sexta-feira, 24 de março de 2023

Este livro humaniza Estaline? “Humaniza, sim. Claro que há um perigo nisso”

  

Estaline foi um leitor fervoroso que alimentou a ideia da primeira sociedade comunista no mundo a partir das leituras que fazia. A Biblioteca de Estaline, de Geoffrey Roberts.

Isabel Lucas 24 de Março de 2023


A página está sublinhada, cheia de anotações. Eram quase sempre anotações e sublinhados a azul e a vermelho. Na reprodução surgem a preto e branco. E há comentários à margem numa caligrafia difícil de entender, sobretudo para quem não sabe russo, mas é possível, depois de avisados quanto ao conteúdo dessa marginália de Estaline, distinguir um “ah-ah-ah”. Era uma anotação típica, como NB, um “nota bem” a pedir atenção para uma ideia, uma frase. Em muitas dessas páginas havia sinais de desdém ou apreciação por parte do homem que liderou a União Soviética durante três décadas e ficou para a História como um dos seus líderes mais violentos.
 
A página aqui tomada como exemplo pertence a um documento sobre uma discussão económica numa conferência de 1951 e faz parte da biblioteca de Josef Estaline, uma colecção que em vida do ditador rondou os 25 mil volumes, tinha um selo próprio — Biblioteka I. V. Stalina — e serviu agora de base a um livro que traça a biografia do ditador a partir da sua relação com os livros. Chama-se A Biblioteca de Estaline, é da autoria do historiador irlandês Geoffrey Roberts e apresenta-o como “um leitor dedicado e interessado no auto-aperfeiçoamento” até à morte, ocorrida a 5 de Março de 1953, passam agora 70 anos.

O que se pode inferir acerca do ditador a partir do que ele leu? A pergunta é para Geoffrey Roberts, especialista em diplomacia soviética e russa, comentador, professor de História Moderna na Universidade de Cork, na Irlanda. “Estou convencido de que há apenas um Estaline e é o Estaline intelectual, o Estaline ideológico, o idealista Estaline, o Estaline utópico, o Estaline comprometido com o seu projecto comunista. Esse é um Estaline e é esse Estaline que explica tudo”, diz o académico irlandês numa conversa a partir da sua casa numa aldeia dos arredores de Cork, onde define este livro como “um retrato intelectual de Estaline”, o “tirano sanguinário”, o “político-máquina”, a personalidade paranóica”, “o burocrata sem piedade”, o “fanático ideológico”, nomenclatura que Roberts usa no primeiro capítulo para dar a dimensão daquilo que parece constituir uma contradição, mas que, estudada a relação do homem com os livros, tende a ganhar sentido.

Estaline com os seus dois filhos mais novos, Vasilyu e Svetlana, nos anos 30 DR

“Tenho falado muito sobre isso [até que ponto haverá um Estaline diferente daquele que conhecemos da História] e o que podemos perceber é que Estaline era como nós. Era um de nós, era um intelectual. Essa é a coisa mais importante a reter. Não era um grande intelectual, mas era interessado e interessante de várias formas. Nesse sentido não era uma figura repulsiva, mas temos nele o ditador brutal, com toda a natureza repressiva do seu regime. Não ignoro o terror desse regime, mas não se pode dividir Estaline: o ditador, o leitor, o jovem. Era só um”, parece concluir, para depois acrescentar: “O mal que fez foi em função da sua ideologia. Eu explico-o enquanto personalidade política guiada pela política. A sua subjectividade é formada pelo seu compromisso exterior enquanto actor político. É uma personalidade política construída a partir do exterior.”

No livro, surge a génese dessa ideia, a da construção do leitor que gerou o pensador que persegue um ideal. “A vista da sua biblioteca é a de uma janela interior que dá para o exterior. Ao acompanharmos a forma como Estaline lia livros, é-nos possível vislumbrar o mundo através dos seus olhos. Talvez não consigamos espreitar para dentro da sua alma, mas é-nos dada a possibilidade de usar os seus óculos”, lê-se numas das passagens mais literárias de um livro escrito numa linguagem clara, “jornalística”, como a define Geoffrey Roberts, socorrendo-se de muita bibliografia, testemunhos de quem o conheceu, estudou, das próprias anotações e discursos de Josef Estaline e de muitos autores que o antigo líder soviético leu ou terá lido. Todo esse cuidado existe, como sempre faz questão de notar Roberts, porque permanece muito por saber acerca deste “leitor” e é fácil escorregar em especulações e “mexericos”.

Desde a violência do pai na infância, ao suicídio da segunda mulher, a relação com a Geórgia onde nasceu, a religiosidade. Outra sombra é a que ficou quando a própria biblioteca que foi desmantelada logo após a sua morte e os livros dispersaram-se. “Após a morte de Estaline, apenas os livros que continham as suas pometki [marcas ou anotações] ou outros elementos identificadores ficaram conservados nos arquivos. Os restantes dispersaram-se e foram parar a outras bibliotecas”, conta Roberts. Acontecia também Estaline levar livros de outras bibliotecas para a sua, anotá-los e não os devolver. Um dos seus colaboradores queixa-se de que quando lhe emprestava um livro esse livro chegava-lhe com as marcas de Estaline, quase sempre a gordura das suas mãos.


