quinta-feira, 26 de maio de 2016

José Rodrigues dos Santos é manipulador ou ignorante?

O autor da ideia de “como não há os livros que gostaria de ler, escrevo-os eu” voltou a brindar-nos com disparates. Desta vez, a vítima da sua ignorância foi o marxismo e principalmente a cultura democrática

Texto de Bruno de Góis • 24/05/2016 

Bruno de Góis é investigador do Centro de Estudos Comparatistas da U. Lisboa e tem trabalhado em teorias e ideias políticas

O ódio de José Rodrigues dos Santos à esquerda é já bem conhecido. Recentemente vimos como, no seu estilo apocalíptico, dramatizou a notícia de que a dívida pública estava próxima dos 130% do PIB. O motivo é claro: quer atacar a solução actual de um Governo PS apoiado pela esquerda. A mesma notícia nos tempos do governo das Direitas não mereceu esse escândalo. Uma vergonha para o jornalismo português.

Outro episódio que ilustra bem o estilo faccioso, apocalíptico e manipulador de José Rodrigues dos Santos (JRS) foram as vergonhosas reportagens nas vésperas das eleições gregas de Janeiro de 2015, quando já se previa a vitória do Syriza. Há décadas que não se ouvia na TV tanta ênfase e tanta repetição da expressão “extrema-esquerda”.

O aprendiz de feiticeiro JRS subiu agora um degrau académico na manipulação, chegou à história das ideias políticas. Ementrevista ao "Diário de Notícias", diz que os seus livros “'As Flores de Lótus' e 'O Pavilhão Púrpura' mostram realidades” e que “o facto de que o fascismo é um movimento que tem origem marxista, por exemplo, é uma das demonstrações feitas nesta saga”. A ficção de JRS demonstra! Que bela ciência política!

Na entrevista ao jornal "i" insiste nessa ideia e vai mais além: “Uma das coisas que hoje não se sabe, mas que é verdadeiro, é que o fascismo é um movimento de origem marxista”, “pouquíssima gente sabe isto”, sublinha. E depois, arrogando-se de exímio conhecedor da história das ideias políticas, decreta que o fascismo, “em certos aspectos, é mais ortodoxamente marxista do que o comunismo”.

Onde acaba a manipulação e começa a ignorância de José Rodrigues dos Santos é um segredo da "Fórmula de Deus". O mais relevante nesta história é que a vítima principal deste discurso de ódio é a cultura democrática. A derrota dos nazis pelos Aliados pôs fim à Segunda Guerra Mundial no solo europeu e assentou bases para uma cultura democrática antifascista. As resistências antifascistas uniram em vários países europeus correntes de esquerda e de direita, nelas participaram com papel muito relevante, pagando frequentemente com a própria vida, muitas e muitos socialistas e comunistas. Não estando em causa as críticas que é necessário fazer ao socialismo real, é vergonhoso fomentar a confusão entre as teorias e ideologias da emancipação das classes trabalhadoras e as ideologias racistas, reaccionárias e elitistas.

O ambiente da crise do capitalismo à volta de 1929 e a incapacidade dos regimes liberais para lhe fazer face abriram caminho à ascensão dos fascismos. Os reaccionarismos decadentes que vinham do século XIX e as linhas mais duras de vários conservadorismos souberam modernizar-se e ergueram poderosas ideologias de massas que parasitaram outras ideias e culturas populares. Gente de todos os quadrantes políticos anteriores aderiu aos movimentos fascistas, gente de todos os quadrantes foi perseguida e assassinada pelos fascistas. Muitos populares cristãos e democratas cristãos fizeram parte dos primeiros governos fascistas, outros foram seus opositores heróicos. Se eu fosse um manipulador como JRS, dizia só a primeira parte da frase anterior.

Estamos num péssimo momento para cair na armadilha de colocar a esquerda e a extrema-direita no mesmo saco. Ainda ontem, no país natal de Hitler, estivemos à espera de saber se era eleito um presidente de extrema-direita. Ganhou o candidato dos Verdes, para alívio de todos os democratas. Em França, Marine Le Pen é forte candidata a repetir o feito de, no mínimo, quase ganhar as presidenciais. Na Alemanha, um partido da ultradireita também faz caminho. Na Polónia e na Hungria, ultraconservadores e neofascistas vão tomando conta da política. Por toda a Europa, com mais ou menos força, regressam com novas roupagens as ideias antidemocráticas, xenófobas e islamofóbicas.

