sábado, 22 de julho de 2017

O Paquete "Carvalho Araújo" (1930-1973)

O paquete “Carvalho Araújo” foi um dos navios que mais tempo e melhor serviu os açorianos através das imensas viagens que fez de Lisboa para as diversas ilhas dos Açores e vice-versa, com passagens pelo arquipélago da Madeira. Navegou entre 1930 e 1970.
Pertenceu à “Empresa Insulana de Navegação” que o mandou fazer na Itália, para efectuar, especialmente, com regularidade mensal, aquelas viagens rotativas. Substituiu nesse serviço o navio “São Miguel”, propriedade da mesma empresa.
E 2 de Janeiro de 1930, o jornal “O Telégrafo” da cidade da Horta, dava a seguinte notícia: «Partiram para Trieste [Itália] onde foram assistir ao lançamento ao mar do navio a vapor da Empresa Insulana, o sr. Vasco Bensaúde e esposa, que será a madrinha da nova unidade, e o sr. F. Brito do Rio respectivamente director e chefe de serviços desta empresa».
«Foram convidados a assistir o cônsul geral de Portugal em Génova e o cônsul e vice-cânsul em Trieste».
«O vapor que foi lançado ao mar em 16 de Dezembro, deverá ser entregue pronto em 28 de Fevereiro, e poderá talvez fazer a sua primeira viagem à Madeira e Açores em 22 de Março próximo» (1).
Contrariamente ao que aqui foi noticiado, a primeira viagem do navio “Carvalho Araújo” apenas teve lugar em Maio, certamente devido a problemas de acabamentos e de recrutamento da respectiva tripulação.
No seu excelente livro, “Paquetes Portugueses”, Luís Miguel Correia escreve que o lançamento à água do paquete “Carvalho Araújo” foi efectuado no dia 17 de Dezembro de 1929 (2). Ilustrando o seu trabalho sobre esse paquete com excelentes fotografias, situação que também acontece com os outros paquetes portugueses inseridos nesse trabalho, o autor refere que «O “Carvalho Araújo” chegou a Lisboa, vindo do estaleiro, em 19 de Março de 1930, largando para a viagem inaugural à Madeira e aos Açores a 23 de Abril de Abril seguinte» (2).
Conforme se pode ver naquele livro, de que nos servimos com a devida deferência para enriquecer este artigo, as principais características do referido paquete eram as seguintes: Comportava 4560 toneladas, tinha 112,82 metros de comprimento,
15,30 m de boca, 2 máquinas a vapor, 2 hélices e a velocidade máxima de 14 nós. Tinha capacidade para 78 passageiros de 1.ª classe, 78 de 2.ª e 98 de 3.ª, podendo embarcar nas cobertas 100 passageiros de 3.ª classe (apenas com direito ao refeitório). Esclarece-se que esta solução, face à pobreza existente no tempo, era a mais utilizada pelos açorianos, onde eu cheguei a viajar, na minha juventude.
Durante a sua longa carreira, em viagens entre Lisboa, a Madeira e os Açores, o paquete “Carvalho Araújo” servia com bastante assiduidade as populações das ilhas desses arquipélagos. Transportava passageiros e cargas, como convinha naquele tempo às referidas ilhas. Trazia-nos mercadorias de Lisboa, com excepção de combustíveis, e levava-nos para lá o nosso gado, o óleo de baleia e as algas marinhas, bem como outros produtos menos significativos. Nalgumas ilhas escaladas o paquete “Carvalho Araújo”, alternava as suas viagens com outros navios da EIN, designadamente com o paquete “Lima”, o “Cedros” e o “Ponta Delgada” passando por portos diferentes. Sempre que o tempo o permitia, o “Carvalho Araújo” passava pelos portos de Porto Santo, Funchal, Vila do Porto, Ponta Delgada, Angra do Heroísmo, Santa Cruz da Graciosa, Velas de S. Jorge, S. Roque Pico, Horta, Corvo, Santa Cruz das Flores e Lajes das Flores, regressando a Lisboa e escalando os mesmo portos.
Nas suas viagens quase regulares, o paquete “Carvalho Araújo” transportou diversas entidades importantes das quais distinguimos algumas.
Nos últimos dias de Julho e primeiros de Agosto de 1941, o Presidente da República, General António Óscar Fragoso Carmona (1869-1951), que visitou as ilhas então ditas Adjacentes, dos arquipélagos da Madeira e dos Açores. Nas ilhas do Corvo e das Flores a visita do Chefe do Estado teve lugar no dia 4 de Agosto de 1941. Foi o primeiro Chefe do Estado que visitava essas ilhas, trazendo consigo larga comitiva com ministros e outras altas individualidades. O desembarque no Corvo teve lugar na parte da manhã e nas Flores (apenas em Santa Cruz) na parte da tarde. Os analistas políticos afirmavam que Salazar havia instituído essa viagem – que se fazia em plena II Guerra Mundial, com os submarinos alemães a torpedearem navios de passageiros no Oceano Atlântico – para provar ao mundo que as tropas do “Eixo” não eram tão agressivas como se afirmava (3).
Em 1942 o referido paquete transportou o Padre Cruz, Francisco Rodrigues da Cruz (1859-1948), alta figura da Igreja Católica desse tempo, que muitos fiéis afirmavam poder vir a ser elevado aos altares, graças à sua bondade e às demais qualidades que ostentava. A visita à ilha das Flores fez-se em 31 de Agosto, tendo desembarcado em Santa Cruz das Flores, onde celebrou Missa, na sua missão evangélica, enquanto que nas Lajes, devido ao estado do mar, as autoridades civis e religiosas, com as crianças da catequese, foram cumprimentá-lo à 1.ª classe do referido paquete (4).