Geoffrey Roberts, especialista em diplomacia soviética e russa, comentador, professor de História Moderna na Universidade de Cork, na Irlanda DR

As marcas de Estaline, o leitor, parecem tão esquivas quanto muitos dos detalhes da sua biografia. Mas o que resta e está identificado foi objecto de digitalização por parte da Universidade de Yale. Não mais do que 400 documentos a partir dos quais se reconstitui a relação de um homem com a palavra escrita. Literária, histórica, política, filosófica, de estratégia militar, económica, artística. E que começou cedo, quando estudava numa escola pertencente a uma igreja, e mais tarde num seminário em Tbilisi, na Geórgia, de onde deveria ter saído padre. Não aconteceu. Mas nesse percurso, o primeiro dos livros, e o mais lido e sublinhado, terá sido a Bíblia, até que na adolescência encontrou “uma literatura alternativa àquela que lhe era prescrita na escola, em particular os clássicos das literaturas georgiana e russa”, como narra Roberts. Isso levou-o a escrever poesia patriota com o pseudónimo Soselo. Parecia a trajectória natural de “um rato de biblioteca”.

O fervor

“Nascido em 1878, Estaline ingressou na escola eclesiástica de Gori em 1888 (…) De acordo com a mãe, Keke, Soso era um bom menino que ‘estudava muito, estava sempre a ler e a falar, a tentar descobrir tudo’.” Além disso, conta que “era muito crente” e “ia a todas as missas”. Mas a infância continua a ser uma das épocas mais desconhecidas da vida de Estaline, então chamado pelo diminutivo Soso. Consegue-se, no entanto, detectar o leitor, a tal curiosidade e um fervor que transitou da fé religiosa para a crença política, como nos diz agora Roberts.

Não era um grande intelectual, mas era interessado e interessante. Nesse sentido não era uma figura repulsiva, mas temos nele o ditador brutal, com a natureza repressiva do seu regime. Não ignoro o terror, mas não se pode dividir Estaline: o ditador, o leitor, o jovem. Era só um
 Geoffrey Roberts

“Assumo que terá passado muito tempo a ler a Bíblia. Duvido que tenha lido outro livro de forma tão intensa. Não conheço os detalhes acerca de como terá lido a Bíblia, não há cópias sobreviventes. É apenas uma conclusão razoável a que me permito chegar. Há muita gente que acha que se manteve secretamente cristão, ou influenciado pela religião. Contesto essa ideia. Ele rebela-se contra a igreja quando era adolescente e é o fim da sua ligação pessoal com as ideias religiosas, mas não necessariamente com a sensibilidade religiosa. Ele não era apenas um intelectual, mas um intelectual cheio de emoção e isso explica o modo como transformava ideias em prática. Mas de onde vem esse aspecto de Estaline enquanto intelectual fervoroso? Nem todos os intelectuais são assim. Acho que vem da sua educação cristã, da sua sensibilidade religiosa.”

Esta ideia não vem desenvolvida no livro, mas Roberts admite incluí-la numa segunda edição. “Até à adolescência ele estava emocionalmente ligado à religião cristã. Era uma ligação emocional e essa emoção irá manter-se ao longo da sua vida. Nesse sentido há uma continuidade na ligação emocional às suas ideias. Talvez seja a grande continuidade na vida de Estaline, essa sensibilidade que começa quando era um rapaz cristão. Estaline é o mesmo aos 70 anos.”


O esquema de classificação da biblioteca de Estaline, escrito à mão pelo próprio DR

E fê-lo acumular livros que por sua vez lhe alimentavam o fervor, lhe iam dando argumentos ou serviam para que construísse um pensamento sobre o mundo que olhava, por seu turno, através dos olhos de Marx, Lenine e Engels, os autores que mais leu e lhe serviram de alicerce. Também Trótski, Rosa Luxemburgo, Eduard Bernstein, Keynes, John Hobson, Upton Sinclair, John Reed, Adam Smith. Todos os estrangeiros traduzidos para russo, a única língua que dominava além do georgiano natal. Era uma biblioteca sobretudo de História e de Ciência Política, mas havia ficção. Os clássicos russos, claro. “Estaline lia literatura por simples ócio, prazer e edificação”, escreve Roberts no início do sexto capítulo, onde desenvolve em particular a relação do ditador com a literatura soviética. Antes, dá um retrato mais abrangente: “Em jovem, o seu primeiro amor foi a poesia, e os seus primeiros escritos publicados foram poemas patrióticos. A ficção radical conduziu o jovem Estaline à causa revolucionária. À semelhança de Marx e Lenine, valorizava o papel edificante dos clássicos, e rapidamente compreendeu o poder de mobilização do teatro e do cinema. Estaline escreveu famosamente os escritores como ‘engenheiros da alma humana’. Para ele, a literatura era um meio de conquistar não só os corações, mas também as mentes.”

Ou seja, Estaline tinha uma ideia muito clara acerca do papel dos escritores numa sociedade socialista. A frase “engenheiros da alma humana” surge muitas vezes sublinhada ao longo do livro, mas Roberts tem uma tese em relação a isso: “Acho que é uma frase da qual mais tarde se arrepende. O projecto bolchevique não passava apenas por mudar as vidas das pessoas, ou as suas ideias, mas também por lhes mudar o inconsciente, a sua natureza humana. A ideia de que as pessoas transformam a sua humanidade através da prática e os escritores podiam ajudar essa transformação, iluminando-a de várias maneiras por iluminarem o que se está a passar. As almas humanas são formadas pela prática, mas os escritores podem ter um papel nessa formação e no desenrolar do processo. Nesse sentido, o papel dos escritores é o de ajudar o projecto socialista; é contribuir para a realização da ideologia socialista.”