O discurso de José Rodrigues dos Santos não é só estúpido, é extremamente perigoso para a cultura democrática.



segunda-feira, 23 de maio de 2016

Mas que raio é que têm contra o papel?

JOSÉ PACHECO PEREIRA 21/05/2016

As declarações de Costa sobre o papel são para mim preocupantes. Preciso, em Portugal e em 2016, que haja papel em vários sítios e usos.


Agora vou fazer de sequaz do General Ludd, de “Velho do Restelo”, de Unabomber, de “apocalíptico” ou alguma variante do que isso é. Não sabem quem é o General? Vou responder como uma vez fez Medeiros Ferreira quando encontrou uma jornalista que não sabia o que era o Nó Górdio: se não sabem deviam saber. Vem nas Enciclopédias e, helás!, vem na Wikipedia. Quanto ao Velho do Restelo, já é o habitual, acham que que Camões o usa como personagem negativa, quando é exactamente o contrário: o Velho do Restelo é uma das personagens chave em tornar os Lusíadas um excepcional epopeia, porque o seu autor trata o Velho do Restelo como poucas personagens no texto. Dá-lhe uma força moral que ninguém tem, nem o Gama, nem ninguém. Quanto ao Unabomber, admito que é por excesso e os “apocalípticos” ficam bem na classificação de Umberto Eco.

Mas ouvindo aquelas frases de António Costa sobre o papel, quando deu a vaca que voa à Senhora Ministra do Simplex, eu fico possuído pelas figuras tutelares acima citadas e outras ainda mais sinistras. Ele quer acabar com o papel, acabar com as impressoras, deixar uma solitária impressora em cada repartição (e uma gloriosa fila de gente à espera da certidão…), e poupar, diz ele, trinta milhões de euros. Nosso Senhor Santo Cristo, o homem é um perigo público e não sabe o que está a dizer, porque, que o possa fazer, é ainda menos provável do que ver uma vaca voar. Vou inscrever-me como lobista da Portucel e da HP, e explicar os perigos de uma sociedade sem papel e pior ainda de um estado sem papel, onde circulam apenas bits e bytes. Em 2016, em Portugal e não numa utopia tecnológica.

Não tenho nenhuma nostalgia do papel, não tenho saudades do cheiro dos livros, mas sei que não é a mesma coisa ler num ecrã e ter vantagem em ler num ecrã por causa do hipertexto, e ler num livro. No dia em que for comum alguém ler a Guerra e Paz num telemóvel falem-me. No dia em que folhear electronicamente for tão fácil e tão fuzzy como é no papel, eu concedo que as últimas vantagens do livro foram ultrapassadas sem problema. Mas admito que possa ser apenas uma questão de tempo, embora os nossos sentidos sejam sempre uma limitação física ao conforto de ler em espaços pequenos e ler em volume (como se passa no hipertexto) não é a mesma coisa do que ler “corrido” principalmente na ficção.

Mas não é por isso que as declarações de Costa sobre o papel são para mim preocupantes. Preciso, em Portugal e em 2016, que haja papel em vários sítios e usos, e a corrida ao mundo sem papel é perigosa e leviana, sem ser precedida de outro tipo de obrigações e práticas que não existem ou quando existem ficam apenas… no papel.

Comecemos pela obrigação de os actos do Estado, logo dos governos e de outras instituições públicas, estarem registados para escrutínio presente ou futuro conforme a natureza dos documentos em causa. Pode ser que num futuro ideal estar toda a informação em formato electrónico e só aí, seja possível sem se levantar o problema de accountability que vou suscitar. É verdade que o Wikileaks e os papéis da Mossack Fonseca não poderiam ser “roubados” se não estivessem em formato electrónico dada a sua dimensão. Mas eles foram “roubados” sem autorização dos seus possuidores, não é líquido que estivessem todos abertos ao escrutínio público, e que não fossem apagados ou escolhidos a dedo pela simples razão de que muitos documentos electrónicos não têm outro registo que não seja o da sua própria existência, quando se sabe onde estão. Principalmente os que são mais sensíveis, quando existem.

