir na empresa e assumir o cargo de chefia que vai me matar de stress porque é o melhor cargo da empresa? E aquela TV de não sei quantas polegadas que acabou com o espaço do meu quarto?
O restaurante onde sinto saudades da comida de casa e vou porque tem o "melhor chefe"?
Aquele champô que usei durante anos tem que ser aposentado porque agora existe um melhor e dez vezes mais caro? O cabeleireiro do meu bairro tem mesmo que ser trocado pelo "melhor cabeleireiro"?
Tenho pensado no quanto essa busca permanente do melhor tem nos deixado ansiosos e nos impedido de desfrutar o "bom" que já temos.
A casa que é pequena, mas nos acolhe.
O emprego que não paga tão bem, mas nos enche de alegria. A TV que está velha, mas nunca deu defeito.
O homem que tem defeitos (como nós), mas nos faz mais felizes do que os homens "perfeitos".
As férias que não vão ser na Europa, porque o dinheiro não deu, mas vai me dar a chance de estar perto de quem amo.
O rosto que já não é jovem, mas carrega as marcas das histórias que me constituem.
O corpo que já não é mais jovem, mas está vivo e sente prazer.
Será que a gente precisa mesmo de mais do que isso? Ou será que isso já é o melhor e na busca do "melhor" a gente nem percebeu?

O Homem, esse ser superior!

http://www.youtube.com/embed/WfGMYdalClU

sábado, 1 de março de 2014

João Tordo escreve carta de despedida ao pai



O escritor João Tordo, filho do músico Fernando Tordo, escreveu no seu blogue uma carta de despedida ao seu pai que, aos 65 anos, decidiu emigrar para o Brasil, onde vai em busca de novos desafios por estar descontente com Portugal. Pode ler aqui o texto na íntegra.

"Ontem, o meu pai foi-se embora. Não vem e já volta; emigrou para o Recife e deixou este país, onde nasceu e onde viveu durante 65 anos. A sua reforma seria, por cá, de duzentos e poucos euros, mais uma pequena reforma da Sociedade Portuguesa de Autores que tem servido, durante os últimos anos, para pagar o carro onde se deslocava por Lisboa e para os concertos que foi dando pelo país. Nesses concertos teve salas cheias, meio-cheias e, por vezes, quase vazias; fê-lo sempre (era o seu trabalho) com um sorriso nos lábios e boa disposição, ganhando à bilheteira. Ontem, quando me deitei, senti-me triste. E, ao mesmo tempo, senti-me feliz. Triste, porque o mais normal é que os filhos emigrem e não os pais (mas talvez Portugal tenha sido capaz, nos últimos anos, de conseguir baralhar essa tendência). Feliz, porque admiro-lhe a coragem de começar outra vez num país que quase desconhece (e onde quase o desconhecem), partindo animado pelas coisas novas que irá encontrar. Tudo isto são coisas pessoais que não interessam a ninguém, excepto à família do senhor Tordo.

Acontece que o meu pai, quer se goste ou não da música que fez, foi uma figura conhecida desde muito novo e, portanto, a sua partida, que ele se limitou a anunciar no Facebook, onde mantinha contacto regular com os amigos e admiradores, acabou por se tornar mediática. E é essa a razão pela qual escrevo: porque, quase sem o querer, li alguns dos comentários à sua partida. Muita gente se despediu com palavras de encorajamento. Outros, contudo, mandaram-no para Cuba. Ou para a Coreia do Norte. Ou disseram que já devia ter emigrado há muito. Que só faz falta quem cá está. Chamam-lhe palavrões dos duros. Associam-no à política, de que se dissociou activamente há décadas (enquanto lá esteve contribuiu, à sua modesta maneira, com outros músicos, escritores, cineastas e artistas, para a libertação de um povo). E perguntaram o que iria fazer: limpar WC's e cozinhas? Usufruir da reforma dourada? Agarrar um "tacho" proporcionado pelos "amiguinhos"? Houve até um que, com ironia insuspeita, lhe pediu que "deixasse cá a reforma". Os duzentos e tal euros. Eu entendo o desamor. Sempre o entendi; é natural, ainda mais natural quando vivemos como vivemos e onde vivemos e com as dificuldades por que passamos. O que eu não entendo é o ódio. O meu pai, que é uma pessoa cheia de defeitos como todos nós - e como todos os autores destes singelos insultos -, fez aquilo que lhe restava fazer. Quer se queira, quer não, ele faz parte da história da música em Portugal. Sozinho, ou com Ary dos Santos, ou para algumas das vozes mais apreciadas do público de hoje - Carminho, Carlos do Carmo, Marisa, são incontáveis - fez alguns dos temas que irão perdurar enquanto nos for permitido ouvir música.

Pouco importa quem é o homem; isso fica reservado para a intimidade de quem o conhece. Eu conheço-o: é um tipo simpático e cheio de humor, que está bem com a vida e que, ontem, partiu com uma mala às costas e uma guitarra na mão, aos 65 anos, cansado deste país onde, mais cedo do que tarde, aqueles que o mandam para Cuba, a Coreia do Norte ou limpar WC's e cozinhas encontrarão, finalmente, a terra prometida: um lugar onde nada restará senão os reality shows da televisão, as telenovelas e a vergonha. Os nossos governantes têm-se preparado para anunciar, contentíssimos, que a crise acabou, esquecendo-se de dizer tudo o que acabou com ela. A primeira coisa foi a cultura, que é o património de um país. A segunda foi a felicidade, que está ausente dos rostos de quem anda na rua todos os dias. A terceira foi a esperança. E a quarta foi o meu pai, e outros como ele, que se recusam a ser governados por gente que fez tudo para dar cabo deste país - do país que ele, e milhões de pessoas como ele, cheias de defeitos, quiseram construir: um país melhor para os filhos e para os netos. Fracassaram nesse propósito; enganaram-se ao pensarem que podíamos mudar. Não queremos mudar. Queremos esta miséria, admitimo-la, deixamos passar. E alguns de nós até aí estão para insultar, do conforto dos seus sofás, quem, por não ter trabalho aqui - e precisar de trabalhar para, aos 65 anos, não se transformar num fantasma ou num pedinte - pegou nas malas e numa guitarra e se foi embora. Ontem, ao deitar-me, imaginei-o dentro do avião, sozinho, a sonhar com o futuro; bem-disposto, com um sorriso nos lábios. Eu vou ter muitas saudades dele, mas sou suspeito. Dói-me saber que, ontem, o meu pai se foi embora."