domingo, 5 de novembro de 2023

Luis Baylón (1958-2023), um fotógrafo não tão perdido assim


Autorretrato. Calle Alameda, Madrid, Março de 2004 LUIS BAYLÓN

Luis Baylón (1958-2023), um fotógrafo não tão perdido assim
Andou em escolas de Fotografia, mas desistiu depressa: preferiu aprender na rua, à deriva. Apanhou a Madrid callejera como poucos, sem nunca abandonar a sua fiel companheira, a Rolleiflex.

Sérgio B. Gomes 5 de Novembro de 2023

Un vicio, 1987

Há uma certa aura romântica no fotógrafo em modo “perdido no mundo”. É uma narrativa que vende e que também cola bem na do fotógrafo-génio-blasé, alguém que só com a magnitude da sua presença faz com que tudo aconteça, seja uma fotografia ou várias — todas “geniais”, claro. À primeira vista, Luis Baylón parece encaixar (ou foi sendo encaixado) em estereótipos deste tipo (e outros, como o do “artista maldito”), mas, à medida que as suas imagens vão passando à frente dos nossos olhos, percebemos que só um grande conhecimento do humano, da vida e do labor fotográfico permitiram colocá-lo ao lado dos maiores fotógrafos de rua da segunda metade do século XX; e aquele que terá conseguido captar de forma mais palpável a identidade de uma cidade, Madrid.
Parece claro que Luis Baylón — ou apenas Baylón, como era mais conhecido — ergueu a obra que ergueu (crua, directa, mordaz, inocente, humorística, antiespectacular; fotografia sem corantes nem conservantes) não por sucessivos golpes de sorte, nem por ter ficado a descansar à sombra da bananeira imbuído de um qualquer espírito de génio, depois de ter sido parte activa na torrente visual que ajudou a dar forma à movida madrilena dos anos 1980, mas porque ao olhar talentoso soube juntar o “olfacto de rua” (Quico Rivas), uma generosidade e um jogo de cintura que lhe permitiram mover-se como um gato sem dono, livre de modas, tendências ou diktats de mercado.

Parece claro também que, para além de saber cheirar a rua, Baylón não se colocava fora dela, como se fosse apenas um espectador do grande teatro urbano, sempre à procura da próxima figura mais freak. “A rua é o seu território, o seu domínio…”, escreveu o fotógrafo francês Bernard Plossu, com quem Baylón construiu uma intensa amizade a partir de 1994. E o que também parece claro é que Baylón não usou as profundas e múltiplas tragédias pessoais como estratégia de vitimização carreirista. Com uma vida repleta de altos e baixos, manteve sempre acesa a paixão pela fotografia e, através dela, pela vida.


Fotografia de capa do livro Sólo Fumadores, de 2004 LUIS BAYLÓN


Na verdade, a fotografia chegou à vida de Luis Baylón por causa de uma pequena tragédia alheia — em 1976, depois de ter rompido o noivado, um amigo argentino perguntou-lhe se ele lhe podia comprar uma Canon FTB para que pudesse juntar dinheiro para o bilhete de regresso a Buenos Aires. Mais por favor do que outra coisa, Baylón comprou-lhe a câmara e daí nasceu a paixão (a Rolleiflex viria um pouco mais tarde). Tinha 18 anos, a mãe tinha morrido pouco antes, num acidente, tinha-se zangado com o pai e estava em Ibiza mergulhado no ócio e na heroína, vício que o atormentaria durante 20 anos.
Há um antes e um depois desta longa trip na vida de Baylón, que, tirando uns meses no Photocentro, foi um autodidacta. A partir de 1996, depois de ter superado o vício, começa a publicar livros de fotografia com regularidade, expõe individualmente fora de Espanha e passa a integrar colecções públicas e privadas de fotografia. Ou seja, o talento que muitos já tinham reconhecido (com o crítico Quico Rivas à cabeça) começou finalmente a ser partilhado, quando antes o que reinava era o improviso, a desorganização e a sobrevivência.

Carterista, Madrid, 1997

Olhando para as quatro décadas de fotografia que nos deixou (que o próprio resumiu assim: “Lugares”, “Animalada”, “Madrid Anónimo”), o que não parece ter sido abalado antes, durante ou depois da heroína foi a capacidade de encontrar imagens carregadas de “franqueza, alguma malícia e uma certa autoconfiança”, tudo conjugado com “excelentes reflexos”, um caldeirão de atributos que no dizer de Rivas resultavam naquilo que Baylón mais queria ser, um fotógrafo natural: “Reproduzir a realidade com naturalidade, sem intervir no que se está a ver; sem compor a cena, sem modificá-la. Não agredir; não maquilhar. Fotografar as pessoas tal como são, como se mostram, e não como o fotógrafo gostaria que elas fossem”.

Como bem lembrou Bernard Plossu — que percorreu muitas vezes as ruas de Madrid com Baylón e que o considerava “um enorme fotógrafo” —, “o formato das imagens também participa no seu conteúdo”. Por isso não se pode falar de Baylón sem falar do seu amor por um formato (quadrado) e por uma câmara (Rolleiflex), amor que manteve até ao fim. Foi o pai que lha deu em 1984, depois de umas pazes por telefone em que choraram baba e ranho. Mas apesar de um tão grande amor, Baylón alerta para o perigo do nos deixarmos cegar com o aparato. “Acho que agora se desenvolvem as câmaras, mas os fotógrafos não evoluem. O fotógrafo tem que conhecer muito bem a sua ferramenta e a técnica e saber o que quer. Estamos a começar a ver como vêem as câmaras e não como nós vemos”, dizia numa conversa com Manuel Jabois, no El País, em 2021, a propósito do lançamento de Madrid en Plata (This Side Up/Achivo Lafuente), o último livro que publicou, e que percorre o seu trabalho na capital espanhola entre 1984 e 2017, “uma homenagem impressionante à cidade onde Baylón viveu e morreu várias vezes” (Jabois).

La Bailarina, 1990 LUIS BAYLÓN

Aliás, diz quem conhece bem a obra de Baylón que os livros que editou são um dos seus maiores legados, “uma delícia visual”, nas palavras de Martín Page, fotógrafo, vizinho e amigo de Baylón. Entre os mais marcantes estão Tarde de Toros (1996), Baylón (1999), Guirigato (2001), Sólo Fumadores (2004), Benarés (2005), Par de Dos (2005), En Valencia (2008), Autogarabato (2009) e Escatapartes (2011).

Luis Baylón, que tinha “bigode de gato, olhar de gato e riso de gato” (Andrés Barba), morreu no dia 21 de Outubro. Tinha 65 anos.

Outra vez Plossu. “Baylón, és o fotógrafo por excelência e compreendeste perfeitamente o enorme papel da fotografia: o tom justo.”

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Cinco anos depois de Khashoggi, mundo estende o tapete vermelho ao ditador saudita


O príncipe que mandou matar Jamal Khashoggi está cada vez mais barricado no poder, enquanto se passeia imune pelo mundo a distribuir apertos de mão. Na Arábia Saudita, a repressão é cada vez maior.

Sofia Lorena
1 de Outubro de 2023

  
"Este miúdo é perigoso", escreveu Khashoggi a um amigo em 2017, quando Mohammed bin Salman passou a ser príncipe herdeiro, com 31 anos REUTERS

 Cinco anos depois de Khashoggi, mundo estende o tapete vermelho ao ditador saudita

“Foi um erro, foi doloroso”, disse há dias o príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, sobre o brutal assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, que a CIA e inúmeras organizações de direitos humanos o acusam de ter ordenado. A entrevista do líder de facto da Arábia Saudita à Fox foi como um fechar de ciclo, agora que a monarquia está de volta às prioridades da política externa de Washington, e chegou mesmo a tempo de se completarem cinco anos desde o crime que levou Joe Biden a tratá-lo como “pária”.

MBS (como é conhecido) não teve de esperar tanto para receber líderes mundiais em casa ou ser recebido e convidado para visitas de Estado. A horrenda morte do jornalista dissidente e exilado nos Estados Unidos, a 2 de Outubro de 2018, originou ondas de choque, mas a realidade impôs-se e os verdadeiros autores, morais e materiais (alguns dos condenados pela justiça saudita vivem num complexo governamental de luxo), não enfrentaram consequências.
 