Parece absurdo o que estou a dizer, mas eu dou um exemplo concreto: o registo das comunicações, reuniões, responsabilizações, etc., nas negociações entre o governo português e a troika de 2011 a 2015. Quem propôs o quê, quem disse o quê, quem decidiu o quê. Começa por não ser líquido o que devia estar registado ou não e por quem. Havia actas das reuniões? Em que formato? Eram os documentos numerados e datados de modo a perceber-se o que pode faltar? Como eram certificados, quem os assinava e sob que forma? Onde estão depositados, em Bruxelas, em Washington, num computador do governo, ou em computadores dos participantes, sabendo-se como se sabe que havia alguma promiscuidade no uso dos computadores pessoais? Este registo oficial incluiu o correio electrónico oficial ou as comunicações privadas? Como é que se define a diferença entre o que é público e o que é privado para efeitos de registo obrigatório? Há registo dos telefonemas feitos e uma síntese desses telefonemas como é suposto existir, por exemplo, nas comunicações diplomáticas? Podia continuar a fazer perguntas e suspeitar quais são as respostas.

É verdade que o papel não garante a fidedignidade e a completude dos registos neste e noutros casos, mas ajuda. Quem quiser enganar-nos também o faz em papel. O problema são sempre em primeiro lugar as pessoas. Mas pode e deve haver alguma prudência em facilitar a fuga à responsabilidade. Mas, nos dias de hoje, o papel “coage” mais do que o registo electrónico e permite menos “despacho” em não registar nada, que é o ideal do governante que não quer assumir responsabilidades.

É igualmente verdade que tudo isto podia ser feito em segurança sem papel, mas em Portugal em 2016, tenho a certeza absoluta que se houvesse pelo menos algum registo do que aconteceu em papel e esses documentos, que é o do que se trata, fossem registados, numerados e seriados como deveriam ser, seria mais difícil impedir o escrutínio que algum dia (e já devia ter sido esse dia) terá que ser feito. É também verdade que o registo electrónico é mais fácil e pode compreender um maior número de documentos, actas, registos de contactos, etc., mas o próprio carácter discricionário do que se regista ou não, a falta de critérios e a facilidade com que as comunicações electrónicas escapam ao registo e podem ser adulteradas é, admirem-se!, bastante maior do que se o registo for, pelo menos em parte, físico.

Eu, se fosse Ministro das Finanças e não concordasse com uma medida que atroika me impusesse, gostaria que tudo isso ficasse em acta, lida e assinada “nos termos da lei”. Parece anacrónico, mas não é. Do mesmo modo que muitos tribunais em vários países não aceitam como prova fotografias digitais.

O que se passa é que as pessoas se embasbacam com as novas tecnologias e se esquecem que elas podem ser particularmente úteis se forem combinadas com outras mais velhas tecnologias. Mas não, quer-se ser moderno e tudo para a frente! E o que se faz, é por deslumbramento e sem os cuidados necessários, e pode custar-nos muito mais do que os 30 milhões de euros.

O resultado é tornar o escrutínio da vida pública mais difícil e gerar outros efeitos perversos sobre a privacidade das pessoas (como acontece com as facturas no fisco, também com um e- no início) ou dificultar-lhes corrigir erros da administração porque qualquer funcionário vai achar que o registo electrónico é a “verdade”, mesmo que incorpore um erro que se desloca de uma base de dados para outra.

Mantenham lá uma parte das coisas em papel, e adaptem as regras pouco a pouco ao predomínio do registo electrónico. Sem pressa. Mesmo nos EUA não tem sido fácil, quanto mais em Portugal. Mas é típico querer-se correr mais depressa do que as pernas, e também é normal que quem governa dê pouca importância ao controlo dos cidadãos sobre o estado, a governação e administração.

