segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Cinco anos depois de Khashoggi, mundo estende o tapete vermelho ao ditador saudita


O príncipe que mandou matar Jamal Khashoggi está cada vez mais barricado no poder, enquanto se passeia imune pelo mundo a distribuir apertos de mão. Na Arábia Saudita, a repressão é cada vez maior.

Sofia Lorena
1 de Outubro de 2023

  
"Este miúdo é perigoso", escreveu Khashoggi a um amigo em 2017, quando Mohammed bin Salman passou a ser príncipe herdeiro, com 31 anos REUTERS

 Cinco anos depois de Khashoggi, mundo estende o tapete vermelho ao ditador saudita

“Foi um erro, foi doloroso”, disse há dias o príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, sobre o brutal assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, que a CIA e inúmeras organizações de direitos humanos o acusam de ter ordenado. A entrevista do líder de facto da Arábia Saudita à Fox foi como um fechar de ciclo, agora que a monarquia está de volta às prioridades da política externa de Washington, e chegou mesmo a tempo de se completarem cinco anos desde o crime que levou Joe Biden a tratá-lo como “pária”.

MBS (como é conhecido) não teve de esperar tanto para receber líderes mundiais em casa ou ser recebido e convidado para visitas de Estado. A horrenda morte do jornalista dissidente e exilado nos Estados Unidos, a 2 de Outubro de 2018, originou ondas de choque, mas a realidade impôs-se e os verdadeiros autores, morais e materiais (alguns dos condenados pela justiça saudita vivem num complexo governamental de luxo), não enfrentaram consequências.
 
O príncipe cumpriu uma espécie de exílio, curto, e começou a ser definitivamente recuperado por Emmanuel Macron, o primeiro dirigente ocidental a reunir-se com MBS, na cidade saudita de Gidá, depois da divulgação do relatório da CIA que confirma que o príncipe “aprovou uma operação em Istambul para capturar e matar” o jornalista. E foi também o Presidente francês a consolidar a sua reabilitação diplomática, em Julho do ano passado, quando fez de Paris a primeira capital europeia a recebê-lo desde o desmembramento de Khashoggi.
 
O mesmo Macron lhe estendeu pela segunda vez o tapete vermelho, em Junho. É possível que a excepção se torne regra muito em breve: ainda este ano, será a vez de o Reino Unido.

 
Entretanto, o Presidente Joe Biden teve de engolir as suas palavras – as do candidato Joe Biden, com a nação “pária”, e as do Presidente, que anunciara um “reajuste” na relação com o país aliado. Primeiro, no Verão passado, quando visitou o príncipe para tentar garantir um aumento na produção de petróleo e ajudar um mercado desestabilizado pela invasão da Ucrânia (o contrário do que MBS viria a fazer) e promover a normalização de relações entre Israel e a Arábia Saudita, um processo que experimenta agora um impulso inédito. “Todos os dias ficamos mais próximo”, disse MBS ao canal conservador norte-americano.
 
Em Gidá, o ano passado, Biden evitou um aperto de mão, substituindo-o por um toque de punhos ainda mais polémico. No início de Setembro, durante a cimeira do G20 celebrada na Índia, foi com naturalidade que Biden e MBS apertaram as mãos e conversaram em público.
 
A investigação turca permite-nos saber, e até ouvir, muitos pormenores do assassínio de Khashoggi, estrangulado assim que entrou no consulado saudita de Istambul, e depois esquartejado ali mesmo por uma equipa de agentes sauditas que viajou em aviões do Estado e se manteve em contacto com um conselheiro próximo de MBS.
 
Com o primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, a acusar o Governo indiano de envolvimento na morte de um líder sikh em Vancouver, alguns analistas defendem que foi a impunidade de MBS a contribuir para o aumento do assassínio de dissidentes no estrangeiro.
 
No caso de Khashoggi, a Turquia, em busca de parceiros de investimento, abdicou de fazer justiça e em 2022 suspendeu o julgamento dos 26 sauditas acusados. Em Junho, o ministro das Finanças do reino anunciou um acordo para depositar 5 mil milhões de dólares (4,7 mil milhões de dólares) no Banco central turco.

"Terrível paradoxo" 
 
Nos últimos cinco anos, MBS usou a repressão para cimentar o seu papel como líder todo-poderoso, com sucessivas condenações a dezenas de anos de cadeia de inofensivos críticos e o recurso à pena de morte a aumentar, ao mesmo tempo que lavava a imagem da Arábia Saudita investindo no turismo, contratando estrelas do futebol mundial e organizando mega-eventos desportivos e de entretenimento.
 
Em simultâneo, tem cumprido algumas promessas de abertura em relação às mulheres, que passaram, por exemplo, a poder conduzir – isto enquanto mantinha na prisão as sauditas que lutaram por esse direito.
 
“O que pensaria Jamal Khashoggi da Arábia Saudita de hoje?”, questiona nas páginas do jornal The Washington Post, onde o saudita era colunista, o seu amigo David Ignatius. “Ficaria seguramente enojado, mas não surpreendido, ao saber que o poder autocrático de MBS continua intocável”, escreve. Khashoggi, continua o editor do Post, também ficaria “estupefacto com os megaconcertos de rock” e “maravilhado por ver que a Arábia Saudita está a ponto de normalizar relações com Israel e de assinar um pacto de defesa com os EUA”.

“Este é o terrível paradoxo de MBS, como Khashoggi bem sabia. Ele é um autocrata modernizador, um pouco como Saddam Hussein era no Iraque”, nota Ignatius.
 