O príncipe cumpriu uma espécie de exílio, curto, e começou a ser definitivamente recuperado por Emmanuel Macron, o primeiro dirigente ocidental a reunir-se com MBS, na cidade saudita de Gidá, depois da divulgação do relatório da CIA que confirma que o príncipe “aprovou uma operação em Istambul para capturar e matar” o jornalista. E foi também o Presidente francês a consolidar a sua reabilitação diplomática, em Julho do ano passado, quando fez de Paris a primeira capital europeia a recebê-lo desde o desmembramento de Khashoggi.
 
O mesmo Macron lhe estendeu pela segunda vez o tapete vermelho, em Junho. É possível que a excepção se torne regra muito em breve: ainda este ano, será a vez de o Reino Unido.

 
Entretanto, o Presidente Joe Biden teve de engolir as suas palavras – as do candidato Joe Biden, com a nação “pária”, e as do Presidente, que anunciara um “reajuste” na relação com o país aliado. Primeiro, no Verão passado, quando visitou o príncipe para tentar garantir um aumento na produção de petróleo e ajudar um mercado desestabilizado pela invasão da Ucrânia (o contrário do que MBS viria a fazer) e promover a normalização de relações entre Israel e a Arábia Saudita, um processo que experimenta agora um impulso inédito. “Todos os dias ficamos mais próximo”, disse MBS ao canal conservador norte-americano.
 
Em Gidá, o ano passado, Biden evitou um aperto de mão, substituindo-o por um toque de punhos ainda mais polémico. No início de Setembro, durante a cimeira do G20 celebrada na Índia, foi com naturalidade que Biden e MBS apertaram as mãos e conversaram em público.
 
A investigação turca permite-nos saber, e até ouvir, muitos pormenores do assassínio de Khashoggi, estrangulado assim que entrou no consulado saudita de Istambul, e depois esquartejado ali mesmo por uma equipa de agentes sauditas que viajou em aviões do Estado e se manteve em contacto com um conselheiro próximo de MBS.
 
Com o primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, a acusar o Governo indiano de envolvimento na morte de um líder sikh em Vancouver, alguns analistas defendem que foi a impunidade de MBS a contribuir para o aumento do assassínio de dissidentes no estrangeiro.
 
No caso de Khashoggi, a Turquia, em busca de parceiros de investimento, abdicou de fazer justiça e em 2022 suspendeu o julgamento dos 26 sauditas acusados. Em Junho, o ministro das Finanças do reino anunciou um acordo para depositar 5 mil milhões de dólares (4,7 mil milhões de dólares) no Banco central turco.

"Terrível paradoxo" 
 
Nos últimos cinco anos, MBS usou a repressão para cimentar o seu papel como líder todo-poderoso, com sucessivas condenações a dezenas de anos de cadeia de inofensivos críticos e o recurso à pena de morte a aumentar, ao mesmo tempo que lavava a imagem da Arábia Saudita investindo no turismo, contratando estrelas do futebol mundial e organizando mega-eventos desportivos e de entretenimento.
 
Em simultâneo, tem cumprido algumas promessas de abertura em relação às mulheres, que passaram, por exemplo, a poder conduzir – isto enquanto mantinha na prisão as sauditas que lutaram por esse direito.
 
“O que pensaria Jamal Khashoggi da Arábia Saudita de hoje?”, questiona nas páginas do jornal The Washington Post, onde o saudita era colunista, o seu amigo David Ignatius. “Ficaria seguramente enojado, mas não surpreendido, ao saber que o poder autocrático de MBS continua intocável”, escreve. Khashoggi, continua o editor do Post, também ficaria “estupefacto com os megaconcertos de rock” e “maravilhado por ver que a Arábia Saudita está a ponto de normalizar relações com Israel e de assinar um pacto de defesa com os EUA”.

“Este é o terrível paradoxo de MBS, como Khashoggi bem sabia. Ele é um autocrata modernizador, um pouco como Saddam Hussein era no Iraque”, nota Ignatius.
 
O jornalista e romancista norte-americano suspeita que “o que deixaria Khashoggi mais zangado é a crueldade gratuita de MBS”, que exemplifica com o caso de Sarah e Omar Aljabri, dois irmãos presos há mais de três anos simplesmente por serem filhos de um ex-chefe dos serviços secretos sauditas que “de forma bizarra passou para o topo da lista de inimigos de MBS”. Sarah, conta Ignatius, celebrou o seu 20.º aniversário num dos concertos no deserto promovidos pelo príncipe, poucos dias antes de desaparecer.


A história como nunca a (ou)vimos sobre a morte de Jamal Khashoggi
 
O documentário de Bryan Fogel consegue surpreender-nos com pormenores hediondos do assassínio do jornalista saudita e desarmar-nos com a nova vida que ele acreditava estar a construir.

Sofia Lorena 17 de Dezembro de 2021


Jamal Khashoggi e Hatice Cengiz num dos seus passeios por Istambul
 
O riso bem-disposto, o sorriso doce apaixonado, o anel que ofereceu à noiva, a poltrona reclinável que comprou para a casa nova. “Não consigo descrever como estava feliz”, diz Hatice Cengiz. Só por estas imagens já valeria a pena ver O Dissidente, o documentário de Bryan Fogel que reconstitui o assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, com estreia na televisão portuguesa esta sexta-feira (22h, no TVCine Edition). Cengiz é a noiva-viúva e haveremos de entrar com ela nessa “casa linda” onde deveriam ter morado depois do casamento.
 
O filme de Fogel é sobre a morte de Khashoggi mas devolve-lhe laivos de vida. Khashoggi tornou-se conhecido no mundo inteiro com o seu assassínio: para a maioria, nunca foi Jamal, o jornalista, marido, pai, irmão ou amigo; apenas o crítico que se auto-exilara e que pagou a oposição ao príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, com a pior das mortes, asfixiado e desmembrado no consulado saudita de Istambul, a cidade da noiva.

 
Foi a 2 de Outubro de 2018, dias antes de completar 60 anos, que Khashoggi se tornou símbolo da impunidade – já este ano, com a chegada de Joe Biden à Casa Branca, os Estados Unidos divulgaram um relatório da CIA onde se conclui que Bin Salman autorizou o assassínio. Mais de um ano antes, Khashoggi vira-se obrigado a deixar o seu país. A mulher teve de se divorciar e ele não voltou a poder contactar os filhos. Deixou a vida para trás e teve dificuldades em recomeçar.
 
O Dissidente fala-nos dessa nova vida e dos amigos que acompanharam Khashoggi, não só depois de ele sair de Riad, mas também nos anos anteriores, à medida que se afastava da família real e da linha oficial. Entusiasmado com as revoltas que em 2011 ficaram conhecidas como Primaveras Árabes, chocado com a forma como o seu país contribuiu para as esmagar, até constatar que esta Arábia Saudita não era reformável.

A história como nunca a ouvimos 
 
Antes de ser eleito, Biden prometera publicar o relatório que Donald Trump escondera. A sua eleição trazia outras promessas. “Tinha muita esperança que houvesse medidas significativas por parte da Administração Biden, mas quando o momento de agir chegou não houve. É como se a publicação do relatório que diz que Mohammed bin Salman ordenou o assassínio tivesse sido cerimonial”, lamenta Fogel, numa entrevista a partir de Los Angeles. “É o mundo em que vivemos, um mundo em que em relação a países com vastos recursos naturais, grandes interesses globais ou aliados políticos tudo se tolera.”
 
Fogel já deixou de acreditar em consequências. Resta-lhe saber “que aquele regime irá provavelmente pensar duas vezes antes de voltar a assassinar um jornalista num país estrangeiro, não por terem quaisquer remorsos, mas por causa da má imprensa que isso gerou”.
 
Os factos são suficientemente medonhos para dispensarem a estética “Missão Impossível” adoptada pelo realizador (vencedor do Óscar de Melhor Documentário pelo trabalho anterior, Ícaro), mas o objectivo de Fogel era “fazer um filme muito forte” e capaz de chegar a toda a gente. A estreia, no Festival de Sundance, na presença de Hillary Clinton, foi auspiciosa. Mas nem a Netflix, que distribuíra Ícaro, nem nenhuma outra grande plataforma de streaming mostraram interesse.
 
“A luta para encontrar um distribuidor diz-nos onde estamos enquanto sociedade. Estas empresas, de certa maneira, estão só a seguir o livro de instruções: dinheiro, investimento e as maquinações políticas destas relações acabam por ser mais importantes do que a vida de uma pessoa, independentemente da audácia do assassínio”, afirma Fogel. Uma “desilusão” a somar-se a uma estreia em tempo de pandemia e à consequente ausência de sessões ao vivo onde o filme pudesse gerar mais debate.
 