Já permitimos ao Estado, quase sem se dar por ela, coisas demais, saber demais sobre cada um de nós, escapar ao controlo dos cidadãos. Convinha não facilitar.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

O IDOSO

*Só não tenho a certeza se os mais novos vão envelhecer…? Se tal acontecer ainda bem para eles…! *

*Eu nunca trocaria os meus amigos surpreendentes, a minha vida maravilhosa, a minha amada família por menos cabelo branco ou por uma barriga mais lisa.
À medida que fui envelhecendo, tornei-me mais amável para mim, e menos crítico de mim mesmo. Eu tornei-me o meu próprio amigo... Eu não me censuro por comer um cozido à portuguesa ou uns biscoitos extra, ou por não fazer a minha cama, ou por comprar algo supérfluo que não precisava. Eu tenho o direito de ser desarrumado, de ser extravagante e livre. Vi muitos amigos queridos deixarem este mundo cedo demais, antes de compreenderem a grande liberdade que vem com o envelhecimento. Quem me vai censurar se resolvo ficar a ler, ou a jogar no computador até as quatro horas da manhã, ou a dormir até meio-dia? Se me apetecer dançar ao som daqueles sucessos maravilhosos dos anos 60 & 70, e se, ao mesmo tempo, quiser chorar por um amor perdido... danço e choro. Se me apetecer andar na praia com um calção excessivamente esticado sobre um corpo decadente, e mergulhar nas ondas com abandono, apesar dos olhares penalizados dos outros, os do jet set, aí vou eu. Eles, também vão envelhecer. Eu sei que às vezes esqueço algumas coisas. Mas há mais algumas coisas na vida que devem ser esquecidas. Eu recordo-me das coisas importantes. Claro, ao longo dos anos o meu coração foi quebrado. Como não se pode quebrar o coração quando se perde um ente querido, ou quando uma criança sofre, ou mesmo quando algum animal de estimação amado é atropelado por um carro? Mas corações partidos são os que nos dão força, compreensão e compaixão. Um coração que nunca sofreu é imaculado e estéril e nunca conhecerá a alegria de ser imperfeito. Eu sou tão abençoado por ter vivido o suficiente para ter os meus cabelos grisalhos e ter os risos da juventude gravados para sempre nos sulcos profundos do meu rosto. Muitos nunca riram, muitos morreram antes dos seus cabelos virarem prata. Conforme se envelhece, é mais fácil ser-se positivo e preocupamos-nos menos com o que os outros pensam. Eu não me questiono mais. Eu ganhei o direito de estar errado. Assim, para responder à sua pergunta, eu gosto de ser idoso. A idade libertou-me. Eu gosto da pessoa em que me tornei. Eu não vou viver para sempre, mas enquanto cá ando, não vou perder tempo a lamentar-me do que poderia ter sido, e não me vou preocupar com o que será o futuro.
E eu vou comer sobremesa todos os dias (se me apetecer).*


*Que a nossa amizade nunca se quebre porque é directa do coração!*

domingo, 15 de maio de 2016

O que fica bem a uma mulher

ALEXANDRA LUCAS COELHO  15/05/2016


1. Aos 18 anos, eu achava que era pós-feminista. Trinta anos depois, sou feminista, mais a cada dia, e não será por acaso que ouço cada vez mais mulheres declararem-se feministas. Certamente não ficaram todas malucas, ou sem homem, ou contra os homens, como os machistas, homens ou mulheres, gostam de acreditar. Falo em machistas homens ou mulheres porque há mulheres machistas, tal como há homens feministas. Machista é qualquer espécie de abuso ou coacção sobre as mulheres, perpetuando a imposição de um modelo.

2. Claro que hoje, na maior parte das democracias, muito mais mulheres ocupam espaços antes dominados por homens, e nos últimos 30 anos deram-se outros avanços decisivos, incluindo os jurídicos. O machismo tem objectivamente menos margem de manobra, pode com mais frequência ser punido em tribunal. Mas creio que se há 30 anos eu me via pós-feminista era por acreditar que os machistas estavam em extinção, evolução natural, questão de tempo. E se agora me vejo cada vez mais feminista é por verificar que, mesmo com tudo o que se fez e sabe, malgrado o que já deveria ter sido culturalmente absorvido, em países em que as condições legais para isso supostamente existem, em suma, apesar de todas as oportunidades que os machistas tiveram para deixar de o ser, o machismo soma e segue, reciclado consoante o estilo, o tempo, o lugar, desde a piadinha à violência extrema. Para ficarmos pela piadinha, a aprovação da lei contra o assédio parece ter tido pouco efeito nos grunhidos da minha zona histórica de Lisboa, então de cada vez que dobro a esquina (eu ou qualquer ser aparentemente do sexo feminino), tenho pensamentos ruins sobre o futuro daqueles proto-stalkers. E o que desejo aos piadistas que julgam ter feito humor com a lei dos piropos é que sejam assediados por um tiranossauro de dimensões extrapriápicas, todos os dias, sempre que saírem de casa, para que possam experimentar quotidianamente aquilo que, de facto, não gostariam que acontecesse às filhas, às mulheres, às irmãs, às mães. Portanto, de algum modo, o clima é mais agreste do que há 30 anos: se a cabeça ainda não abriu, vai abrir quando?