 
Este livro talvez seja o do Estaline mais íntimo, mais espontâneo, em muitos sentidos o mais velado, diz o autor Hulton-Deutsch Collection/CORBIS/Corbis via Getty Image

Escreve Roberts: “A construção da primeira sociedade socialista do mundo inteiro era, para ele, um projecto que tanto tinha de intelectual como de prático. A teoria e a estratégia eram tão importantes quanto o detalhe burocrático. Enquanto chefe do partido, Estaline era inundado de relatórios informativos, mas acontecia com frequência serem as suas leituras extracurriculares a orientar as suas respostas aos desafios de construir e defender o socialismo soviético.” E pouco depois faz uma ponte com a história mais recente: “Nenhum líder soviético pós-Estaline se revelou o intelectual que ele era, mas em maior ou menor grau todos eles partilharam do seu amor pela leitura, tal como milhões de compatriotas seus.”

Entre os favoritos de Estaline estão Gógol, Púshkin, Saltykov-Shchedrin, Tolstói, Maiakovski. E os estrangeiros. Flaubert, com Salommbô; quase aprende inglês para ler Shakespeare no original; e gosta de Cervantes, Schiller, Charles Dickens, Anatole France, Heine, Balzac, Hugo, Guy de Maupassant. Sobre Almas Mortas, de Gógol, terá dito: “… a verdade artística de Almas Mortas, de Gógol, teve um enorme impacto em sucessivas gerações da elite intelectual revolucionária. […] a mundividência dos escritores não deve ser confundida com o impacto das obras nos leitores”. Outra afirmação de Estaline: “Tolstói, Cervantes e Shakespeare não eram mestres da dialética, mas isso não os impediu de serem grandes artistas.” A admiração por Dostoiévski era menor. Não considerava que apelasse à acção. Teve uma relação próxima com Mikhail Bulgákov, tinha em Máximo Górki um aliado, mas o seu autor favorito era Anton Tchékov.

Ele não era apenas um intelectual, mas um intelectual cheio de emoção e isso explica o modo como transformava ideias em prática. Mas de onde vem esse aspecto de intelectual fervoroso? Acho que vem da sua educação cristã, da sua sensibilidade religiosa Geoffrey Roberts

Voltamos à conversa com Geoffrey Roberts: “Estaline é um leitor que aprende; ele lê para aprender e está preparado para aprender de qualquer pessoa, mesmo dos seus piores inimigos. Claro que pode expressar desdém por algumas ideias, contestá-las, ridicularizá-las. Muitas vezes põe ah-ah-ah na margem. Noutras põe um NB em relação a um ponto de interesse ou uma informação. E na literatura tem muitas conversas onde expressa a ideia de que o seu dramaturgo preferido é Tchékhov porque em Tchékhov as personagens não são a preto e branco; são cinzentas, são humanas. Ele diz isso e é isso que procura. E que não haja apenas heróis e vilãos e isso inclui os seus inimigos. Há muitos exemplos em que ele mostra partes positivas dos seus inimigos. Isso torna o retrato das pessoas mais realista e mais convincente.”

Sobre Trótski, antes uma referência, mais tarde um alvo a abater, declarou: “Trotski era um inimigo, mas era uma pessoa capaz, e sem dúvida que deveria ser retratado como um inimigo com características negativas, mas também como alguém que tem atributos positivos. […] Precisamos de autenticidade se queremos retratar o inimigo na sua plenitude.” Geoffrey Roberts lembra estas palavras proferidas poucos meses depois do assassinato de Tróstki a mando de Estaline, em Agosto de 1940. “Estranho, não é?”

Em A Biblioteca de Estaline, as várias facetas de Josef Estaline vão sendo apresentadas, mostradas através de citações, documentos, os tais testemunhos de quem conviveu de perto com ele. “Uma das coisas que tento fazer no livro é apresentar material e dizer: o que acha disto? Estaline também não era a preto e branco”, justifica Geoffrey Roberts que não hesita na resposta à pergunta: este livro, o modo como ele se relacionava com a literatura, com a arte, não humaniza Estaline? “Humaniza, sim. Claro que há um perigo nisso. Por mais que se escreva sobre o terror de Estaline e se dê informações sobre repressão, o ditador, ao humanizar Estaline podemos perder de vista a desumanidade do seu regime, do papel das suas políticas. É esse o perigo. Mas também ao tentar encontrar uma explicação para ter feito o que fez. Isso para mim não estava tão claro antes de escrever o livro: a sua ligação emocional, o compromisso emocional à sua causa que lhe permitiu justificar a si mesmo a violência brutal que impôs aos outros, os meios violentos que usou para perseguir a sua visão idealista e utópica do comunismo. E aprendemos que Estaline era, sem sombra de dúvida, um socialista, marxista e comunista muito comprometido; que a sua ideologia, as suas crenças, eram autênticas. E que era um leitor muito activo.”