No ano de 1948, na sua viagem de Junho/Julho, a figura de honra importante no “Carvalho Araújo” foi a imagem de Nossa Senhora de Fátima que, acompanhada de adequada comitiva, visitou pela primeira vez as chamadas “Ilhas Adjacentes”, na sua primeira visita a essa ilhas. No Corvo e nas Flores, Santa Cruz e Lajes, as visitas tiveram lugar em 2 de Julho (5).
Em Julho de 1957 o paquete “Carvalho Araújo” antecipou a sua saída de Lisboa para transportar o então Presidente da República, General Francisco Higino Craveiro Lopes (1894-1964) e a sua comitiva. Afirmou-se que, como Salazar pretendia correr com ele do poder, “mandou-o” visitar as ilhas da Madeira e dos Açores. No Faial a visita fez-se no dia 24 de Julho (6).

Em Julho 1962, também transportou o Presidente da República, Vice-Almirante Américo de Deus Rodrigues Tomás (1894-1987), bem como a respectiva comitiva, sendo a visita ao Distrito da Horta efectuada entre os dias 11 a 14 desse mês (7).

Aquele distinto autor, Luís Miguel Correia”, mais à frente, escreve que «o “Carvalho Araújo” terminou a ultima viagem aos Açores em 2 de Março de 1970, passando a ser utilizado no transporte de tropas para a Guiné (8)». Refere também que esse paquete, depois dessas viagens, em 8 de Janeiro 1971 foi imobilizado no Tejo até ser vendido a «sucateiros espanhóis, saindo de Lisboa a 20 de Outubro de 1973, a reboque, com destino a Aviles onde entrou em 27 de Outubro (9)». Escreve também que foi alterado «o nome deste velho paquete em 1 de Março de 1972 para “Marcéu”».
Durante o século XX, nenhum navio serviu os açorianos com a eficiência, a regularidade e a duração com que o paquete “Carvalho Araújo o fez, inclusive por ocasião da II Guerra Mundial, salvo raras excepções.

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Eucaliptos


Prof. Jorge Paiva, Biólogo Universidade de Coimbra in Público, 2006.