3. Os exércitos de inimputáveis gerados pelas novas possibilidades virtuais alimentam este clima agreste, em que cada vez mais mulheres sentem a necessidade de um feminismo activo. Por um lado, a fasquia subiu, ou seja, mais mulheres não têm pachorra para levar caladas com o que antes passava ao largo. Por outro lado, sabemos muito mais do que se passa, e não se passa, nas cabeças, porque elas estão escancaradas nas redes sociais e nas caixas de comentários, muitas vezes a salvo de um frente-a-frente, ou a coberto de anonimato. É possível que o aumento dos números de violência doméstica (cujo alvo, na esmagadora maioria dos casos, são mulheres) reflicta um aumento de denúncias, e portanto maior fortalecimento das mulheres. Em resumo, parte do que parece pior será apenas porque veio ao de cima, não porque não estivesse lá. Mas vir ao de cima é uma razão mais para lutar, está identificado.

4. E o embate dá-se logo aí. Mulheres demasiado activas, demasiadocombativas, demasiado lutadoras: nada disso fica bem a uma mulher, do ponto de vista machista. Aliás, em geral, numa mulher, muito é sempredemasiado. Uma mulher que fale de forma clara, tenha opiniões, se posicione ou lute é facilmente demasiado assertiva, quando não histérica, esganiçada, radical, maluca. Já um homem de convicções, como sabemos, será positivamente assertivo, corajoso quando combate, e se explode ninguém o dirá neurótico. Milhares de anos de sonsice desaguam aqui, frescos e prontos para mais um milénio. Depois de tudo o que sabemos, o próprio da mulher, para o bem e para o mal, é ser sonsa, ambígua, dissimulada, manobrar pela sombra, levar o seu homem com jeitinho, levar a água ao seu moinho sem muito barulho, como as mulheres sempre fizeram, segundo a história gravitacional dos homens. Nessa versão, mulher sempre foi cabra e anjo, puta e mãe, num slalon de esperteza e artimanha, esforço em silêncio, dor muda. A eles, o mundo, a força, a clareza, a guerra. A elas, artes de não se fazerem notar demasiado, além do que se espera delas.

5. Nunca tive de combater machismo de forma sistemática dentro de uma relação ou no trabalho, nem discriminações ou opressões extra, também porque sou branca, saudável, de classe média, num país que é uma democracia, não está em guerra nem é dos mais pobres do mundo. Nesse sentido, faço com certeza parte de uma minoria que, graças a gerações anteriores, já não teve de lutar contra e por muita coisa. Tive ainda a sorte de começar a ser repórter aos 18 anos, num tempo em que era muito mais fácil do que hoje ir ao fim da rua e ao fim do mundo, ou seja, muito além das nossas circunstâncias. Trinta anos depois, essa simples liberdade de movimento e de expressão não é tão simples assim, para muita gente, é mesmo muito mais rara. E poder ter noção disso também é um privilégio.

6. Nas redacções onde trabalhei, tive quase sempre directores (homens) e creio que nunca fui tratada de forma distinta por ser mulher. Que me lembre, jamais me disseram que não seria aconselhável ir para Sarajevo, Gaza ou Kandahar. Lugares como estes ajudaram-me a ver a que ponto era uma privilegiada pelo simples facto de poder estar ali. E em todos fiquei feliz de ser mulher, poder ver o que repórteres homens não poderiam, ou por não estarem para aí inclinados, ou por o universo das mulheres lhes estar vedado. Tive muita sorte, em geral e em particular, por poder transportar palavras, imagens e sons de mulheres (como de homens, naturalmente) que viveram e vivem o impensável, coisas que fazem uma burqa parecer o menor problema. Mas tudo isso também me ajudou a saber que não sei melhor do que qualquer mulher o que é bom para ela. A luta será sempre para que ninguém decida por ela, muito menos contra ela.