 Rabiscos de Estaline na contracapa de Ivan o Terrível, a peça de Aleksey Tolstoy, em que se destaca, como em outros livros da sua biblioteca, a palavra “professor” DR

De todo o tipo de livros, como se vê pela forma como organizou a sua biblioteca, uma longa lista com a divisão por temas enviada à sua assistente, com volumes espalhados por três espaços, duas datchas e o apartamento no Kremlin a partir de onde lia, redigia documentos e discursos, editava muitos outros, incluindo livros, com tal competência que lhe chamaram editor-chefe da URSS. “Se havia alguma coisa de que Estaline gostava tanto de fazer quanto de ler, era editar. As marcas a lápis vermelho ou azul que deixava nos documentos eram tão familiares aos olhos dos funcionários soviéticos quanto a cara dele”, conta Geoffrey Roberts no retrato que vai fazendo em A Biblioteca de Estaline. E ao Ípsilon refere que esse intelectual é o lado mais estável da vida do ditador, aquele que apresenta uma maior continuidade, e, de algum modo, o que alimentou toda a sua actividade política. Na introdução, a propósito das anotações que Estaline foi deixando em livros, documentos, periódicos, escreve que “revelaram que Estaline era um intelectual sério que valorizava as ideias na mesma medida em que valorizava o poder. Um verdadeiro crente no poder das palavras, lia não só para aprender, mas também para alcançar uma consciência comunista mais elevada, vista como fulcral para os objectivos utópicos do socialismo soviético.”
Estaline e Putin

Publicado originalmente no início de 2022, pouco antes de a Rússia ter invadido a Ucrânia, A Biblioteca de Estaline chega a Portugal um ano depois. “Estou contente com o facto de ter saído antes do início da guerra. Foi pouco antes. As críticas ainda não faziam referência à guerra. Tive sorte.” Agora é impossível não estabelecer paralelos entre os dois líderes: Estaline e Putin. Roberts quer ter cuidado com as palavras. “A resposta que posso dar é um pouco cambaleante, escorregadia. Posso fazer uma piada estranha, qualquer coisa do género: ‘Putin está a fazer Estaline parecer bom’.” Faz uma pausa a testar a reacção que causou: “Isto é uma piada!” E desenvolve o pensamento: “O que se pode dizer é que Estaline não se envolveria neste tipo de guerra, com a Ucrânia. Vivo noite e dia com a guerra da Ucrânia, estou envolvido em debates públicos. Uma das coisas que a guerra traz — e é uma pergunta que tenho feito a mim mesmo e à qual tenho respondido —, é, claro, essa relação entre Estaline e Putin. Putin lê bastante; se olharmos para os seus discursos, há muitas referências históricas e literárias. Putin é um grande leitor e muito envolvido com ideias, mas não é um intelectual. Não acho que seja tão obcecado com ideias como era Estaline.”

A obsessão de Putin é com o poder? “Sim, um político pragmático. E tanto quanto posso ver, a grande continuidade entre Estaline e Putin é o compromisso com o multinacionalismo: serem líderes patrióticos de um estado multinacional. Putin vai buscar o seu multinacionalismo, o seu conceito de patriotismo, à sua experiência de vida no sistema soviético. Eles viam-se a liderar estados multinacionais e a serem os defensores desse estado. Putin continua isso e no contexto desta guerra actual mantém essa posição apesar das grandes pressões de extremistas do lado russo para tornar a guerra numa guerra étnica, russos contra os ucranianos, enfantizando a identidade da etnia russa. Não são apenas russos e ucranianos que estão a morrer nesta guerra, são tchéchenos, são muitas minorias nacionais que estão a morrer nesta guerra ao serviço dessa ideia de Putin.”

Estaline no seu escritório no Kremlin em 1938 DR


Morte na biblioteca?

Foi ali, no gabinete de onde Geoffrey Roberts nos fala que o livro A Biblioteca de Estaline ganhou forma. Como chegou à ideia deste livro? “Quer a história breve ou a longa?”, pergunta e, sem esperar reposta, começa a falar com a mesma velocidade e entusiasmo com que fala dos conteúdos aqui expostas, atropelando palavras, fazendo parágrafos com um “ok, ok”, e seguindo para o pensamento seguinte. Podia estar horas a falar, não fossem as interpelações. “Há muito tempo que comecei a estudar a História da União Soviética, desde a década de 70, quase há 50 anos. Parte da motivação foi política, a perspectiva socialista; eu estava interessado na experiência socialista na União Soviética, o socialismo soviético em que muitos países se inspiravam para pôr fim ao capitalismo e transformar as suas próprias sociedades. O interesse era político, mas eu queria dar um contributo académico. Não passava por fazer um julgamento político ou ter uma posição política, mas por um estudo sério baseado em evidências para tentar chegar a uma espécie de verdade objectiva sobre a natureza do socialismo soviético. Entretanto a minha vida mudou, a minha carreira mudou e cada vez mais a URSS se foi tornando um interesse académico.”

Publicou o primeiro livro em 1989, The Unholy Alliance: Stalin's Pact with Hitler. Era o 50º aniversário do pacto de não-agressão soviético-alemão de 1939. Esse livro foi parte do doutoramento na London School of Economics. “Os meus primeiros trabalhos académicos foram na área da história da diplomacia internacional nos anos 30 e, mais precisamente, o pacto soviético-alemão. A fase seguinte da minha pesquisa foi a Segunda Guerra Mundial, e aí a Grande Aliança entre a Grã-Bretanha, a União Soviética e os Estados Unidos. Seguiu-se o estudo da Grande Aliança do ponto de vista soviético, usando documentos soviéticos, e aí o acesso aos arquivos russos, uma vez que a União Soviética tinha colapsado. Esse projecto levou-me a projectos mais amplos. O estudo do mundo de Estaline, na guerra, mas também a sua liderança”, continua. O Stalin's Wars: From World War to Cold War, 1939-1953 (2006).

“Foi o primeiro livro onde me foquei verdadeiramente em Estaline e comecei a querer escrever um livro mais amplo, a sua vida e a sua carreira, mas não queria escrever uma biografia. Em parte porque há muitas biografias de Estaline e depois porque parecia uma tarefa gigantesca. Levaria uma década. Eu queria escrever um livro sobre Estaline, mas não queria gastar dez anos nisso.”