"Antes da última glaciação, Portugal estava coberto por uma floresta sempre-verde (laurisilva). Durante essa glaciação a descida drástica da temperatura fez desaparecer quase por completo essa laurisilva, tendo sido substituída por uma cobertura florestal semelhante à actual taiga. Após o período glaciar, a temperatura voltou a subir, ficando o país com um clima temperado como o actual. Assim, a floresta glaciar foi substituída por florestas mistas (fagosilva) de árvores sempre-verdes (algumas delas relíquias da laurisilva) e outras caducifólias, transformando o país num imenso carvalhal caducifólio (alvarinho e negral) a norte, marcescente (cerquinho) no centro e perenifólio (azinheira e sobreiro) para sul, com uma faixa litoral de floresta dominada pelo pinheiro-manso e os cumes das montanhas mais frias com o pinheiro-da-casquinha (relíquia glaciárica). Por destruição dessas florestas, particularmente com a construção das naus (três a quatro mil carvalhos por nau) durante os Descobrimentos (cerca de duas mil naus num século) e da cobertura do país com vias férreas (travessas de madeira de negral ou de cerquinho para assentar os carris), as nossas montanhas passaram a estar predominantemente cobertas por matos de urzes ou torgas, giestas, tojos e carqueja. A partir do século XIX, após a criação dos "Serviços Florestais", foram artificialmente re-arborizadas com pinheiro-bravo, tendo-se criado a maior mancha contínua de pinhal na Europa. A partir da segunda década do século XX, apesar dos alertas ambientalistas, efectuaram-se intensas, contínuas e desordenadas arborizações com eucalipto, tendo-se criado a maior área de eucaliptal contínuo da Europa. Sendo o pinheiro resinoso e o eucalipto produtor de óleos essenciais, produtos altamente inflamáveis, com pinhais e eucaliptais contínuos, os incêndios florestais tornaram-se não só frequentes, como também incontroláveis. Desta maneira, o nosso país tem já algumas montanhas transformadas em zonas desérticas.Sempre fomos contra o crime da eucaliptização desordenada e contínua. Fomos vilipendiados, maltratados, injuriados, fomos chamados à Judiciária, etc. Mas sabíamos que tínhamos razão. Infelizmente não vemos nenhum dos que defenderam sempre essa eucaliptização vir agora assumir as culpas destes "piroverões" que passámos a ter e que, infelizmente, vamos continuar a ter. Também sempre fomos contra o delapidar, por sucessivos Governos, dos Serviços Florestais (quase acabaram com os guardas florestais). Isso e o êxodo rural (os eucaliptos são cortados de 10 em 10 anos e o povo não fica 10 anos a olhar para as árvores em crescimento tendo, por isso, sido "forçado" a abandonar as montanhas e a ficar numa dependência económica monopolista, que "controla" o preço da madeira a seu belo prazer) tiveram como resultado a desumanização das nossas montanhas pelo que, mal um incêndio florestal eclode, não está lá ninguém para acudir de imediato e, quando se dá por ele, já vai devastador e incontrolável.Infelizmente vamos continuar a ter "piroverões" por mais aviões "bombeiros" que comprem ou aluguem. Isto porque, entre essas medidas, não estão as duas que são fundamentais, as que poderiam travar esta onda de incêndios devastadores que nos tem assolado nas últimas décadas. Uma, é a re-humanização das montanhas, que pode ser feita com