7. Quando fui morar para o Rio de Janeiro, tive embates com a persistência de um modelo feminino em meios que tinham todas as condições para já terem superado isso. Só o simples facto de usar óculos 100% do tempo, por exemplo quando saía à noite, era incomum, e assinalado. Tudo isso tem vindo a rebentar de alguma maneira, e um dos bons frutos das convulsões brasileiras dos últimos tempos foi a emergência de um feminismo activo, mestiço e socialmente transversal.

8. A minha alergia a modelos sempre incluiu a alergia a um tipo de feminismo totalitário, que certamente contribuiu para aos 18 anos eu me sentir especificamente pós-feminista, além de pós-ismos em geral. A ideia de ter de escolher entre ser feminista e pintar as unhas ou receber flores, tudo isso me parecia uma ganga opressiva. Eu não queria a dama-de-ferro, a dona-de-casa, nem nenhuma outra gaveta, não queria pouco, como diz a canção do Caetano (falo de quantidade e intensidade / bomba de hidrogênio / luxo para todos). Queria ser o que me apetecesse, usar o que me apetecesse, dormir com quem me apetecesse, sem ninguém, feminista ou machista, vir ditar modelos, ou eu ter de encaixar. E continuo a querer, rapar o cabelo ou ser a rainha da Prússia. Nunca me deu para casar de branco, parece-me tão improvável quanto tatuar o corpo todo, mas acho lindo o branco e a tatuagem em quem quiser. Estamos vivas para todas as vidas.

9. Acabo de ser madrinha num casamento em que a noiva ia de branco. Bem mais nova do que eu, nunca chegou a ser pós-feminista, é feminista desde que se lembra. Éramos cinco madrinhas, e olhando para nós vi cinco situações civis, digamos: uma casada há mais de 20 anos, e mãe; uma recém-separada de um casamento de 20 anos, e mãe; uma hetero em união de facto, e mãe; uma solteira tendencialmente hetero sem filhos; uma solteira lésbica com filhos “adoptados”. Claro que a escolha das cinco não teve nada a ver com esta variedade, foi um acaso. Mas que todas estivéssemos ali, num casamento de vestido branco, alianças e votos, com os filhos das anteriores uniões dos noivos, e dezenas de convidados que multiplicavam ainda mais as possibilidades, era uma espécie de utopia em 2016.

10. O que é ser feminista em 2016? Lutar contra o abuso e para manter todas as possibilidades em aberto, casar com homem, com mulher, com deus, com ninguém ou mudar de sexo. Para que a única resposta quanto ao que fica bem a uma mulher seja: o que lhe der na real gana.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Haverá mais triste prova do nosso falhanço? por Mia Couto

Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus filhos numa abastança
caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as agruras da
vida....

Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar com
frustrações.

A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e também estão) à
rasca são os que mais tiveram tudo. Nunca nenhuma geração foi, como esta,
tão privilegiada na sua infância e na sua adolescência. E nunca a sociedade
exigiu tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exigido nos últimos
anos.

Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida, a minha
geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se
das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós 1974, e quiseram
dar aos seus filhos o melhor.

Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações, os pais investiram nos
seus descendentes: proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles a geração
mais qualificada de sempre (já lá vamos...), mas também lhes deram uma vida
desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais de diversão, cartas de
condução e 1.º automóvel, depósitos de combustível cheios, dinheiro no bolso
para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as expectativas de primeiro
emprego saíram goradas, a família continuou presente, a garantir aos filhos
cama, mesa e roupa lavada.

Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o
dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em
substituição de princípios e de uma educação para a qual não havia tempo, já
que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que se compra
(quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes.

Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A
vaquinha emagreceu, feneceu, secou.

Foi então que os pais ficaram à rasca...!

Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus rebentos enchem
Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas onde não se
entra à borla nem se consome fiado.

Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem continuar a
pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa de aniversário de
adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais.

São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e da
luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que os filhos
não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem dos
"qualquercoisaphones" ou "pads", sempre de última geração.

São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter de
dizer "não"! É um "não" que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por
isso eles não suportam, nem compreendem, porque eles têm direitos, porque
eles têm necessidades, porque eles têm expectativas, porque lhes disseram
que eles são muito bons e eles querem, e querem, querem o que já ninguém
lhes pode dar!