A oportunidade chegou quando a colecção pessoal de livros do ditador ficou acessível. Ou o que restava dela. A condenação de Estaline em 1956 pelo líder seguinte, Krushev, levou à dispersão dessa colecção. O que sobreviveu ficou acessível na década de 90, e a Yale University Press levou para a frente o projecto de digitalizar esse arquivo pessoal, incluindo os livros da sua biblioteca. “Eu podia estudar Estaline enquanto leitor, a sua colecção, o modo como coleccionava, o tipo de anotações que fazia nos livros e podia fazê-lo a partir de casa. Tudo estava acessível on-line. Parecia o projecto ideal e podia escolher em que sentido o levar. Havia dois problemas: percebi que apenas um terço desses livros estavam digitalizados naquela altura. Eu teria de ir ver os outros dois terços nos arquivos de Moscovo. Isso atrasou o projecto. O outro problema era eu não saber como escrever este livro. Demorei muito para encontrar.”

Achou que ia demorar uns três ou quatro anos. Acabou por demorar dez. “Acabei por fazer o trabalho de fôlego que tinha evitado. Sim, o livro é sobre a biblioteca de Estaline, o ditador e os seus livros, mas também é sobre Estaline, o intelectual. É um retrato intelectual de Estaline. E é também a biografia que não quis escrever. Começou no Verão de 2019, terminou em Outubro de 2021. Era o estudo de Estaline enquanto leitor.” A ideia era publicá-lo no início de 2023, ou seja, agora. No 70º aniversário da morte de Estaline. “Mas acabei muito antes porque aconteceu o confinamento. Fechado em casa, neste escritório, sem saber para onde ir, escrevi. Escrevi como um jornalista.” Fala de Howard Evans. “Ele dizia que a boa escrita era de uma economia vívida. Condensar. A minha mulher foi jornalista, era correspondente do Guardian e ela edita tudo o que escrevo.”

A tradução portuguesa, da autoria do escritor Frederico Pedreira, numa edição da Zigurate, é a primeira de outras já em curso. São 380 páginas, quase 50 com notas e a bibliografia extensa em que se apoiou. Incluindo “bons livros” que já se escreveram dando uma dimensão intelectual de Estaline. The Political Thought of Josef Stalin, de Erick van Ree, publicado há vinte anos; Stalin's World, de James Harris e Sarah Davis. Biografias mais recentes, como a de Steven Kotkin, Stalin: Paradoxes of Power. Mas nesses trabalhos, a biblioteca era um tópico secundário. Estavam sobretudo interessados na escrita de Estaline, nos discursos. “Este livro talvez seja o do Estaline mais íntimo, mais espontâneo, em muitos sentidos o mais velado. Uma das coisas novas a que cheguei a partir deste novo material foi à ligação emocional com as ideias. Isso é que é o mais novo, o que esse material nos diz sobre Estaline”, sintetiza, referindo outra dificuldade: desvendar a caligrafia do ditador que leria entre 500 a 300 páginas por dia. Para Roberts esse é só mais um dos mitos acerca do homem que terá colapsado na sua biblioteca. Não é realista. “Certamente lia muito depressa, mas não teria tempo para isso. Mas a maior parte do dia era o que fazia, sentava-se no gabinete e lia, algumas vezes com prazer, outras vezes, não. E isso vê-se na forma como anotava os documentos. Muitas vezes bastante zangado, mas sempre com paixão, com interesse. Mas a maior parte da leitura era de documentos. Os livros eram importantes, mas eram secundários quanto ao tempo que lhes dedicava. Apesar de tudo o que ia acontecendo no mundo, encontrava tempo para as suas leituras privadas, extra-curricular, para editar um livro, para comentar um livro.”

Quanto à “morte” na biblioteca, “tanto quanto se pode dizer, terá sido mais ou menos assim. Há muitas versões acerca das suas últimas horas, e muitas entram em conflito, mas a minha opinião é que ele se retirou para a sua biblioteca e aí morreu, ou quase.” Morreria quatro dias depois desse colapso, num hospital. “É qualquer coisa de bastante poética, mas é assim a minha leitura do que terá acontecido.”

Faltava uma pergunta, mas Geoffrey Roberts antecipa-se: “Sabe, quando me perguntam qual foi a maior surpresa que tive ao longo desta pesquisa, digo que foi descobrir que Josef Estaline tinha uma biblioteca igual à minha”. Ri com o efeito das suas palavras já tantas vezes testado noutras conversas, com outros jornalistas. “Eu tinha uma biblioteca marxista, não exactamente os mesmos livros, mas os mesmos tópicos, os mesmos interesses.”

E como lidou com o facto de ter uma biblioteca igual a um ditador brutal? “Ahaha! Não podemos culpar os livros pela brutalidade do ditador. A minha biblioteca tinha muitos títulos ligados ao marxismo humanista. Era a principal diferença. Mas lemos o mesmo tipo de coisas, e isso facilitou-me este projecto, porque quando estou a ver os livros que ele anotou, já sei do que falam, não tenho de gastar imenso tempo a tentar entender o texto original, porque o conheço o original, já o li. Mas Estaline marcava os livros da mesma maneira que eu.”

Estaline, os dias do fim

Narrativa dos últimos dias da vida de Estaline. Um livro de síntese e vulgarização, mais do que o fruto de uma investigação histórica aprofundada ou original.