pessoal desempregado que, depois de ter frequentado curtos "cursos de formação" durante o Inverno, iria vigiar as montanhas, percorrendo áreas adequadas durante a Primavera e Verão. A outra medida fundamental seria, após os incêndios, arrancar logo a toiça dos eucaliptos e replantar a área com arborização devidamente ordenada. Isto porque os eucaliptos rebentam de toiça logo a seguir ao fogo, renovando-se a área eucaliptada em meia dúzia de anos, sem grande utilidade até porque o diâmetro da ramada de toiça não é rentável para as celuloses. Mas como tal não se faz, essa mesma área de eucaliptal torna a arder poucos anos após o primeiro incêndio e assim sucessivamente. Muitas vezes, essas mesmas áreas são também invadidas por acácias ou mimosas, bastando para tal que exista um acacial nas proximidades ou nas bermas das rodovias, pois as sementes das acácias são resistentes aos fogos e o vento ajuda a dispersá-las por serem muito leves. As acácias, como são heliófitas (plantas "amigas" do Sol), e não havendo sombra de outras árvores após os incêndios, crescem depressa aproveitando a luminosidade e ocupando aquele nicho ecológico antes das outras espécies se desenvolverem.Mas como vivemos numa sociedade cuja preocupação predominante é produzir cada vez mais, com maior rapidez e o mais barato possível, as medidas propostas são economicamente inviáveis por duas razões: primeiro, porque é preciso pagar aos vigilantes e respectivos formadores; segundo, porque arrancar a toiça dos eucaliptos é muito dispendioso (custa o correspondente ao lucro da venda de três cortes, isto é, o lucro de 30 anos). É bom também elucidar que os eucaliptais só são lucrativos até ao terceiro corte (30 anos). Depois disso, estão a abandoná-los, o que os torna um autêntico "rastilho" ou, melhor, um terrível "barril de pólvora", áreas onde os seus óleos essenciais, por vaporização ao calor, são explosivos e, quando a madeira do eucalipto começa a arder, provocam a explosão dos troncos e respectiva ramada, lançando ramos incandescentes a grande distância. Este "fenómeno" tem sido bem visível nos nossos "piroverões".Por outro lado, pelo menos uma destas medidas (arranque da toiça e re-arborização ordenada) não tem resultados imediatos mas a longo prazo. Por isso os governantes não estão interessados na aplicação dessas medidas, pois interessa-lhes mais resultados imediatos (as eleições são de quatro em quatro anos...) do que de longo prazo.Assim, sem resultados imediatamente visíveis e com uma despesa tão elevada, os governos nunca vão adoptar tais medidas. Preferem gestos por vezes caricatos, como distribuir telemóveis aos pastores, mas que nunca não acabarão com os "piroverões".Finalmente, após a referida delapidação técnica e funcional dos Serviços Florestais (antigamente, os incêndios florestais eram quase sempre apagados logo no início e apenas pelo pessoal e tecnologia dos Serviços Florestais), esqueceram-se da conveniente profissionalização e apetrechamento dos bombeiros, melhor adaptados a incêndios urbanos.Se os nossos governantes continuarem, teimosamente, a não querer ver claramente o que está a acontecer, caminharemos rapidamente para um amplo deserto montanhoso, com a planície, os vales e o litoral transformados num imenso acacial, tal como já acontece em vastas áreas de Portugal."