O jovem de quem Khashoggi era amigo e com o qual começara a colaborar acredita ter sido responsável pela sua morte. “Agora o jogo mudou. Já não és só um jornalista, és um dissidente”, disse Abdulaziz a Khashoggi quando este decidiu financiar o seu “exército de abelhas” para proteger a liberdade de expressão online das “moscas” mobilizadas pelo regime saudita. Abdulaziz, uma espécie de alter ego do jornalista assassinado, e um garante, ao mesmo tempo, da continuação do seu trabalho.

 
 
 
 
 

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Couto faz 105 anos e mantém a receita da icónica pasta, agora sem Alberto Gomes da Silva


Inês Duarte de Freitas (texto) e Nelson Garrido (fotografia)31 de Agosto de 2023

Couto faz 105 anos e mantém a receita da icónica pasta, agora sem Alberto Gomes da Silva
história da pasta Couto quase se confunde com a de Alberto Gomes da Silva. Tinha apenas 20 anos quando começou a trabalhar na linha de produção da icónica pasta dentífrica e assumiu as rédeas do negócio fundado pelo tio em 1974. Assim foi até à sua morte, em Maio deste ano, quando a mulher Alexandra passou a conduzir os destinos da marca. Como viverá a empresa sem o homem que lhe dedicou a vida? “É um legado para continuar. Já temos o futuro em linha”, responde a nova administradora ao PÚBLICO.
 
O espaço fica escondido num complexo de várias empresas e só damos por ele quando se lê Couto na porta. Contudo, no interior, as fotografias nas paredes e os produtos nas vitrinas denunciam que este é o sítio certo, onde há décadas se produz a pasta dentífrica que, até 2016, se manteve como o único produto da marca. Agora, há sabonetes, cremes hidratantes, produtos de barbear e até um perfume, baptizado de Mimi, como se chamava a mulher do fundador.
 
Em destaque, uma máquina que era utilizada para fazer a laminagem da pasta, dando-lhe uma textura mais homogénea. Visualmente, quase se assemelha a um aparelho para esticar massa. Os instrumentos antigos em ferro deram lugar a grandes tambores que misturam a fórmula quase centenária, e agora os tubos já não são cheios à mão, mas mecanicamente a grande velocidade. Encher a pasta, fechar o tubo e selar a embalagem: repete-se constantemente na linha de produção.

 
Mais do que se destacar pela inovadora fórmula, foram o design e as campanhas publicitárias que tornaram a Couto parte do imaginário português, quase um souvenir a levar de Portugal. Contudo, nem a nostalgia conseguiu impedir que a empresa entrasse em crise. Em 2012, Alberto Gomes da Silva falava dos planos de vender a marca, no máximo até 2017, mas o amor impediu que assim fosse, conta a mulher, Alexandra.
 
Os dois conheceram-se em 2004, quando a gestora foi à Couto para negociar a instalação de um sistema de ar condicionado e "roubou o coração" do empresário. “Desde que entrei aqui, sempre achei que havia muito mais para dar”, recorda. Ao lado do marido, começou uma revolução em 2016, ano em que se casaram, e que havia de salvar o negócio.

Alexandra Gomes da Silva
 
Assente na nostalgia, utilizaram o mesmo design vintage para lançar novos produtos desenvolvidos pela directora técnica. “O meu marido tinha uma visão muito à frente. Custou a primeira vez, mas depois já era ele a escolher a cor dos produtos, e foi sempre com a autorização dele que saía tudo para o mercado”, assegura. O sucesso foi tal que, em 2018, quando a Couto comemorou um século, inauguraram uma loja na Cedofeita, onde tudo tinha começado.

Aos poucos, por motivos de saúde, Alberto Gomes da Silva começou a afastar-se, apesar de se manter a par do que se passava na empresa. “O seu legado continuou. Era uma paixão dele e é uma paixão minha”, garante a administradora, que diz já ter sucessora para o seu cargo, a sua sobrinha. E também para liderar a Fundação Couto, uma instituição de solidariedade social que apoia 600 crianças da região.
 
Continuar depois da morte do empresário, que morreu a 7 de Maio, aos 85 anos, é “complicado”, apesar de ser o único caminho possível. “Tenho 12 pessoas que dependem de mim, mas, dentro de casa, continuo a chorar a perda do meu marido”, lamenta.

 
Alberto Gomes da Silva e Alexandra, em 2018, quando se celebrou o centenário NELSON GARRIDO/ARQUIVO

Internacionalização como futuro

Com o futuro em vista, a Couto continua a crescer. Em média, tem facturado um milhão de euros por ano, sendo que 85% da facturação provém da pasta dentífrica tradicional. “Produzimos 600 a 700 mil bisnagas por ano”, detalha a directora técnica. Contudo, apenas 5% têm por destino a exportação.
 
Isto porque a Couto se debate com a falta de espaço que impossibilita o aumento do volume de produção e, consequentemente, o crescimento das vendas para o estrangeiro. Estava planeada a abertura de uma nova fábrica em 2022, mas a pandemia e as burocracias municipais trocaram-lhes as voltas. “As máquinas novas conseguem trabalhar 24 horas por dia. Podemos alargar a produção, mas não temos onde guardar isso tudo”, queixa-se Alexandra Gomes da Silva.
 
Como tal, essa é a prioridade para os 105 anos da Couto. “Precisamos de um espaço que faça jus ao nome da Couto, com um museu e uma loja dentro da fábrica. É essencial”, declara, sublinhando que a marca não pertence a uma zona industrial, onde será de difícil acesso, mas a uma localização central, facilmente visitável pelos clientes.

Cláudia de Sousa França, directora técnica NELSON GARRIDO
 
Só assim terão resposta para a crescente procura internacional. “Quero crescer. Os coreanos andam atrás de nós”, conta. Para já, as vendas para o estrangeiro são feitas a turistas na loja no Porto, onde estes levam “em quantidade”, garante. “Vemos isso lá fora na Hermès, pessoas a saírem da loja carregadas com sacos. É um dos meus sonhos e a Couto há-de chegar lá. Ou não fosse o nosso saco inspirado nisso”, diz, com humor, apontando para a embalagem da marca, de um laranja vibrante, tal como o da casa 
francesa.
 
Já acompanharam várias gerações de portugueses e, agora, talvez o futuro esteja mesmo na capacidade de levar esse imaginário mais além, a outras paragens. Seja como for, há mais de 90 anos, já dizia o anúncio, que a “Couto evita e trata as doenças da boca” e assim vai continuar, "nas bocas de toda a gente", acredita.


 ÍmpaE 31 de Agosto de Couto faz 105 anos e mantém a receita da icónica pasta, agora sem Alberto Gomes da SilvA centenária emp 31 de Agosto de 2023

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Contadores de histórias populares: os “ladrões” que congelam o tempo

 

Contadores de histórias populares: os “ladrões” que congelam o tempo Os contos populares resistiram ao passar dos séculos.

Há contadores profissionais que não os deixam morrer. São histórias “de liberdade, de revolução, de insubmissão”. Mais “urgentes” do que nunca.

Andreia Friaças (Texto), Maria Abranches (Fotografia) e Carolina Pescada (Vídeo)
18 de Agosto de 2023

Contadores de histórias populares: os “ladrões” que congelam o tempo
“Gostava de começar por contar uma história do princípio do mundo, do princípio antes de haver princípio”, convida Ana Sofia, sentada junto a um piano, numa das salas da Associação Renovar a Mouraria, em Lisboa. Temos casa cheia: as pessoas sentam-se nas cadeiras, ajeitam-se no chão. Os olhos arregalados, à escuta. Todas as atenções estão viradas para Ana. Ouvimos a História de Maria Bailarina, a mulher que trazia consigo o romper da Primavera e lhe nascia uma gana que não se sabe de onde vinha. Só queria dançar; a toda a hora, em todos os lugares. E já se sabe que, quando uma mulher quer muito uma coisa, o mundo estremece de medo.

Traz-nos este conto popular Ana Sofia Paiva, contadora profissional de histórias com tradição oral. Há mais de dez anos que conta romances, contos, cantigas populares pelo país fora e um pouco por todo o mundo. E esta história que ouvimos é mais antiga do que pode parecer — é daquelas que resistem ao tempo, até hoje, na boca de quem as conta.
Os contos populares e histórias tradicionais são um universo profundo: considerados património cultural imaterial, são objecto de investigação há décadas. Em Portugal, circulam mais de 2000 versões de contos, mas estas histórias, que conhecemos em português, saltam fronteiras e adaptam-se a todas as paisagens. Em vários países da Europa, ou mesmo em países como o Nepal ou Irão, estão catalogados milhares de histórias populares que também são contadas em praticamente todas as vilas de Portugal.


