domingo, 30 de junho de 2013

Alimentar o AMOR, Miguel Esteves Cardoso

 

Alimentar o Amor

Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número da revista, ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o coração humano vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da inauguração, da primeira linha na página branca, da luz e do barulho das portas a abrir.
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos estas actividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a actividade de manter.
Em Portugal quase tudo se resume a começos e a encerramentos. Arranca-se com qualquer coisa, de qualquer maneira, com todo o aparato. À mínima comichão aparece uma «iniciativa», que depois não tem prosseguimento ou perseverança e cai no esquecimento. Nem damos pela morte.
É por isso que eu hoje respeito mais os continuadores que os criadores. Criadores não nos faltam. Chefes não nos faltam. Faltam-nos continuadores. Faltam-nos tenentes. Heróis não nos faltam. Valtam-nos guardiões.

É como no amor. A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma paixão. O esforço de fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas — sejam amores ou tradições, monumentos ou amizades — é o que distingue os seres humanos. O nascimento e a morte não têm valor — são os fados da animalidade. Procriar é bestial. O que é lindo é educar.
Estou um pouco farto de revolucionários. Sei do que falo porque eu próprio sou revolucionário. Como toda a gente. Mudo quando posso e, apesar dos meus princípios, não suporto a autoridade.

É tão fácil ser rebelde. Pica tão bem ser irreverente. Criar é tão giro. As pessoas adoram um gozão, um malcriado, um aventureiro. É o que eu sou. Estas crónicas provam-no. Mas queria que mostrassem também que não é isso que eu prezo e que não é só isso que eu sou.
Se eu fosse forte, seria um verdadeiro conservador. Mudar é um instinto animal. Conservar, porque vai contra a natureza, é que é humano. Gosto mais de quem desenterra do que de quem planta. Gosto mais do arqueólogo do que do arquitecto. Gosto de académicos, de coleccionadores, de bibliotecários, de antologistas, de jardineiros.

Percebo hoje a razão por que Auden disse que qualquer casamento duradoiro é mais apaixonante do que a mais acesa das paixões. Guardar é um trabalho custoso. As coisas têm uma tendência horrível para morrer. Salvá-las desse destino é a coisa mais bonita que se pode fazer. Haverá verbo mais bonito do que «salvaguardar»? É fácil uma pessoa bater com a porta, zangar-se e ir embora. O que é difícil é ficar. Isto ensinou-me o amor da minha vida, rapariga de esquerda, a mim, rapaz conservador. É por esta e por outras que eu lhe dedico este livro, que escrevi à sombra dela.
Preservar é defender a alma do ataque da matéria e da animalidade. Deixadas sozinhas, as coisas amarelecem, apodrecem e morrem. Não há nada mais fácil do que esquecer o que já não existe. Começar do zero, ao contrário do que sempre pretenderam todos os revolucionários do mundo, é gratuito. Faz com que não seja preciso estudar, aprender, respeitar, absorver, continuar. Criar é fácil. As obras de arte criam-se como as galinhas. O difícil é continuar.

Miguel Esteves Cardoso, in 'As Minhas Aventuras na República Portuguesa'


O "Norte" de Miguel Esteves Cardoso

O Norte é mais Português que Portugal. As minhotas são as raparigas mais bonitas do País. O Minho é a nossa província mais estragada e continua a ser a mais bela. As festas da Nossa Senhora da Agonia são as maiores e mais impressionantes que já se viram.

Viana do Castelo é uma cidade clara. Não esconde nada. Não há uma Viana secreta. Não há outra Viana do lado de lá. Em Viana do Castelo está tudo à vista. A luz mostra tudo o que há para ver. É uma cidade verde-branca. Verde-rio e verde-mar, mas branca. Em Agosto até o verde mais escuro, que se vê nas árvores antigas do Monte de Santa Luzia, parece tornar-se branco ao olhar. Até o granito das casas.

Mais verdades.
No Norte a comida é melhor.
O vinho é melhor.
O serviço é melhor.
Os preços são mais baixos.
Não é difícil entrar ao calhas numa taberna, comer muito bem e pagar uma ninharia
Estas são as verdades do Norte de Portugal

Mas há uma verdade maior.
É que só o Norte existe. O Sul não existe.
As partes mais bonitas de Portugal, o Alentejo, os Açores, a Madeira, Lisboa, etcaetera, existem sozinhas. O Sul é solto. Não se junta.