António Araújo 2 de Fevereiro de 2017

 
Uma reconstituição minuto a minuto de uma morte sobre a qual paira – e sempre pairará – uma nuvem de mistério e treva FOTO: DR

São há muito conhecidas as circunstâncias bizarras da morte de Estaline, ocorrida ao início da manhã de 5 de Março de 1953. Na sua datcha de Kuntsevo, nos arredores de Moscovo, o generalíssimo agonizou longas horas, vitimado por um AVC, esvaindo-se na sua própria urina antes que alguém se atravesse sequer a chamar um médico. E quando, por fim, os clínicos acorreram ao moribundo, tremiam de medo, a ponto de serem incapazes de lhe tirar a camisa para o examinarem. Um dentista extraiu-lhe a dentadura postiça mas, apavorado, deixou-a cair ao chão, sob os gritos de Lavrentiy Béria. Horas antes, e apesar de estranharem a sua prolongada ausência, nenhum dos guardas ousou chamá-lo, batendo à porta do quarto onde dormia. A pretexto de lhe levar o correio oficial do Kremlin, foi uma velha criada da datcha a escolhida para a espinhosa missão de acordar o Pai dos Povos, que jazia imóvel no chão, incapaz de proferir uma palavra.


A morte de Estaline prestou-se, naturalmente, a inúmeras teorias da conspiração, em especial no decurso da Guerra Fria (recorde-se, por ex., o documentário The Plot to Kill Stalin, emitido pela CBS em Setembro de 1958). Mesmo em obras saídas há poucos anos, como A Corte do Czar Vermelho, Simon Sebag Montefiore coloca novas hipóteses, dizendo en passant que, de acordo com investigações recentes (as quais não especifica, infelizmente), não é de excluir a possibilidade de Béria ter envenenado Estaline, “temperando” o amado vinho da sua Geórgia natal com uma droga anticoagulante, a varafina, com o fito de provocar ou acelerar um processo de embolia. Sebag Montefiore refere inclusivamente que, além de Béria, Nikita Khrushchev, Gueorgui Malenkov e Nikolái Bulganine – no fundo, os “quatro” que à época formavam a corte do czar vermelho – podem ter estado a par e sido cúmplices do plano homicida urdido por Béria. Trata-se de uma hipótese ventilada em diversas biografias de Estaline (cf., por ex., Robert Service, Stalin. A biography, 2004, pp. 587-588) ou narrativas memorialísticas (por ex., a do general Nikolai Vlasik, o chefe da segurança pessoal de Estaline, destituído em 1952), pelo que a “revelação” feita por Montefiore não é propriamente nova ou sensacional. De resto, muitos outros autores têm, ao invés, contestado a tese de assassinato ou avançado sérias reservas quanto à sua ocorrência (cf., por ex., Ronald Hingley, Joseph Stalin. Man & Legend, 1974, pp. 419ss).


É sobre os derradeiros momentos da vida do líder soviético que se debruça Os Últimos Dias de Estaline, de Joshua Rubenstein. Antigo funcionário da Amnistia Internacional, onde trabalhou de 1975 a 2012, Rubenstein é um “académico independente”, como se classifica no seu curriculum. Tem publicado diversas obras sobre a Rússia soviética, com trabalhos sobre Ilya Ehrenburg ou Leon Trostky, mas o fulcro dos seus interesses reside no estudo do antissemitismo e do extermínio dos judeus no Leste europeu. Não admira, pois, que dedique muitas páginas deste livro à chamada “Conspiração dos Médicos”, quando o antissemitismo do ditador e das elites soviéticas – e, note-se, de uma parcela significativa do povo russo – foi especialmente evidente.

Ao contrário do que o título poderia sugerir, o livro de Rubenstein não se cinge a descrever os últimos instantes da existência de Iossef Vissarionovitch Djugashvili. A morte de Estaline é enquadrada nos tempos que a precederam, quando novas purgas trouxeram a ameaça de um regresso ao Grande Terror dos anos trinta, e na luta pela sucessão do “czar vermelho”, aberta quando o cadáver ainda mal arrefecera. Inexplicavelmente, e apesar de se narrar a prisão e o fuzilamento de Béria, o livro não descreve o processo que, ditando o afastamento de Malenkov (o sucessor mais bem posicionado à partida) acabou por conduzir Khrushchev à liderança da URSS.Por outro lado, ao dizer que entre o processo de Béria e os levantamentos populares na Alemanha de Leste houve uma “coincidência da História” (pág. 255), Rubenstein oferece uma explicação simplista da realidade, que aliás infirma logo na página seguinte, onde a ideia de uma convergência fortuita de acontecimentos é desmentida atendendo às posições que Béria tomara quanto ao modo como deveria ser tratada a questão leste-alemã, abrindo-se caminho, inclusive, a uma possível reunificação das duas Alemanhas (um aspecto abordado por Pável Sudoplátov nas suas memórias, Special Tasks, 1994, estranhamente não citadas por Rubenstein na bibliografia final deste livro).