Por cá, as histórias tradicionais têm saltado de geração em geração. Foram sendo contadas e cantadas noite fora, nas tabernas ou nos largos, em casa junto à lareira, ou mesmo nos intervalos do trabalho do campo. Os seus contadores são, desde sempre, “gente do povo”, explica Ana Sofia Paiva, de 42 anos de idade. Muitos não sabiam ler nem escrever, mas decoravam as histórias à força de as ouvir — ouviam vez atrás de vez até lhes saberem as palavras, os ritmos, as pausas. E, como o provérbio nos habituou a pensar, quem conta um conto acrescenta um ponto. Ao longo dos anos, estes contos foram sendo moldados a quem os conta e a quem os ouve. Hoje em dia, cada história tem múltiplas versões, dependendo do espaço e do tempo em que é contada.





Cristina Tarquelim entra nas sessões de contos sem papéis, nem textos decorados. A primeira coisa a fazer é “ler o público” e “sentir as orelhas” MARIA ABRANCHES

Longe de Lisboa, também se ouvem contos tradicionais na Biblioteca Municipal de Cuba, no Baixo Alentejo. Desta vez, são os jovens que ocupam os lugares do anfiteatro, enquanto ouvem a história d’A Raposa e o Lobo, animais que mostram que a esperteza e a força nem sempre se conjugam bem.

“Contar histórias não é um trabalho de entreter”, começa por dizer Cristina Tarquelim, contadora profissional de histórias há 30 anos. “É um trabalho de pensar em conjunto. É uma actividade cúmplice. No fundo, estamos a trabalhar a compreensão do mundo”, acrescenta. E quem vê Cristina em cima do palco desta biblioteca não adivinha que ela, neste mundo dos contos, é apenas a ponta de um novelo. “Sou a ponte entre a memória, o antes e o agora, o antes e o amanhã”.


“Eu não sei fazer o meu nome”

Muitas das histórias que Cristina e Ana contam pelo país fora foram ouvidas, pela primeira vez, nesta cozinha. Em Salvada, uma pequena freguesia do concelho de Beja, com pouco mais de mil habitantes, não é difícil encontrar a casa de Mariana Bicho.

Com 85 anos, Mariana nunca soube escrever o seu nome, mas guarda na memória inúmeras orações, canções e contos. É uma antiga contadora de histórias. “Eu não sei ‘fazer’ o meu nome. Mas sempre fui a dona do conto”, graceja Mariana. A sua cozinha típica do Alentejo é conhecida por vários académicos, linguistas e artistas. “Ela tem um orgulho de ser analfabeta e ver os doutores saírem das universidades para virem escutá-la na cozinha dela”, conta Cristina, sentada junto de Mariana.

Contar histórias não para mudar o mundo, mas para que o mundo não nos mude a nós, a nossa natureza. Para que o mundo não mude a nossa humanidade

Estes “doutores”, como apelida Cristina, pertencem ao projecto Lu.gar.Contado, do qual Cristina e Ana fazem parte, mas também outros contadores de histórias, como António Fontinha, precursor do movimento de narração oral do país. O projecto — que pertence ao e-museu MemoriaMedia e conta com a ajuda do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição da Universidade de Lisboa — fez a recolha, nos últimos dez anos, de histórias e saberes populares junto de antigos contadores de histórias, como Mariana Bicho. No site do projecto, podemos conhecer Maria do Desterro, da Póvoa de Varzim, filha de pescadores, que ouviu muitas histórias em alto-mar; José Manuel Pinto, de Mora, no Alentejo, um pastor apaixonado pela cultura tradicional alentejana que trocava décimas nas esquinas com os amigos; Maria Bernardina Galvão Coelho, também de Mora, que passou a infância a trabalhar na seara do arroz e foi entre afazeres que aprendeu as histórias populares; e Maria Clara, de Idanha-a-Nova, que guardava na sua memória infinitos romance, cantando-os toda a sua vida no campo.

Depois de recolhidas, as histórias são transcritas, contextualizadas e publicadas pela equipa do projecto e, finalmente, servem de chão para contadores de histórias mais novos, como Ana Sofia Paiva, formada em Teatro, e Cristina Tarquelim, em Psicologia. Estes contadores de histórias pegam neste material de forma profissional: ressignificam as narrativas, cruzam-nas com as artes performativas, e levam estas histórias populares a todo o país. “A nós, pega-se-nos tudo. Somos os grandes ladrões que absorvem tudo dos antigos narradores de histórias”, sorri Ana.

Antes de nos confiar algumas destas histórias que atraem tantos ouvidos, Mariana gosta de rebobinar as suas memórias de infância. Criada junto ao Guadiana, nunca pôde ir à escola. Cresceu com histórias, ouvidas nos serões, enquanto fazia malha à luz da candeia. Aos dez anos, começou a trabalhar na monda — e foi nos intervalos da labuta que aprendeu mais orações e histórias, junto das mulheres mais velhas. “As aprendizes não podiam falar, só ouvíamos. Nem sequer tínhamos relógio, quem mandava era o relógio do manajeiro”, recorda Mariana. “Eu estava caladinha, mas ouvia tudo. As que sabiam escrever depois apontavam o que tinham ouvido. Eu não apontava em lado nenhum porque não sabia apontar. Mas aprendi na mesma.”
Prova disso é que Mariana tem cantado “uma vida inteira”, como costuma dizer. E quem se senta ao seu lado sabe como é verdade: em cada reflexão que faz, em cada episódio que recorda, canta sempre, com uma memória imensa, alguma canção ou oração. “É a minha biblioteca”, descreve Cristina Tarquelim, de 60 anos. “Mas tão depressa está a cantar orações como a seguir pica nas [histórias] velhacas”, graceja.

De facto, o tempo congela quando se ouve Mariana: ora nos conta a história de Deolinda, a empregada doméstica que fazia frente ao seu patrão, ora de um pobre que se vinga do rico no dia em que ambos morrem e até a história da filha de um rei que se divertia sozinha. É também nesta cozinha que nos conta o conto O Domingo Ovelha — o mesmo que foi usado por Gil Vicente como mote para a peça Farsa de Inês Pereira e que hoje encontra 39 versões diferentes, espalhando-se por 14 distritos, com especial incidência em Faro, Vila Real e Porto (e ainda tem cerca de 13 versões na Galiza).

Ao longo dos anos, Cristina e Mariana tornaram-se cúmplices. Foram juntas a inúmeras sessões de contos pelo Alentejo e falaram ao telefone praticamente todos os dias durante a pandemia. Em 2014, foi com emoção que Cristina assistiu a Mariana receber a Medalha de Mérito Artístico e Cultural da Câmara de Beja. “Isto dá dignidade a este saber. A entrada destas pessoas no lugar da literatura ajudou muito na valorização destas práticas. Eles também são o nosso património”, defende. Ainda assim, Mariana guarda um sonho longe dos contos, se tivesse aprendido a escrever. “Acho que dava uma boa professora de Matemática”, sorri, não fosse ela a melhor a contar os quilos de azeitona que se apanhava num dia de trabalho.

Quantos peixes há no mar


Os contos populares existem desde o “alvorecer da humanidade”, começa por dizer José Barbieri, director da Memória Imaterial, organização não-governamental acreditada pela UNESCO. Há descrições do acto de contar histórias oralmente em “papiros egípcios, em tratados gregos e em textos bíblicos”, completa Luís Correia Carmelo, investigador no Instituto de Estudos de Literatura e Tradição da Universidade de Lisboa.

Mas perguntar quantos contos populares existem é como perguntar “quantos peixes há no mar”, graceja Barbieri. O Catálogo de Contos Tradicionais Portugueses, publicado em 2015, de Isabel Cardigos e Paulo Jorge Correia, enumera 2399 versões de contos em Portugal e países lusófonos — e, desde então, já foram escritas novas, não sendo possível acompanhar em tempo real este mundo de histórias em ebulição.