Não se diz que se é do Sul como se diz que se é do Norte.
No Norte dizem-se e orgulham-se de se dizer nortenhos. Quem é que se identifica como sulista?
No Norte, as pessoas falam mais no Norte do que todos os portugueses juntos falam de Portugal inteiro.
Os nortenhos não falam do Norte como se o Norte fosse um segundo país

Não haja enganos.
Não falam do Norte para separá-lo de Portugal.
Falam do Norte apenas para separá-lo do resto de Portugal.

Para um nortenho, há o Norte e há o Resto. É a soma de um e de outro que constitui Portugal.
Mas o Norte é onde Portugal começa.
Depois do Norte, Portugal limita-se a continuar, a correr por ali abaixo.

Deus nos livre, mas se se perdesse o resto do país e só ficasse o Norte, Portugal continuaria a existir. Como país inteiro. Pátria mesmo, por muito pequenina. No Norte.

Em contrapartida, sem o Norte, Portugal seria uma mera região da Europa.
Mais ou menos peninsular, ou insular.

É esta a verdade.

Lisboa é bonita e estranha mas é apenas uma cidade. O Alentejo é especial mas ibérico, a Madeira é encantadora mas inglesa e os Açores são um caso à parte. Em qualquer caso, os lisboetas não falam nem no Centro nem no Sul - falam em Lisboa. Os alentejanos nem sequer falam do Algarve - falam do Alentejo. As ilhas falam em si mesmas e naquela entidade incompreensível a que chamam, qual hipermercado de mil misturadas, Continente.

No Norte, Portugal tira de si a sua ideia e ganha corpo. Está muito estragado, mas é um estragado português, semi-arrependido, como quem não quer a coisa.

O Norte cheira a dinheiro e a alecrim.

O asseio não é asséptico - cheira a cunhas, a conhecimentos e a arranjinho. Tem esse defeito e essa verdade.

Em contrapartida, a conservação fantástica de (algum) Alentejo é impecável, porque os alentejanos são mais frios e conservadores (menos portugueses) nessas coisas.

O Norte é feminino.

O Minho é uma menina. Tem a doçura agreste, a timidez insolente da mulher portuguesa. Como um brinco doirado que luz numa orelha pequenina, o Norte dá nas vistas sem se dar por isso.

As raparigas do Norte têm belezas perigosas, olhos verdes-impossíveis, daqueles em que os versos, desde o dia em que nascem, se põem a escrever-se sozinhos.
Têm o ar de quem pertence a si própria. Andam de mãos nas ancas. Olham de frente. Pensam em tudo e dizem tudo o que pensam. Confiam, mas não dão confiança. Olho para as raparigas do meu país e acho-as bonitas e honradas, graciosas sem estarem para brincadeiras, bonitas sem serem belas, erguidas pelo nariz, seguras pelo queixo, aprumadas, mas sem vaidade. Acho-as verdadeiras. Acredito nelas. Gosto da vergonha delas, da maneira como coram quando se lhes fala e da maneira como podem puxar de um estalo ou de uma panela, quando se lhes falta ao respeito. Gosto das pequeninas, com o cabelo puxado atrás das orelhas, e das velhas, de carrapito perfeito, que têm os olhos endurecidos de quem passou a vida a cuidar dos outros. Gosto dos brincos, dos sapatos, das saias. Gosto das burguesas, vestidas à maneira, de braço enlaçado nos homens. Fazem-me todas medo, na maneira calada como conduzem as cerimónias e os maridos, mas gosto delas.

São mulheres que possuem; são mulheres que pertencem. As mulheres do Norte deveriam mandar neste país. Têm o ar de que sabem o que estão a fazer. Em Viana, durante as festas, são as senhoras em toda a parte. Numa procissão, numa barraca de feira, numa taberna, são elas que decidem silenciosamente.

Trabalham três vezes mais que os homens e não lhes dão importância especial.

O Norte é a nossa verdade.