Ao optar por fornecer uma visão panorâmica da “Rússia de Estaline”, antes e depois da sua morte, em detrimento de uma descrição pormenorizada da lenta agonia na datcha de Kuntsevo, o livro de Rubenstein fica aquém de uma obra com o mesmíssimo título publicada entre nós há vários anos. Em Os Últimos Dias de Estaline, saído com a chancela da Ulisseia em 1974, Georges Bortoli descreve as tenebrosas, mas fascinantes, cenas shakesperianas que envolveram a morte do déspota soviético. Bortoli fê-lo, é certo, sem o acesso a fontes arquivísticas e até bibliográficas de que hoje dispomos (com destaque para a biografia de referência da autoria de Dmitri Volkogonov, Stalin. Triumph & Tragedy, 1991, que, aliás, dedica poucas páginas à morte de Estaline). No entanto, o núcleo central de fontes directas sobre a morte de Estaline – os testemunhos da filha Svetlana e de Nikita Khrushchev – encontra-se, por assim dizer, estabilizado e consolidado de há muito, pelo que, apesar das eternas “novidades”, a obra de Bortoli, entre tantas outras, é tão ou mais rica do que o presente livro de Rubenstein; sobretudo para os que, privilegiando o lado humano e pessoal, pretendam conhecer de perto os sinistros momentos terminais de Koba. Momentos em que, paradoxalmente, o líder soviético acabaria por ser vítima da sua obsessão paranóica com a segurança. Explicando melhor: mesmo que não seja líquido que uma intervenção médica mais célere lhe tivesse salvado a vida, o facto de os melhores clínicos de Moscovo se encontrarem presos na Lubyanka, na sequência da Conspiração dos Médicos, e, mais decisivamente ainda, o facto de a ajuda ter demorado cerca de doze horas a chegar, por paralisia temerosa ou intenção homicida dos seus próximos, são elementos que indubitavelmente precipitaram o desfecho que a filha de Estaline descreve de forma arrepiante. De acordo com Svetlana Alliluyeva, o pai, semiparalisado e incapaz de falar, lançou sobre os que o rodeavam no leito da morte um olhar final, fulgurante e terrível, no estertor do ódio; depois, antes de expirar, levantou a mão esquerda aos céus, num gesto ameaçador, cobrindo todos com uma praga e uma maldição eternas.

As memórias de Svetlana são, como se sabe, uma das principais fontes sobre as últimas horas de Estaline. No seu livro, Rubenstein utiliza-as profusamente. No entanto, há elementos constantes das memórias de Svetlana Alliluyeva que Rubenstein contradiz, sem que nos explique porquê – o que inculca no leitor a impressão de que não terá, porventura, feito uma utilização correcta da bibliografia, lapso tanto mais grave quanto se trata de uma fonte tida como credível, a que todos os biógrafos de Estaline recorrem. Assim – e, ao contrário do que possa parecer, este não é um pormenor irrelevante –, Svetlana Alliluyeva afirma que o pai não abandonara a prática dos banhos de vapor. Além de se automedicar com gotas de iodo dissolvidas em água, “vinte e quatro horas antes da congestão fatal ia ao balneário que existia junto da dacha e tomava um banho de vapor como, desde a sua estadia na Sibéria, sempre fizera. Nenhum médico permitiria uma coisa dessas, mas ele não tinha médico algum” (Vinte Cartas a um Amigo. As memórias da filha de Estaline, 1967, pág. 283). Vários biógrafos salientam igualmente esse ponto, que possivelmente terá agravado a hipertensão de Estaline e contribuído para o desenlace fatal. Entre outros que destacam essa questão aparentemente lateral e menor (por ex., Robert Conquest, Stalin. Breaker of nations, 1991, pág. 311), diz Simon Sebag Montefiore: “é possível que, nessa tarde, tenha tomado um banho de vapor. À medida que envelhecia, o calor alivia-lhe as dores da artrite. Mas o Professor Vinográdov proibira-lhe as banyas por serem prejudiciais à hipertensão. Béria dissera-lhe que não era obrigado a acreditar nos médicos. Estaline atirou as cautelas às urtigas” (cf. Estaline. A Corte do Czar Vermelho, 2006, pág. 622).

Pelo contrário, Joshua Rubenstein afirma que, seguindo o conselho de Vinográdov, Estaline não só deixara de fumar no início de 1952, o que é verdade, como abandonara para sempre a prática os banhos de vapor – “também deixara de tomar banhos de vapor: permanecer sentado numa banya só lhe aumentava a tensão arterial” (pág. 17).

Aquilo que parece ser uma petite histoire, um detalhe nosográfico, não o é, nem pode ser, no contexto de uma reconstituição minuto a minuto de uma morte sobre a qual paira – e sempre pairará – uma nuvem de mistério e treva. Aliás, esse detalhe é significativo quanto ao uso de fontes por parte de Rubenstein, que, por exemplo, utiliza com pouco critério as memórias de Khrushchev, descartando o prudente conselho, fornecido por Montefiore e outros, segundo o qual «nem Khrushchev nem Kaganovich são testemunhas fidedignas quando se trata dos seus próprios papéis» (ob. cit., pág. 621). Por outro lado – e cometendo o mesmo “pecado” de Dmitri Volkogonov, na biografia atrás citada –, sobrevaloriza o depoimento de Alekséi Rýbin, um segurança do Teatro Bolshoi que afirmou ter falado com vários elementos da guarda pessoal de Estaline presentes em Kuntsevo. Chega, aliás, ao ponto de confrontar o testemunho indirecto, de “ouvir dizer”, de Rýbin com o relato presencial de Khrushchev, dizendo que um e outro não são coincidentes quando, na substância, não há discrepâncias de fundo entre ambos. Mais ainda: enquanto Dmitri Volkogonov contactou directamente Alekséi Rýbin, obtendo o seu testemunho em primeira mão, Joshua Rubenstein baseia-se num artigo publicado numa revista pelo ex-segurança do Bolshoi e guarda-costas de Estaline, que, insiste-se, não se encontrava sequer na datcha de Kuntsevo em Março de 1953.