A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos duas
décadas.

Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados!

Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por
escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na
proporção do que estudou.

Uma geração que colecciona diplomas com que o paíslhes alimenta o ego insuflado,

mas que são uma ilusão, pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional.


Eis uma geração que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em sítio
nenhum. Uma geração que tem acesso a informação sem que isso signifique que
é culta; uma geração dotada de trôpegas competências de leitura e
interpretação da realidade em que se insere.

Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas e frustrada por não
poder abreviar do mesmo modo o caminho para o sucesso. Uma geração que
deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma velocidade que queimou
etapas de crescimento. Uma geração que distingue mal a diferença entre
emprego e trabalho, ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que
nem um nem outro abundam.

Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no mundo como
mandou nos pais e que agora quer ditar regras à sociedade como as foi
ditando à escola, alarvemente e sem maneiras.

Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo que o pouco não lhe
chega e o acessório se lhe tornou indispensável.

Eis uma geração consumista, insaciável e completamente desorientada.

Eis uma geração preparadinha para ser arrastada, para servir de montada a
quem é exímio na arte de cavalgar demagogicamente sobre o desespero alheio.

Há talento e cultura e capacidade e competência e solidariedade e
inteligência nesta geração?

Claro que há. Conheço uns bons e valentes punhados de exemplos!

Os jovens que detêm estas capacidades-características não encaixam no
retrato colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e nem
são esses que se queixam assim (embora estejam à rasca, como todos nós).

Chego a ter a impressão de que, se alguns jovens mais inflamados pudessem,
atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham bem, os que são
empreendedores, os que conseguem bons resultados académicos, porque, que
inveja! que chatice!, são betinhos, cromos que só estorvam os outros (como
se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já estão a ser capazes
de abarbatar bons ordenados e a subir na vida.

E nós, os mais velhos, estaremos em vias de ser caçados à entrada dos nossos
locais de trabalho, para deixarmos livres os invejados lugares a que alguns
acham ter direito e que pelos vistos - e a acreditar no que ultimamente
ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta, imerecida e indevidamente?!!!

Novos e velhos, todos estamos à rasca.

Apesar do tom desta minha prosa, o que eu tenho mesmo é pena destes jovens.

Tudo o que atrás escrevi serve apenas para demonstrar a minha firme
convicção de que a culpa não é deles.

A culpa de tudo isto é nossa, que não soubemos formar nem educar, nem fazer
melhor, mas é uma culpa que morre solteira, porque é de todos, e a sociedade
não consegue, não quer, não pode assumi-la. Curiosamente, não é desta culpa
maior que os jovens agora nos acusam.

Haverá mais triste prova do nosso falhanço?



terça-feira, 10 de maio de 2016

Uma causa socialmente fracturante: abolir o tratamento por “dr.”

PAULO RANGEL  10/05/2016

Deixo aqui, mais uma vez, a proposta de inovação social, sociologicamente fracturante, de abolição do tratamento das pessoas com base na sua qualificação académica.

1. Em Portugal, ao invés do que sucede na maio­ria dos países europeus, as pessoas com formação e grau universitários são objecto de um trata­men­to diferenciado, verdadeiramente discriminatório. Tanto nas fór­mu­las de cortesia quotidiana como em todos os actos públicos ou documentos oficiais, os licenciados não são designados pelo nome ou pelo antecedente comum e igua­­litário, para as mulheres, de “senhora” ou “de senhora dona” ou simplesmente de “dona” e, para os homens, de “se­nhor”. São obrigatoriamente ape­li­da­dos de “senhora doutora”, “de “senhor engenheiro” ou de “senhor arquitecto”. Esta norma social e até administrativa tem uma conotação claramente aristocrática e oligárquica, a fazer lem­brar uma so­ciedade or­ganizada em torno de uma novel “no­breza de toga”. É uma norma social e pública paralela ao antigo tratamento por “Dom”, entre nós, reservado à nobreza ou, pelo menos, aos seus mais altos dignitários. E também paralela, dentro da Igreja católica, ao tratamento por “Dom” – incompreensível à luz de qualquer critério cristão – dos bispos e de alguns abades dos grandes conventos.