Ao princípio irritava-me que todos os nortenhos tivessem tanto orgulho no Norte, porque me parecia que o orgulho era aleatório. Gostavam do Norte só porque eram do Norte. Assim também eu. Ansiava por encontrar um nortenho que preferisse Coimbra ou o Algarve, da maneira que eu, lisboeta, prefiro o Norte. Afinal, Portugal é um caso muito sério e compete a cada português escolher, de cabeça fria e coração quente, os seus pedaços e pormenores.
Depois percebi.

Os nortenhos, antes de nascer, já escolheram. Já nascem escolhidos. Não escolhem a terra onde nascem, seja Ponte de Lima ou Amarante, e apesar de as defenderem acerrimamente, põem acima dessas terras a terra maior que é o "O Norte".

Defendem o "Norte" em Portugal como os Portugueses haviam de defender Portugal no mundo. Este sacrifício colectivo, em que cada um adia a sua pertença particular - o nome da sua terrinha - para poder pertencer a uma terra maior, é comovente.

No Porto, dizem que as pessoas de Viana são melhores do que as do Porto. Em Viana, dizem que as festas de Viana não são tão autênticas como as de Ponte de Lima. Em Ponte de Lima dizem que a vila de Amarante ainda é mais bonita.
O Norte não tem nome próprio. Se o tem não o diz. Quem sabe se é mais Minho ou Trás-os- Montes, se é litoral ou interior, português ou galego? Parece vago. Mas não é. Basta olhar para aquelas caras e para aquelas casas, para as árvores, para os muros, ouvir aquelas vozes, sentir aquelas mãos em cima de nós, com a terra a tremer de tanto tambor e o céu em fogo, para adivinhar.

O nome do Norte é Portugal. Portugal, como nome de terra, como nome de nós todos, é um nome do Norte. Não é só o nome do Porto. É a maneira que têm e dizer "Portugal" e "Portugueses". No Norte dizem-no a toda a hora, com a maior das naturalidades. Sem complexos e sem patrioteirismos. Como se fosse só um nome. Como "Norte". Como se fosse assim que chamassem uns pelos outros. Porque é que não é assim que nos chamamos todos?

Os lambe-cus

"Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma
modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução
de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos
exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios
ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador
mais poderoso do que ele.

Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um
agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é identificá-los,
lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem ser em
dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai lambendo
os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia.

Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por
amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como
«engraxanço».

Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os
alunos engraxavam os professores, os jornalistas engraxavam os ministros, as
donas de casa engraxavam os médicos da caixa, etc. ..

Mesmo assim, eram raros os portugueses com feitio para passar graxa. Havia poucos
engraxadores. Diga-se porém, em abono da verdade, que os poucos que havia
engraxavam imenso. Nesse tempo, «engraxar» era uma actividade socialmente menosprezada.

O menino que engraxasse a professora tinha de enfrentar depois o escárnio da
turma. O colunista que tecesse um grande elogio ao Presidente do Conselho
era ostracizado pelos colegas. Ninguém gostava de um engraxador.

Hoje tudo isso mudou. O engraxanço evoluiu ao ponto de tornar-se
irreconhecível. Foi-se subindo na escala de subserviência, dos sapatos até
ao cu.

O engraxador foi promovido a lambe-botas e o lambe-botas a lambe-cu.
Não é preciso realçar a diferença, em termos de subordinação hierárquica e
flexibilidade de movimentos, entre engraxar uns sapatos e lamber um cu.

Para fazer face à crescente popularidade do desporto, importaram-se dos
Estados Unidos, campeão do mundo na modalidade, as regras e os estatutos da
American Federation of Ass-licking and Brown-nosing. Os praticantes
portugueses puderam assim esquecer os tempos amadores do engraxanço e
aperfeiçoarem-se no desenvolvimento profissional do Culambismo.

(...) Tudo isto teria graça se os culambistas portugueses fossem tão mal
tratados e sucedidos como os engraxadores de outrora. O pior é que a nossa
sociedade não só aceita o culambismo como forma prática de subir na vida,
como começa a exigi-lo como habilitação profissional.

O culambismo compensa. Sobreviver sem um mínimo de conhecimentos de culambismo é hoje
tão difícil como vencer na vida sem saber falar inglês."

Miguel Esteves Cardoso, in "Último Volume"

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