Segundo a classificação tipológica internacional, os contos dividem-se por várias secções — entre as quais os contos realistas, formulísticos ou jocosos — e dentro destas gavetas cabem todas as histórias, das mais corriqueiras às mais profundas, sempre carregadas de ensinamentos. “Em Portugal, não há histórias de fadas, dragões nem ogres”, alerta Luís Correia Carmelo. “São histórias que ensinam que o diabo está sempre à espreita, que o mais pequeno pode sair vitorioso, que a morte chega para todos e que o engenho é capaz de superar todos os obstáculos”, exemplifica.

Os contos populares percorreram o mundo — através de correntes de migração e de trocas culturais que aconteceram ao longo dos séculos — e as histórias que conhecemos em português também são contadas em línguas como castelhano, farsi, turco ou maconde. O resultado? Cada história conta com infinitas versões e desfechos, dependendo do lugar e do tempo em que é contada. Por exemplo, a história da Raposa e o Lobo tem recenseadas 123 versões só em Portugal —mas também está presente na tradição oral da Europa e África, onde existem pelo menos 43 versões. Já o conto Velha da cabaça, bastante conhecido em Portugal, não tem expressão no resto da Europa, mas existem várias versões no Irão, Paquistão e no Nepal.


Clara Alves lê Os músicos de Zebral na colectânea Contos para os Nossos Filhos (1882), de Maria Amália Vaz de Carvalho MARIA ABRANCHES

Não são apenas contos. Muitas histórias pertencem ao romanceiro, um género narrativo com origens em Castela, na Idade Média. Este género literário, com mais de 600 anos, é composto por versos longos e quase sempre cantados. Um dos romances mais conhecidos é A Morte de D. Juan, que conta a morte do príncipe herdeiro de Castela, em 1497. “Pensamos que passou de boca em boca durante muito tempo, dado que só temos versões transcritas em Portugal cerca de 1850 por Almeida Garrett e em Espanha apenas em 1900 por Ramón Menéndez Pidal e María Goyri”, explica José Barbieri.

E ainda existem as histórias de cordel — que vinham escritas em pequenas folhas, atadas com um cordel, e eram vendidas nas feiras e mercados. Partilhavam notícias, replicavam e adaptavam romances e peças de teatro quase sempre em verso. “Quem as comprava nem sempre sabia ler, mas levava-as consigo e pedia a alguém que as lesse até estarem decoradas”, diz Barbieri. Depois, contavam estas histórias por onde passavam, fazendo com que muitas ainda hoje se oiçam pelas vilas do país.

Sentir as orelhas e congelar o tempo

Além de Mariana Bicho, há inúmeros contadores de histórias país fora. Ana Sofia recorda com carinho Maria dos Anjos, a contadora de histórias da aldeia de Campo Benfeito, na serra de Montemuro. Durante um ano, visitou-a todos os dias para ouvir histórias. “Foi um namoro. Primeiro, foi contando a história da sua vida vezes sem conta, para alargar a minha capacidade de ouvir. Era um pouco a ideia de ‘eu sei que histórias queres ouvir, mas não te vou já dar; primeiro, tenho de saber que tu és capaz de ouvir’”, recorda Ana. A relação com o tempo e a intimidade são importantes para recolher histórias tradicionais. “Quando nos contam estas histórias, é como se nos dissessem: ‘Isto é um tesouro para mim e é aquilo que te posso deixar’.”
Também não esquece Mariana Macedo, de Alijó, que criava as suas próprias versões dos contos. Na história de Maria Bailarina, esta mulher morre castigada pelo desejo de dançar. Mas Mariana Macedo salva a personagem, juntando a esta história um outro romance, a Gaitinha Milagrosa — eternizada na canção O homem da gaita de Zeca Afonso. Assim, no local onde a mulher é enterrada, nasceu um canavial — que deu origem às gaitinhas milagrosas que fazem o mundo dançar. “Desta forma, esta mulher não só não morre nesta história como não morre nunca, enquanto houver quem saiba ver o poder de uma flauta que faça a terra tremer e tudo dançar", reforça Ana, que continua a contar este conto, seguindo a versão de Mariana Macedo.

Ana admira estas contadoras. “Apesar de todas as condições vividas por maridos, pela vida dura… são mulheres com uma capacidade de se libertarem através destas histórias e daquilo que nos ensinam com elas”, vinca Ana. Aqui há histórias sobre os calores que sobem, os sangues que descem, sobre a liberdade e a resistência. “Elas fabricavam estes espaços de subversão que eram as histórias e que se espalhavam como ervas daninhas. Quando nos contam estes romances é como se estivessem a falar para nós no futuro. Estão-nos a dizer: ‘Façam-te aquilo que te fizerem, aconteça o que acontecer, nunca percas isto de vista’”, acrescenta.

Apesar da relação com estes antigos contadores de histórias, os contos chegaram a Ana e a Cristina dentro das suas próprias casas. Na infância, os avós de Cristina contavam histórias à mesa e os de Ana enquanto descascavam favas ou mesmo quando tentavam explicar por que é que as coisas são como são. “Tudo isto fica em nós, é o que nos nutre e transforma. Eu tenho uma grande riqueza de histórias na minha infância, que depois sai na minha forma de contar e no meu imaginário”, diz Ana.

Com as histórias no imaginário, seguiram caminhos diferentes. Ana Sofia, que estudou na Escola Superior de Teatro e Cinema, faz teatro desde os 12 anos e Cristina, licenciada em Psicologia, trabalhou durante 30 anos na Biblioteca Municipal de Beja, junto dos livros e da comunidade. Só despertaram para o mundo dos contos quando perceberam que as histórias que os avós lhes contavam afinal pertenciam a um vasto património de tradição oral.

Agora, o seu ganha-pão são as histórias. Mas, para encarar o público praticamente todos os dias, é preciso preparação. Todos os dias lêem histórias e preparam-nas. “O trabalho que faço é de estudar histórias, de me interessar pelas histórias e de as manter vivas dentro de mim”, diz Ana, que teve uma bolsa, durante três anos, do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição para mergulhar neste mundo.

Ana e Cristina entram nas sessões de contos sem papéis, nem textos decorados. A primeira coisa a fazer é “ler o público” e “sentir as orelhas”, diz Cristina. Só no momento decidem que histórias contar e, tendo presente as várias variações de cada história, por que caminhos a conduzem. Finalmente, escolhido o reportório, a viagem pelo imaginário começa. “E é aí que o tempo congela”, sorri Ana, que muitas vezes conta e canta histórias com ajuda de um instrumento musical indiano, a caixa sruti.

Mas quantas histórias cabem na memória? É uma pergunta difícil, admitem. Ana e Cristina apontam entre as 40 e as 50. Mas o reportório está em permanente dança; umas histórias saem, outras entram. “Nunca é certo”, sorriem.



Mariana guarda um sonho longe dos contos, se tivesse aprendido a escrever. “Acho que dava uma boa professora de Matemática” MARIA ABRANCHES

Contar histórias para ser amado

Desde 2021 que o projecto Lu.gar.Contado percorre o país com uma exposição sobre os antigos contadores de histórias, acompanhada por sessões de contos abertos ao público. Já a Contaria, a sessão de contos da Associação Renovar a Mouraria, que existe desde 2016, está praticamente parada desde a pandemia, apenas realizando sessões esporádicas. Mas a vontade é de voltar a ter uma programação mensal em breve.

Por todo o país, também existem sessões de contos em bibliotecas, espaços culturais, escolas e até vários festivais, como o Passa a Palavra, em Oeiras, Escutadores, em Lisboa, Encontro do Conto, no Porto, a Ouvidoria, em Braga, Maratona da Leitura, na Sertã, Caminhos de Leitura, em Pombal, Contanário, em Évora, ou Palavras Andarilhas, em Beja.

“O contador de histórias é um saltimbanco, de terra em terra, a contar histórias onde o chamam”, diz Ana, que também já contou histórias um pouco por toda a Europa, América do Sul e até Ásia. Em 2003, no Irão, recebeu o prémio de Melhor Narradora Internacional e foi a única mulher a conseguir cantar em palco — depois de muita resistência, uma vez que era proibido as mulheres cantarem neste festival. “O mais impactante foi perceber que lá se contavam as mesmas histórias do que cá.”

Os contos têm precisamente esta função: aproximar-nos. “Onde quer que seja, as histórias respondem às mesmas inquietações. Aproximam-nos do outro, seja quem for”, explica o investigador Luís Correia Carmelo. Já para Cristina, contar histórias é uma actividade capaz de reparar ausências. “Resolveram um problema de ausência que eu tinha na minha vida. Nós contamos para ser amados. A palavra dá esse poder, de ‘sermos gostados’ pelo outro”, partilha.