A triste geração que virou escrava - Mia Couto



“E a juventude vai escoando entre os dedos.
Era uma vez uma geração que se achava muito livre.
Tinha pena dos avós, que casaram cedo e nunca viajaram para a Europa.
Tinha pena dos pais, que tiveram que camelar em empreguinhos ingratos e suar muitas camisas para pagar o aluguer, a escola e as viagens em família para pousadas no interior.
Tinha pena de todos os que não falavam inglês fluentemente.
Era uma vez uma geração que crescia quase bilíngue. Depois vinham noções de francês, italiano, espanhol, alemão, mandarim.
Frequentou as melhores escolas.
Entrou nas melhores faculdades.
Passou no processo selectivo dos melhores estágios.
Foram efectivados. Ficaram orgulhosos, com razão.
E veio pós, especialização, mestrado, MBA. Os diplomas foram subindo pelas paredes.
Era uma vez uma geração que aos 20 ganhava o que não precisava. Aos 25 ganhava o que os pais ganharam aos 45. Aos 30 ganhava o que os pais ganharam durante a vida toda. Aos 35 ganhava o que os pais nunca sonharam ganhar.
Ninguém os podia deter. A experiência crescia diariamente, a carreira era meteórica, a conta bancária estava cada dia mais bonita.
O problema era que o auge estava cada vez mais longe. A meta estava cada vez mais distante. Algo como o burro que persegue a cenoura ou o cão que corre atrás do próprio rabo.
O problema era uma nebulosa na qual já não se podia distinguir o que era meta, o que era sonho, o que era gana, o que era ambição, o que era ganância, o que era necessário e o que era vício.
O dinheiro que estava na conta dava para muitas viagens. Dava para visitar aquele amigo querido que estava em Barcelona. Dava para realizar o sonho de conhecer a Tailândia. Dava para voar bem alto.
Mas, sabe como é? Prioridades. Acabavam sempre ficando, ao invés de sempre ir.
Essa geração tentava convencer-se de que podia comprar saúde em caixinhas. Chegava a acreditar que uma hora de corrida podia mesmo compensar todo o dano que fazia diariamente ao próprio corpo.
Aos 20: ibuprofeno.
Aos 25: omeprazol.
Aos 30: rivotril.
Aos 35: stent.
Uma estranha geração que tomava café para ficar acordada e comprimidos para dormir.
Oscilavam entre o sim e o não. Você dá conta? Sim. Cumpre o prazo? Sim. Chega mais cedo? Sim. Sai mais tarde? Sim. Quer destacar-se na equipa? Sim.
Mas para a vida, costumava ser não:
Aos 20 eles não conseguiram estudar para as provas da faculdade porque o estágio demandava muito.
Aos 25 eles não foram morar fora porque havia uma perspectiva muito boa de promoção na empresa.
Aos 30 eles não foram ao aniversário de um velho amigo porque ficaram até às 2 da manhã no escritório.
Aos 35 eles não viram o filho andar pela primeira vez. Quando chegavam, ele já tinha dormido, quando saíam ele não tinha acordado.
Às vezes, choravam no carro e, descuidadamente começavam a perguntar-se se a vida dos pais e dos avós tinha sido mesmo tão ruim como parecia.
Por um instante, chegavam a pensar que talvez uma casinha pequena, um carro popular dividido entre o casal e férias num hotel fazenda pudessem fazer algum sentido.
Mas não dava mais tempo. Já eram escravos do câmbio automático, do vinho francês, dos resorts, das imagens, das expectativas da empresa, dos olhares curiosos dos “amigos”.
Era uma vez uma geração que se achava muito livre. Afinal tinha conhecimento, tinha poder, tinha os melhores cargos, tinha dinheiro.
Só não tinha controlo do próprio tempo.
Só não via que os dias estavam passando.
Só não percebia que a juventude se estava escoando entre os dedos e que os bónus do final do ano não comprariam os anos de volta.”
Texto de Mia Couto


terça-feira, 18 de julho de 2017

De Pedrógão Grande à Feira de Carcavelos. As televisões vendem tudo e tudo é contrafeito.