Devemos ter presente que a morte de Estaline sempre foi um território povoado de boatos e efabulações, o que implica um enorme cuidado na utilização das (escassas) fontes disponíveis. Recorde-se, a este propósito, que um médico de Berlim Oeste, Fritz Heese, sempre asseverou até à morte (suicidou-se em 1959) que na noite de 4 para 5 de Março de 1953 foi chamado de urgência pelas autoridades soviéticas para se pronunciar sobre o estado de saúde do moribundo de Moscovo, uma história cuja autenticidade é mais do que duvidosa, como nota Georges Bortoli (ob. cit., pág. 193). Ainda que não utilize fontes suspeitas deste género, Joshua Rubenstein recorre ao que já era sabido, baseando-se em informações secundárias, nomeadamente obras publicadas no Ocidente e bastante conhecidas (a excepção mais relevante é uma antologia documental sobre o processo de Béria editada por Vladimir Khaustov em 2012 e que permanece por traduzir do russo). Ainda assim, este livro apresenta ao leitor uma panorâmica cativante dos tempos finais do consulado sangrento de Josef Estaline, sobretudo em termos geopolíticos e na perspectiva dos corredores do poder de Washington. As exéquias fúnebres são objecto de uma descrição apaixonante, pormenorizada e elucidativa, na linha do extenso relato feito por Oleg Khlevniuk em Stalin. New Biography of a Dictator, 2015, pp. 317ss.

No dia dos funerais solenes, milhares de pessoas afluíram ao centro de Moscovo. Muitos morreram entre a multidão lacrimejante. Ao verem várias pessoas com as cabeças esmagadas contra o flanco de uma coluna de camiões, o poeta Ievtushénko e alguns companheiros imploraram aos soldados para que afastassem dali os blindados, abrindo espaço para a turba passar, no tropel da dor. Os militares recusaram, mesmo vendo os mortos que tombavam à sua frente. O motivo era simples, terrivelmente singelo: não tinham recebido ordens para afastar os camiões. Por isso, nada fizeram, com temor das represálias dos seus superiores. Estaline morrera, o estalinismo não.


Ainda existe no mundo um clube de fãs do Estaline

19 de Dezembro de 2016


NAZI STEFANISHVILI, 73 ANOS, ECONOMISTA REFORMADA, VIVE EM TBILISI

VASILI SIDAMONIDZE, 70 ANOS, CONSTRUTOR CIVIL REFORMADO, HABITANDE DE GORI

USHANGI DAVITASHVILI, 86, MOTORISTA REFORMADO, VIVE EM TBILISI

SHALVA DIDEBASHVILI, 78 ANOS, POSA PARA O RETRATO NA SUA CASA EM MTSKHETA


NATIA BABUNASHVILI, 40 ANOS, É DESEMPREGADA E MÃE DE DOIS FILHOS QUE SEGUEM A SUA ORIENTAÇÃO POLÍTICA

SULIKO BERDZENISHVILI, 82, EX-TRABALHADOR DA COMPANHIA FERROVIÁRIA, VIVE EM TBILISI

LEVAN GONGADZE, 87, VIVE EM TBILISI

OLGA DANELIA, 62 ANOS, CONTABILISTA REFORMADA, VIVE EM RUSTAVI

GURAM KARDANAKHISHVILI, 86 ANOS, ENGENHEIRO REFORMADO, VIVE EM TBILISI

LIBRARIAN TSITSINO TSINTSADZE, 77 ANOS, VIVE EM TBILISI

JIULI SIKMASHVILI, 77 ANOS (AO CENTRO), POSA NA SEDE DO PARTIDO COMUNISTA EM TBILISI

OTAR CHIGLADZE, 82, ECONOMISTA REFORMADO, VIVE EM TBILISI

Josef Estaline nasceu em Gori, na Geórgia, onde um séquito lhe permanece incondicionalmente fiel. Já são poucos os estalinistas, mas são convictos, ferverosos. "Estaline simboliza para mim o que Jesus Cristo simboliza para as pessoas religiosas", disse à Reuters Shalva Didebashvili, de 78 anos. A relação da Geórgia com o seu passado soviético é invariavelmente um ponto de discórdia entre georgianos. Uns são saudosos desse passado - ligado à prosperidade económica de uma minoria - e outros vêem-no apenas como um contratempo histórico. Apesar da mão de ferro com que Stalin governou a União Soviética - governação que ficou marcada por repressão massiva, pelos castigos em campos de trabalho siberianos e pela fome - a idosa Stefanishvili, economista reformada, vê no ditador um homem exemplar. "Todas as manhãs vou ao quarto [onde guardo toda a memorabilia] e dou os bons dias a Stalin... Estou presente em todas as ocasiões, nos aniversários de vida e de morte", conta à agência noticiosa. "Tenho pinturas, muitos livros sobre Estalin, bustos, jornais da época, souvenirs. A maioria das coisas comprei, mas muitas foram oferecidas; algumas foram mesmo encontradas no lixo." A maioria dos estalinistas georgianos pertencem ao partido comunista, um partido desprezado por parte dos jovens, que nutrem simpatia pela União Europeia e pela NATO. Por esse motivo, os indícios de que Gori foi a cidade natal de Estaline foram desaparecendo. Depois de 2011, dezenas de monumentos da era soviética foram retirados e as ruas foram rebaptizadas de forma a apagar os vestígios do comunismo. "Tento sempre estar presente nas comemorações do aniversário de Estaline, em Gori. Infelizmente, a maioria das pessoas não se junta a nós, mesmo que viva perto. Limitam-se a olhar-nos das suas janelas."