Da mesma forma, as histórias são capazes de reparar ausências na educação — e podem ser uma ferramenta para se ganhar voz. Cristina dá o exemplo de um homem que, depois de participar numa sessões de contos, começou a escrever os seus próprios poemas — e, à falta de folhas, começou a escrever em guardanapos. “Ele tinha um saquinho de pão cheio de guardanapos de papel dos textos que ele escrevia”, recorda Cristina. “Este homem foi electricista uma vida toda, nunca pendeu para a escrita. As histórias que nós contamos acordaram esta pessoa para uma consciência de que também tem voz.”

Liberdade, revolução, insubmissão

Estes contos e histórias servem aos adultos e às crianças. Podem fazer rir, educar ou pôr a nu as feridas mais profundas. Mas também “alargam o imaginário, abrem caminhos e ajudam a fazer perguntas”, acrescenta Ana. E para os contadores de histórias, há cada vez mais perguntas a ser feitas. “Como é que pegamos nos contos e os tornamos contemporâneos?”, questiona Cristina. “O movimento de narração oral não é revivalista. As histórias não são do passado. São para construir o futuro, e sobretudo para pensar o presente”, completa Ana. “As histórias sempre serviram para fintarmos a morte, fintarmos o tempo, aproveitarmos as dificuldades. Sempre foram um instrumento de liberdade, de revolução, de insubmissão.”

Para Ana, contar histórias é “mais urgente” do que nunca. “Precisamos de pensar com que histórias estamos munidos para abordar e combater os problemas de hoje, as atrocidades que estão a acontecer ao nosso lado”, reitera, referindo-se à luta pela dignidade humana, as questões ambientais, a igualdade, a liberdade. “As histórias não irão mudar o mundo. Mas são uma forma de resistir. Contar histórias não para mudar o mundo, mas para que o mundo não nos mude a nós, a nossa natureza. Para que o mundo não mude a nossa humanidade”, acrescenta Cristina, de olhos marejados.

Mesmo com a ajuda da bengala, Mariana Bicho já não consegue chegar a todos os largos do Alentejo para contar histórias — mas o desejo de ouvir e contar continua a nascer noutras geografias e entre os mais novos. Clara Alves, de 25 anos, cresceu entre serões de histórias na sua casa e desde então que estes contos a acompanham como mapas de sobrevivência ao mundo. Depois de muito ouvir, agora, pela primeira vez, está a estudar Contação de Histórias e Teatro.

A primeira história que está a trabalhar é o conto da Ti Miséria, a mulher que prende a morte no cimo de uma árvore e fica com o mundo na palma da mão. Clara já afinou esta história vez atrás de vez diante da família, dos colegas e amigos. Agora, é altura de abrir novos horizontes. “Vou começar a contar histórias na minha escola primária”, diz a jovem, com um sorriso. A pedra está lançada e não se sabe onde e como irá cair. Mas enquanto houver ouvidos que ouçam, as histórias continuam.
 


segunda-feira, 19 de junho de 2023

Vitor Oliveira

 


Homenagem a Vítor Oliveira reúne treinadores e antigos e atuais jogadores em Portimão
Iniciativa terá lugar no próximo sábado, no Campo Major David Neto

Vitor Oliveira

Vários treinadores e antigos e atuais jogadores reúnem-se no próximo sábado em Portimão, numa homenagem a Vítor Oliveira, que faleceu em 20 de novembro de 2020.

O evento terá lugar no Campo Major David Neto (espaço habitualmente utilizado pelos escalões de formação do Portimão), a partir das 18 horas, e a organização, a cargo de Zezé Camarinha, já garantiu a presença de, entre outros, Henrique Calisto, Manuel José, Petit, José Mota, Manuel Cajuda, Amílcar Fonseca, Mário Reis, Jorge Vital, João Manuel Pinto, Teixeirinha, Carriço, Kennedy, Rúben Fernandes ou Beto, além de figuras do meio televisivo e do teatro e da música, como Fernando Mendes.


O programa inclui um jogo com duas partes de 30 minutos e o filho de Vítor Oliveira estará presente. Segue-se um jantar de confraternização, no restaurante My Guest.

Natural de Matosinhos, Vítor Oliveira escreveu uma parte significativa do seu percurso profissional em Portimão: terminou a carreira de futebolista no Portimonense e ali iniciou a carreira de treinador, na época que marcou a estreia dos alvinegros nas competições europeias. Voltou mais tarde para promover o Portimonense à 1.ª Divisão.

Por Armando Alves

quinta-feira, 25 de maio de 2023

A sobrevida dos condes de Ferreira & C.ª

 É grave que o conde de Ferreira continue a ser apresentado como um benfeitor. É inadmissível que se continue a fazer de conta que não se sabe das origens escravocratas da sua “caridade”.

Cristina Roldão 25 de Maio de 2023

Conde de Ferreira
 
No quadro da exposição Vento (A)mar, os artistas Dori Nigro e Paulo Pinto apresentaram a instalação Adoçar a Alma para o Inferno III que discute o passado escravocrata do conde de Ferreira e que, por isso mesmo, viram a sua exposição censurada pelo Centro Hospitalar do Conde de Ferreira, tutelado pela Santa Casa da Misericórdia do Porto (SCMP). Foi através do dinheiro sujo do tráfico esclavagista, à custa da vida de cerca de 10 mil pessoas negras, que se construiu o Hospital do Conde de Ferreira, 120 escolas primárias e que foram apoiadas inúmeras obras sociais, como as Misericórdias. Não tendo demonstrado em vida ser um homem de “causas sociais”, Joaquim Ferreira dos Santos ter-se-á dedicado às mesmas, postumamente, com o objetivo de limpar o seu nome que, com a abolição, ficara publicamente manchado, como muitos dos que enriqueceram com o tráfico. Nada que trabalhos como Conde de Ferreira & C.ª, de José Capela, já não nos tivessem mostrado há vários anos ou que projetos recentes como Joaquim – O Conde de Ferreira e Seu Legado, de Nuno Coelho, não discutam.
 
Ora, no que aos dias de hoje diz respeito, é grave que o conde de Ferreira continue a ser apresentado como um benfeitor, glorificado na estatuária, na toponímia e noutros meios de memorialização. É inadmissível que hoje se beneficie desses equipamentos e serviços e se continue a fazer de conta que não se sabe das origens escravocratas da sua “caridade”. E o que é mais grave ainda é que instituições como o referido centro hospitalar se sintam à vontade para censurar trabalhos artísticos que colocam essas continuidades coloniais a nu. Esperemos que a instituição recue e se demarque rapidamente da decisão do seu administrador e do seu diretor clínico – Ângelo Duarte e Nuno Trovão –, peça publicamente desculpa e se posicione do lado certo da história, reabra o acesso à instalação e inscreva de uma vez por todas na sua “memorália” o envolvimento escravocrata do seu patrono. Esperemos também que a Câmara Municipal do Porto, a Direção-Geral das Artes e outras instituições com responsabilidades não fiquem em silêncio. Ou será pedir muito ao país da vocação para o diálogo entre os povos?
 
Este caso remete-nos para a necessidade de olhar o racismo não só como algo que violenta pessoas racializadas, mas também enquanto relação que beneficia pessoas brancas, no passado e no presente, isto é, enquanto “privilégio branco”. São poucos aqueles que vão rompendo este silêncio. Alguns, corajosamente, expuseram as origens escravocratas da fortuna das suas famílias, como é o caso de Francisco Sousa, que se considera um “afro-beneficiário”, ou de Catarina Demony, jornalista que realizou recentemente o documentário Debaixo do Tapete. Há também quem, como o meu colega e amigo Pedro Varela, investigue as origens escravocratas e coloniais das fortunas de grupos poderosos, como a família Ulrich ou o empresário, apoiante do partido Chega, João Maria Bravo. Aline de Biase Albuquerque, por sua vez, tem estudado o caso de Ângelo Francisco Carneiro, que, de traficante de pessoas escravizadas, passou a visconde de Loures. O seu palacete em Loures é hoje a morada do Grémio Literário.
 
Este é um debate melindroso para famílias e grupos com responsabilidade no tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, não só pela nódoa simbólica, mas por poder vir a “despertar” maior contundência nas reivindicações por reparações materiais. Se há quem se sinta incomodado e critique um suposto desvio “subjetivo” da luta antirracista, eis que tem aqui a oportunidade de mergulhar na “objetividade” das continuidades coloniais em Portugal. Não é?