Como pode um país que se diz democrático, que leva já mais de 40 anos de democracia, continuar a viver com esta discriminação dos seus cidadãos em razão da formação universitária? Porque têm os frequentadores do ensino superior direito a fazer anteceder o uso do seu nome de um título que indica essa formação? Porque têm eles, no normativo social, mas também e mais escandalosamente no normativo público e oficial, direito a um tratamento discriminatório de todos os restantes?

2. Mais espantosa do que a subsistência desta discriminação incompreensível é a circunstância de os maiores paladinos da igualdade, geralmente polícias da correcção política, conviveram pacificamente com ela e se prevalecerem ostensivamente dela. As nossas forças da esquerda radical – que o mesmo é dizer do Bloco de Esquerda e de ala quase “bloquista” do PS – passam a vida com as causas fracturantes na mão, mas só e apenas no plano moral e dos costumes. A sua vida urbana e supostamente cosmopolita, feita por entre o que julgam ser as elites intelectuais, artísticas e mediáticas, não lhes permite abrir os olhos para esta discriminação social. Interessam-lhes as causas moralmente fracturantes, mas não lhes importa a fractura social. De resto, são bastantes os sociólogos – entre os quais pontificam alguns que se evidenciaram pela defesa de causas moralmente inovadoras – que reconhecem que há hoje mais abertura mediática e pública para a remoção dessas barreiras morais do que disposição do sistema mediático e político para a abolição destas impregnadas fracturas sociais. Verifico, aliás, que, na sequência do meu discurso no último congresso do PSD, onde fiz a sugestão de abolição do tratamento por “doutor, engenheiro ou arquitecto” nos actos, documentos e instituições oficiais, o silêncio foi sepulcral. A esquerda radical, sem perceber as lógicas da gramática, incomoda-se com a denominação de “cartão do cidadão”; mas não lhe faz qualquer espécie esta divisão em duas categorias de cidadãos: os que são tratados por “título” e todos os restantes tratados por “senhores”. Os gurus do igualitarismo fracturante querem ser iguais, mas parece que querem que alguns sejam mais iguais do que outros…

3. Esta norma social é sintoma de um mal mais profundo: Portugal é ainda uma sociedade aristocrática, com grande resistência à mobilidade social e com altos níveis de reprodução social das elites. Níveis esses que passam naturalmente pelo fechamento das castas sociais, por uma grande endogamia e pela cultura da “cunha, da cumplicidade e do compadrio”. Tendo em vista a apreciação social que o “direito ao uso e porte de título” dá, as famílias tendem a educar e orientar os seus filhos para o sistema de valores correspondente. Mas, fora da classe alta, as famílias da clas­­se média e média baixa educam os seus filhos para o ob­jec­tivo fundamental de “en­trar na universidade”. O in­gres­so na acade­mi­­a significa a realização de um “de­­­sí­gnio vital de feli­ci­da­de” e constitui um sinal exterior de “triunfo so­cial”. Este condicionamento familiar, acompanhado do sobredito e fortíssimo condicionamento social, distorce, aliás, o sistema de ensino e prejudica o surgimento e o aproveitamento de vocações profissionais e técnicas, que dispensariam a frequência do ensino superior.

4. Deixo aqui, pois, e mais uma vez, a proposta de inovação social, sociologicamente fracturante, de abolição do tratamento das pessoas com base na sua qualificação académica. Abolição que, não tenho ilusões de engenharia social ou de utopia normativa, só pode fazer-se na esfera pública e oficial, ao nível do tratamento nos actos e nos documentos oficiais, bem como no dia-a-dia das instituições públicas. Arrisco e arrojo esta proposta com plena consciência de que as mentalidades e as culturas não se mudam por decreto e que anda aqui – à volta dos títulos de doutor e de engenheiro – muita ilusão de mobilidade social. Faço-o também ciente de que não há aqui nenhuma urgência nem premência, ante os problemas que nos deglutem o quotidiano. Mas há seguramente traumas bem fundos da nossa sociedade e da nossa convivência social, muitos do foro do inconsciente colectivo. Mas creio que, ao fim de 40 anos de democracia, estamos maduros para dar este passo. E depois resta esperar que a sociedade civil, com base na pedagogia feita pela esfera pública e oficial, possa progressivamente ir assimilando este reconhecimento pleno da igual dignidade social de todos os cidadãos.