O jornalista e romancista norte-americano suspeita que “o que deixaria Khashoggi mais zangado é a crueldade gratuita de MBS”, que exemplifica com o caso de Sarah e Omar Aljabri, dois irmãos presos há mais de três anos simplesmente por serem filhos de um ex-chefe dos serviços secretos sauditas que “de forma bizarra passou para o topo da lista de inimigos de MBS”. Sarah, conta Ignatius, celebrou o seu 20.º aniversário num dos concertos no deserto promovidos pelo príncipe, poucos dias antes de desaparecer.


A história como nunca a (ou)vimos sobre a morte de Jamal Khashoggi
 
O documentário de Bryan Fogel consegue surpreender-nos com pormenores hediondos do assassínio do jornalista saudita e desarmar-nos com a nova vida que ele acreditava estar a construir.

Sofia Lorena 17 de Dezembro de 2021


Jamal Khashoggi e Hatice Cengiz num dos seus passeios por Istambul
 
O riso bem-disposto, o sorriso doce apaixonado, o anel que ofereceu à noiva, a poltrona reclinável que comprou para a casa nova. “Não consigo descrever como estava feliz”, diz Hatice Cengiz. Só por estas imagens já valeria a pena ver O Dissidente, o documentário de Bryan Fogel que reconstitui o assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, com estreia na televisão portuguesa esta sexta-feira (22h, no TVCine Edition). Cengiz é a noiva-viúva e haveremos de entrar com ela nessa “casa linda” onde deveriam ter morado depois do casamento.
 
O filme de Fogel é sobre a morte de Khashoggi mas devolve-lhe laivos de vida. Khashoggi tornou-se conhecido no mundo inteiro com o seu assassínio: para a maioria, nunca foi Jamal, o jornalista, marido, pai, irmão ou amigo; apenas o crítico que se auto-exilara e que pagou a oposição ao príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, com a pior das mortes, asfixiado e desmembrado no consulado saudita de Istambul, a cidade da noiva.

 
Foi a 2 de Outubro de 2018, dias antes de completar 60 anos, que Khashoggi se tornou símbolo da impunidade – já este ano, com a chegada de Joe Biden à Casa Branca, os Estados Unidos divulgaram um relatório da CIA onde se conclui que Bin Salman autorizou o assassínio. Mais de um ano antes, Khashoggi vira-se obrigado a deixar o seu país. A mulher teve de se divorciar e ele não voltou a poder contactar os filhos. Deixou a vida para trás e teve dificuldades em recomeçar.
 
O Dissidente fala-nos dessa nova vida e dos amigos que acompanharam Khashoggi, não só depois de ele sair de Riad, mas também nos anos anteriores, à medida que se afastava da família real e da linha oficial. Entusiasmado com as revoltas que em 2011 ficaram conhecidas como Primaveras Árabes, chocado com a forma como o seu país contribuiu para as esmagar, até constatar que esta Arábia Saudita não era reformável.

A história como nunca a ouvimos 
 
Antes de ser eleito, Biden prometera publicar o relatório que Donald Trump escondera. A sua eleição trazia outras promessas. “Tinha muita esperança que houvesse medidas significativas por parte da Administração Biden, mas quando o momento de agir chegou não houve. É como se a publicação do relatório que diz que Mohammed bin Salman ordenou o assassínio tivesse sido cerimonial”, lamenta Fogel, numa entrevista a partir de Los Angeles. “É o mundo em que vivemos, um mundo em que em relação a países com vastos recursos naturais, grandes interesses globais ou aliados políticos tudo se tolera.”
 
Fogel já deixou de acreditar em consequências. Resta-lhe saber “que aquele regime irá provavelmente pensar duas vezes antes de voltar a assassinar um jornalista num país estrangeiro, não por terem quaisquer remorsos, mas por causa da má imprensa que isso gerou”.
 
Os factos são suficientemente medonhos para dispensarem a estética “Missão Impossível” adoptada pelo realizador (vencedor do Óscar de Melhor Documentário pelo trabalho anterior, Ícaro), mas o objectivo de Fogel era “fazer um filme muito forte” e capaz de chegar a toda a gente. A estreia, no Festival de Sundance, na presença de Hillary Clinton, foi auspiciosa. Mas nem a Netflix, que distribuíra Ícaro, nem nenhuma outra grande plataforma de streaming mostraram interesse.
 
“A luta para encontrar um distribuidor diz-nos onde estamos enquanto sociedade. Estas empresas, de certa maneira, estão só a seguir o livro de instruções: dinheiro, investimento e as maquinações políticas destas relações acabam por ser mais importantes do que a vida de uma pessoa, independentemente da audácia do assassínio”, afirma Fogel. Uma “desilusão” a somar-se a uma estreia em tempo de pandemia e à consequente ausência de sessões ao vivo onde o filme pudesse gerar mais debate.
 
O jovem de quem Khashoggi era amigo e com o qual começara a colaborar acredita ter sido responsável pela sua morte. “Agora o jogo mudou. Já não és só um jornalista, és um dissidente”, disse Abdulaziz a Khashoggi quando este decidiu financiar o seu “exército de abelhas” para proteger a liberdade de expressão online das “moscas” mobilizadas pelo regime saudita. Abdulaziz, uma espécie de alter ego do jornalista assassinado, e um garante, ao mesmo tempo, da continuação do seu trabalho.