por:Carlos Matos Gomes
Conclusões do que aconteceu em Pedrógão: Depois das reportagens de Fátima, das reportagens da celebração do campeonato de futebol, as televisões comprovaram que o populismo existe e está tão encarniçado como as labaredas do grande fogo que mataram e devastaram. O populismo é o apelo à excitação e à irracionalidade. Depois do que as televisões, principalmente as televisões que são o grande meio de manipulação de massas, fizeram a propósito de um fenómeno religioso, da excitação de um fenómeno desportivo, as televisões exibiram as suas melhores figuras, desorbitadas, de pregadores das igrejas dos últimos dias no aproveitamento de uma tragédia. As televisões provaram que não faltam atiçadores de populaça para qualquer campanha. As labaredas de Pedrógão mataram pessoas e destruíram bens materiais, mas mataram queimaram a ideia de uma televisão como meio credível de informação e esclarecimento. A televisão, enquanto meio de comunicação, sai queimada de Pedrógão. A televisão portuguesa despiu-se de pruridos e apresentou-se como é: Um Big Brother, uma Casa de Segredos. As vedetas das televisões são clones da Teresa Guilherme.
O populismo é uma evidência quando o mais poderoso meio de manipulação do comportamento de massas utiliza as suas figuras mais conhecidas para fazerem apelo aos sentimentos mais primários e irracionais e estas o assumem com a convicção de pastores da igreja dos santos do últimos dias, da Maná, das testemunha de Jeová.
Os acontecimentos de Pedrógão provaram que o melhor das televisões, principalmente das televisões, são Teresas Guilherme pregando sobre as labaredas de Pedrógão como se fossem as do inferno, despejando discursos sem pudor, ora excitados ora choramingas, sempre vazios. Gente capaz de tudo. Todos os acontecimentos são um espectáculo, de um cadáver ao desespero de alguém que perdeu tudo. O grito dos populistas é sempre: queremos carne, queremos sangue. Em Roma gritariam por um cristão para atirar aos leões, em Lisboa ou em Madrid pediriam judeus para queimar nas fogueiras da inquisição. Em Pedrógão queriam um ministro, um secretário de Estado, um GNR que tenha dado uma indicação errada, um avião que não caiiu! Nos intervalos puxam à lágrima fácil.
Um populista com um microfone e uma câmara perora diante de homens e viaturas que se movimentam e correm, anuncia: há uma completa descoordenação no combate ao fogo. Há duzentos anos, numa obra clássica, «A Guerra», o autor, Clausewitz, escrevia sobre a natureza da batalha: “a reunião perfeita de todas as forças num mesmo momento é contrária à natureza da guerra.” A batalha, o combate, seja contra outros homens, seja contra um fogo,não é um bailado, nem uma tabuleiro onde se movimentam soldadinhos de chumbo em movimentos geométricos. O campo de batalha é caótico, mas ninguém conseguirá que um populista de câmara e microfone entenda isto. Eles estão diante das câmaras para acusar os homens e a natureza. Querem vender mortos e pendurar vivos no pelourinho. Querem demissão de ministros, querem apanhar a contradição entre um secretário e um sub-secretário.
Mas o chocante, é que são estes pastores populistas — e não houve vedeta da televisão que não quisesse aparecer em Pedrógão (faltou o Rodrigues dos Santos de jaqueta) — esta gente sem moral que nos entra casa adentro para nos interpretar o mundo. Um amador de economia surge de guia nativo. Uma assombração em fato de treino fala com mortos, um outro soube de um avião que não caiu… Todos sabem de pinheiros e eucaliptos, de ordenamento do território… Amanhã estarão a explicar-nos as causas do défice, as mudanças do clima no planeta, os interesses que se jogam no Médio Oriente, a estratégia das três grandes potências para a divisão do mundo.
Serão os pastores evangélicos que vimos de microfone a aproveitarem sem vergonha a desgraça alheia e os seus sentimentos de impotência, ou de raiva, ou de desespero que se despiram diante de nós. A reflexão mais elaborada sobre os assuntos que determinam a nossa vida, o máximo de senso, de honestidade, de saber da vida e do mundo que estas figuras patétitas conseguem é a que apresentaram em Fátima, no 13 de maio, na rotunda do Marquês no dito tetra e agora em Pedrógão. É esta gente que nos interpretará o Brexit, a crise dos refugiados, a nova Europa, o programa espacial da China, as vagas migratórias, a guerra da Siria, as opções do novo governo francês, o desemprego estrutural, as opções para o futuro da segurança social, os novos combustíveis, o terrorismo.
Serão estes "evangelistas dos últimos dias" que entrevistarão ministros e cientistas, que analisarão orçamentos e os fenómenos sociais que determinam o nosso presente e o nosso futuro!
Como respondeu uma vendedora na feira de Carcavelos quando um senhor ali caído por acaso lhe perguntou se os "polos" eram mesmo da Lacoste:
-Aqui é tudo de marca!
O incêndio de Pedrógão provou que as televisões são uma feira de Carcavelos. Tudo ali é contrafeito e rasca, mas amanhã, os que ali se exibiram como vendedores de "Lacostes" surgirão graves e sérios como se fossem fabricantes de produtos originais.