O traficante de escravos que ofereceu 120 escolas a Portugal

Na história nada simples nem linear da escravatura avultam personagens paradoxais como Edward Colston, cuja estátua, em Bristol, foi derrubada na semana passada por manifestantes antirracistas. Mas Portugal também teve figuras destas, como o 1.º conde de Ferreira, benemérito da saúde e da instrução pública graças à fortuna amealhada no tráfico negreiro entre Angola e a costa do Brasil.

Retrato do 1.º conde de Ferreira

Convencido de que a instrução pública é um elemento essencial para o bem da sociedade, quero que os meus testamenteiros mandem construir e mobilar cento e vinte casas para escolas primárias de ambos os sexos nas terras que forem cabeças de concelho, sendo todas por uma mesma planta e com acomodação para vivenda do professor." Assim determinava, já entrado nos anos, o 1.º conde de Ferreira, nascido sem brasão e registado, segundo o assento paroquial, como Joaquim Ferreira dos Santos, filho de agricultores pobres do norte de Portugal.

A generosidade do gesto, que dotava o reino, sempre parco em instrução pública, de uma primeira rede de ensino elementar, terá sido reconhecido pelos seus contemporâneos. À boca pequena alguns ainda lhe chamariam "brasileiro", nome então dado aos portugueses de torna-viagem que tinham conseguido amealhar fortuna na antiga colónia, enquanto outros, decerto mais raros, talvez ainda lembrassem que na origem desse sucesso estavam os vastos lucros do comércio negreiro, entre Angola e o Rio de Janeiro, Bahia ou Pernambuco, para abastecer de mão-de-obra jovem e vigorosa os engenhos da colónia tornada independente em 1822. Milhares de homens, mulheres e crianças arrancados às suas aldeias em África e metidos à força, acorrentados, no insalubre porão de navios cargueiros. Os que morriam durante a travessia (e não eram poucos) eram prontamente lançados ao mar. Os que chegavam eram leiloados em praça pública como vulgar mercadoria, à mistura com marfim e animais de carga.
Assim fora durante muito tempo, mas, nas primeiras décadas do século XIX, o impacto dos movimentos abolicionistas na opinião pública tornou tal prática um negócio degradante. As mãos dos que a ele se dedicavam tinham enriquecido soberanos, que não se coibiam de cobrar a sua percentagem nos lucros como acontecia com os nossos reis D. Manuel I ou D. João III, mas a gradual consciencialização dos direitos humanos das populações escravizadas passou a vê-las maculadas de sangue.
Na segunda metade do século XIX, Eça de Queiroz dava conta, em Os Maias, da repugnância que as fortunas obtidas com tal tráfico tinham passado a suscitar. A burguesia lisboeta começara por admirar a extrema beleza de Maria Monforte, mas, invejosa, não tardou a aplicar-lhe o epíteto malsão de "a negreira". Quando Pedro da Maia todo se arrebatou pela beldade, disposto a casar, o pai dele, Afonso, viu nesse amor a ameaça da desonra e do estigma social. Porquê? Porque "havia uma treva na história do Monforte. Parece que servira algum tempo de feitor numa plantação da Virgínia... Enfim, quando reapareceu à face dos céus comandava o brigue Nova Linda, e levava cargas de pretos para o Brasil, para a Havana e para a Nova Orleães. Escapara aos cruzeiros ingleses, arrancara uma fortuna da pele do africano, e agora rico, homem de bem, proprietário, ia ouvir A. Corelli a São Carlos". A fortuna, manchada de sangue inocente, assombrava o próprio futuro da filha.
Monforte procurava esconder os fantasmas do passado com os novos hábitos requintados, exibidos no "palco" do Chiado, ou com as toilettes da linda filha. Outros, que não foram personagem de ficção como 1.º visconde de Loures (1791-1858), mandaram erguer palacetes como aquele que hoje acolhe o Grémio Literário. Manuel Pinto da Fonseca, proprietário de várias feitorias na costa ocidental africana e no Brasil, foi benemérito de várias ordens religiosas, entre as quais a do Bom Jesus de Braga, cidade de onde era originário. Mais de 200 anos antes, quando a escravatura ainda era vista como qualquer outro negócio, o próprio Edward Colston, cuja estátua foi agora derrubada em Bristol, adquiriu notoriedade pública ao transformar parte dos seus muitos dividendos obtidos no comércio negreiro na construção de hospitais para os pobres da cidade. Assim conseguiu a gratidão dos seus conterrâneos e um lugar no Parlamento britânico.

Nobreza fresca e filantropia

Nascido no Porto em 1782, Joaquim Ferreira dos Santos embarcou para o Brasil em 1800, levando consigo pouco mais do que uma carta de recomendação, dirigida a um parente que se encontrava estabelecido como comerciante no Rio de Janeiro. Ali, ajudado e protegido pelo seu parente, foi prosperando no negócio, dedicando-se ao comércio por consignação de produtos enviados da então metrópole.

Fosse porque Joaquim era, por sua natureza, irrequieto, fosse porque as guerras napoleónicas ameaçavam a estabilidade do comércio com a Europa, em breve reforçava os negócios entre a sua casa e a praça de Buenos Aires, ao mesmo tempo que dirigia as suas atenções para África. Na costa angolana montou três postos cujo principal objetivo era a exportação de escravos para os engenhos brasileiros de açúcar e cacau, dando lucrativa continuidade a um comércio secular entre as duas costas atlânticas que se manteve mesmo após a independência do Brasil, em 1822 (a ponto de vários negociantes angolanos terem chegado a equacionar a hipótese de se unirem à coroa do Brasil, em detrimento da soberania portuguesa).

Já viúvo e sem filhos, regressou a Portugal, dedicando-se, pelo menos à luz do dia, à banca e a outros investimentos financeiros. Rico como Midas, viu no liberalismo emergente uma oportunidade de afirmação social. Faltavam-lhe pergaminhos de nascimento? Em plenas lutas entre liberais e miguelistas declarou-se partidário da causa política da pequena rainha D. Maria, para a qual contribuiu financeiramente com avultadas somas. O favor não foi esquecido pelo novo poder: feito visconde e, mais tarde, conde (com direito a brasão de armas), tornou-se par do reino por Carta Régia de 3 de maio de 1842. Mais tarde foi membro do Conselho de Sua Majestade, comendador da Ordem Militar de Cristo e da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, e recebeu, em Espanha, a Grã-Cruz da Ordem de Isabel, a Católica.
 

Das 120 escolas projetadas, só 90 foram construídas e 70 resistiram até hoje, como esta em Setúbal

Das 120 escolas projetadas, só 90 foram construídas e 70 resistiram até hoje, como esta em Beduído

Das 120 escolas projetadas, só 90 foram construídas e 70 resistiram até hoje. Como esta, no Montijo

O novo conde de Ferreira não se limitaria, todavia, a passear as condecorações pelos corredores do paço. Era um homem de ação e a proximidade com o poder político não lhe retirara essa faceta. Informava-se, lia, acompanhava o que de mais moderno se passava por essa Europa fora. Certa vez, o rei D. Pedro V, filho e sucessor de D. Maria II, que morrera nova, falara-lhe da sua preocupação com o abandono a que eram votados os doentes mentais - os alienados, na linguagem da época. O conde ficou a matutar no caso. Do mesmo modo, inquietava-o a falta de acesso dos jovens portugueses, nomeadamente os mais pobres, às primeiras letras.

No seu testamento deixaria, pois, os recursos financeiros para ajudar a colmatar tais lacunas. Em 1883 inaugurava, no Porto, o primeiro hospital português pensado de raiz para a psiquiatria, que receberia o nome do seu benemérito. Aí seriam instalados doentes vindos de Santo António de Rilhafoles, assistidos por alguns dos mais conceituados médicos especialistas da época.

Este cuidado que evidencia, pela riqueza de pormenores, uma longa reflexão sobre o tema, estendeu-se à sua disposição para criar uma rede de 120 escolas públicas de norte a sul de Portugal. Do seu testamento consta o primeiro tipo de planta concebido de origem para servir de escola primária, com uma arquitetura utilitária e facilmente identificável. Por razões de eficácia económica, os edifícios eram uniformizados, incluindo o escolar, de linhas depuradas, com fachada encimada por frontão triangular com sineira, porta axial e uma janela de cada lado. Na fachada podia ler-se 24 de março de 1866 (data da morte do benfeitor) e o seu nome. Destinada a rapazes e raparigas, incluía ainda muitas vezes uma modesta residência para o docente. Das 120 escolas previstas, foram construídas 91. Desse conjunto hoje restam cerca de 70, algumas ainda na sua função primitiva e outras adaptadas a outros serviços municipais.

O que fez "correr" homens como este? A necessidade de comprar o esquecimento dos seus contemporâneos, a simples vaidade ou o íntimo impulso de limpar a consciência? No requinte das vidas novas que construíam, que fantasmas os assombravam à noite? Sendo o espírito humano o mais imperscrutável dos continentes, o mais provável é que nunca o saibamos.
 
 
 
 
 
 

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Vazamento desmascara Zelensky, que ambiciona avançar sobre a Rússia


Uma série de vazamentos de inteligência dos EUA, chamados de Discord Leaks, revelam um presidente ucraniano capaz de jogo sujo e o Pentágono ciente de tudo, entre outros segredos

por Cezar Xavier  Publicado 16/05/2023

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, utiliza inovações tecnológicas em captura de vídeo volumétrico 3D, para transmissão de seu holograma em reuniões pelo mundo. (foto Divulgação)

Enquanto o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, viaja pela Europa repetindo a retórica de um país vítima de um ataque despropositado que precisa de ajuda para se defender, suas comunicações internas com os principais assessores e líderes militares revelam um homem agressivo, capaz de jogo sujo para avançar sobre o território russo.

Os documentos obtidos com exclusividade pelo The Washington Post, fazem parte de um vazamento mais amplo de segredos dos EUA divulgados na plataforma de mensagens Discord. Mostram também que o Pentágono, de onde vieram os documentos, está ciente de toda a movimentação e intenções do governo ucraniano, inclusive das ameaças de atacar a Rússia, que a Casa Branca evita.

Embora o The Post destaque os temas relativos a condução de Zelensky para a guerra, o vazamento vai muito além, e como já ocorreu em outros casos, pode criar problemas diplomáticos para além da região da Península da Crimeia. Mostra a preocupação dos americanos com a fragilidade da defesa aérea na Coreia do Sul e em Taiwan, por exemplo, ou vínculos militares entre Emirados Árabes e China. O Pentágono está ciente de que a Rússia tem fôlego para, ao menos, mais um ano de guerra, e preocupa-se com ameaças espaciais da Rússia e da China.

Os vazamentos revelaram a preocupação da agenda global do presidente Biden com o fato das principais nações em desenvolvimento evitar o impasse cada vez maior entre os Estados Unidos, a Rússia e a China e, em alguns casos, explorar essa rivalidade para seu próprio ganho. Os documentos citam Índia, Brasil, Paquistão e Egito.

Face pública e privada

O vazamentos revelam um Zelensky que contrasta com sua imagem pública do estadista calmo e devotado ao seu povo, resistindo ao ataque brutal da Rússia. As revelações foram obtidas por meio de comunicações digitais interceptadas, fornecendo uma visão rara das deliberações de Zelensky em meio a barragens de mísseis russos, ataques à infraestrutura e crimes de guerra.

Ele tem conquistado a confiança dos governos ocidentais ao se recusar a usar as armas que fornecem para ataques dentro da Rússia e priorizar como alvo as forças russas dentro das fronteiras da Ucrânia.

Mas a portas fechadas, o líder da Ucrânia propôs ir em uma direção mais audaciosa – ocupando aldeias russas para ganhar vantagem sobre Moscou, bombardeando um oleoduto que transfere petróleo russo para a Hungria, um membro da OTAN, e ansiando em particular por mísseis de longo alcance para atingir alvos dentro das fronteiras da Rússia.

Segundo o jornal americano, quem vazou centenas de páginas de informações classificadas de inteligência militar foi Jack Teixeira, um jovem membro da Guarda Aérea Nacional de Massachusetts, que está preso. Ele compartilhou os documentos com um pequeno círculo de amigos na plataforma de bate-papo Discord.

Longe da paz

Os documentos revelam profundas preocupações sobre a trajetória da guerra e a capacidade de Kiev de travar uma ofensiva bem-sucedida contra as forças russas. De acordo com uma avaliação da Agência de Inteligência de Defesa, entre os documentos vazados, “as negociações para encerrar o conflito são improváveis durante 2023”.

Os arquivos incluem resumos de inteligência e conversas de alto nível entre líderes mundiais, bem como informações sobre tecnologia de satélite avançada que os Estados Unidos usam para espionar. Também incluem inteligência sobre aliados e adversários, incluindo Irã e Coreia do Norte, bem como Grã-Bretanha, Canadá, Coreia do Sul e Israel.

Raiva da Hungria

Em alguns casos, Zelensky é visto restringindo as ambições de seus subordinados; em vários outros, é ele quem propõe ações militares arriscadas.

Em uma reunião em meados de fevereiro com a vice-primeira-ministra Yuliya Svrydenko, Zelensky sugeriu que a Ucrânia “explodisse” o oleoduto Druzhba, construído pelos soviéticos, que fornece petróleo à Hungria. “Zelenskyy destacou que … a Ucrânia deveria simplesmente explodir o oleoduto e destruir a provável indústria húngara do [primeiro-ministro] Viktor Orban, que é fortemente baseada no petróleo russo”, diz o documento.

Ao detalhar a conversa, oficiais de inteligência admitem que Zelensky estava “expressando raiva contra a Hungria e, portanto, poderia estar fazendo ameaças hiperbólicas e sem sentido”, uma qualificação que não acompanha os outros relatos de Zelensky sugerindo uma ação militar ousada. Embora a Hungria seja nominalmente parte da aliança ocidental, Orban é amplamente considerado o líder europeu mais amigo do Kremlin.

O risco nuclear

Zelensky não se intimidou diante das revelações, e afirmou que será capaz das mesmas práticas que critica na ofensiva russa. Durante uma entrevista ao The Post em Kiev, o presidente rejeitou as alegações de inteligência dos EUA como “fantasias”, mas defendeu seu direito de usar táticas não convencionais na defesa de seu país.

“A Ucrânia tem todo o direito de se proteger e estamos fazendo isso. A Ucrânia não ocupou ninguém, mas vice-versa”, disse Zelensky. “Quando tantas pessoas morreram e houve valas comuns e nosso povo foi torturado, tenho certeza de que teremos que usar todos os truques.”

O uso de mísseis de longo alcance para atingir o interior da Rússia é um tema particularmente delicado para a Casa Branca, que há muito teme que o conflito na Ucrânia possa ficar fora de controle e forçar um impasse catastrófico entre os Estados Unidos e a Rússia, a maior potência nuclear do mundo.

Embora Washington tenha dado a Zelensky bilhões de dólares em armamento avançado, o presidente Biden rejeitou o pedido do líder ucraniano de mísseis de longo alcance, capazes de atingir alvos a até 300 km de distância. Desde o início da guerra, Biden disse que os Estados Unidos “não estão encorajando ou permitindo que a Ucrânia ataque além de suas fronteiras”. Questionado, Zelensky diz que não deu ordens neste sentido, negando as intenções reveladas pelos documentos.

Na semana passada, a Grã-Bretanha se tornou o primeiro país ocidental a fornecer à Ucrânia mísseis de longo alcance. O Storm Shadow, um sistema de mísseis de cruzeiro com capacidade furtiva, tem um alcance de 250 km, excedendo em muito o alcance de 80 km dos lançadores HIMARS fornecidos pelos EUA.

Zelensky disse acreditar que os Estados Unidos não estão enviando as armas porque não confiam em Kiev. “Acho que eles têm medo de que possamos usá-los no território da Rússia”, disse Zelensky ao The Post, reafirmando sua intenção defensiva.

Embora não haja indicação de que a Ucrânia tenha usado mísseis ocidentais para atacar o território russo, o mesmo não pode ser dito sobre o uso de drones armados por Kiev.

Explosões causadas por veículos aéreos não tripulados tornaram-se uma ocorrência regular na Rússia, inclusive em Rostov, onde um drone caiu em uma refinaria de petróleo neste mês. As autoridades ucranianas costumam ser discretas sobre os incidentes, insinuando que são responsáveis sem assumir o crédito diretamente.

A Rússia acusou este mês a Ucrânia de encenar um ataque de drones com o objetivo de matar o presidente Vladimir Putin no Kremlin. Vídeos que circulam nas redes sociais mostram dois drones avançando em direção ao Kremlin. A alegação foi negada com veemência por autoridades ucranianas, incluindo Zelensky.