A guerra da carne não é apenas aquela que o Minipreço e o Pingo Doce protagonizam com descontos de 50 por cento na dita cuja. Esta é apenas a guerra-mãe de outras guerras de preços, num quadro em que há uma mudança de paradigma: mais virtual e menos real.
Em primeiro lugar, atentemos no nível de desconto. E interroguemo-nos: 50 por cento porquê?
Será porque a margem de lucro das cadeias de distribuição é fabulosa? Ou será que, para fazer face ao empobrecimento da classe média, o mercado adopta a lei da selva, ou seja, os grandes comem os pequenos e no fim fica o leão... Se conseguir comprovar que é mesmo ele o rei da selva.
O empobrecimento da classe média, ao qual tenho dedicado regularmente linhas deste espaço, é cada vez mais a maior ameaça à economia portuguesa: Portugal não tem assim tantos ricos que possam sustentar assim tantos desempregados e assim tantos novos pobres. E isto tem um significado muito perigoso: a escalada dos impostos cobrados aos que não podem iludir e fugir ao Fisco acabará por trazer perturbações sociais cada vez mais difíceis de controlar, entre as quais estão os crimes mais violentos.
Quando deixa de poder subir a pulso a classe média comporta-se como fura-vidas. E parte dela recorre a velhos e novos truques para evitar pagar impostos indirectos que pesam demasiado sobre os contextos das suas actividades. A frase "com ou sem factura" está de volta e ninguém leva a mal. Porque não há forma de ter confiança num Estado que, ele próprio, rompe contratos e tão mais facilmente quanto o parceiro for menos forte. O exemplo está fresco: mais penalizados os que trabalham para o Estado do que os parceiros que o Estado escolheu para negócios cujo contributo para o bem comum é geralmente irrelevante quando comparado com a partilha privada dos lucros.
Além de ser socialmente um país em que a classe média é preponderante, Portugal é uma economia de pequenas e médias empresas. E é também por aqui que a coisa vai de mal a pior. Porque a guerra da carne acabará por matar talhos e carniceiros, uns atrás dos outros e tantos mais quanto mais durar.
Por fim, as guerras de preços juntarão aos trabalhadores por conta de outrem desempregados, cada vez mais pequenos e médios empresários falidos. Ou seja: muitíssima classe média expelida dos habituais mercados de consumo.
O mais incrível é que a guerra da carne protagonizada por duas redes distribuidoras locais conviveu na tarde de ontem com a fulgurante entrada em bolsa de uma rede distribuidora virtual global de partilha de conteúdos, o Facebook, valorizada acima dos 100 mil milhões de dólares.
Parece, pois, certo que voltamos a mudar de paradigma. Só falta saber se o novo será comestível...
E depois do... Pingo Doce
A ministra Assunção Cristas deu, até agora, a única resposta interessante sobre o pós-1.o de Maio do Pingo Doce: comprometeu-se a divulgar trimestralmente o diferencial de preços dos bens alimentares entre o produtor e o consumidor.
Em Espanha, essa é uma prática instalada desde o início da presente crise económica e social com um modelo mensal de um cabaz de compras representativo da dieta espanhola recomendável. Trata-se de uma solução em que o consumidor pode controlar constantemente as flutuações de preços e passar à prática a ideia de comer melhor e mais barato. Aproveitando tudo o que a nossa terra nos pode dar, o que, em princípio, está mais de harmonia com o que pede o nosso corpo. E nos pode preservar, em especial os nossos descendentes, de múltiplas doenças derivadas de alimentações inadequadas ao meio ambiente, patrocinadas pela padronização das grandes quantidades em que se baseia o negócio das multinacionais de produção e distribuição.
Assunção Cristas tem a seu cargo e função um superministério, com duas frentes que implicam revoluções: a da conservação do ambiente e a da retoma da agricultura e das pescas, sendo que ambas se inscrevem perigosamente em políticas europeias muito assediadas por lóbis transnacionais.
Coragem, portanto.
Para já, saudemos a promessa de uma efectiva exibição do diferencial de preços. Ela permitir-nos-à ganhar consciência de quem lucra o quê no mercado essencial dos bens alimentares. E também ganhar consciência dos alimentos com os quais podemos poupar em mercearia e em medicamentos. Se este processo nos levar a educar as gerações futuras para uma alimentação mais sadia, ainda podemos acabar a rir deste estranho 1.o de Maio.
Quanto à operação propriamente dita, estamos conversados: foi um enorme golpe de marketing, venha, ou não, a confirmar-se que nos azeites, nos arrozes ou nos uísques os preços de venda tenham descido abaixo dos preços de custo.
De resto, foi a concentração numa data histórica que deu força mediática a esta operação do Pingo Doce, cuja estratégia se baseou na extensão do velho e velho conceito de saldos, nos últimos anos ele próprio desdobrado em saldos de saldos.
Com o empobrecimento galopante em que vivem os europeus, muito mais importante que os detalhes sobre se foi ou não fora de jogo, ou seja, se o Pingo Doce praticou ou não "dumping", serão porventura os efeitos que poderão ter produzido o aprovisionamento das despensas nas tão enfatizadas poupanças das famílias.
Falta também conhecer como funcionaram os cartões de crédito neste 1.0º de Maio: imaginemos que o Pingo Doce capitalizou 100 milhões de euros nesse dia e que esse dinheiro não volta tão cedo às contas dos bancos portugueses...
Pelas ruas da amargura
A velocidade de circulação do capital, ou seja, da tomada de decisão sobre negócio, tornou-se supersónica. Sobretudo quando comparada com a tomada de decisão política. Por muito que devamos exigir aos decisores políticos, mesmo os de maior peso internacional, vamos ter de tomar consciência de que o mundo da política, tal qual o conhecemos, mexe-se a passo de caracol. E que este passo torna a oportunidade das decisões políticas por vezes irrelevante. Não é inimaginável que a senhora Merckel e o senhor Holande tomem um determinada decisão sobre eurofinanças e no justo e retemperado sono da noite do mesmo dia algures um, dois, três "players", em "on line", inutilizem, ou utilizem indevidamente, a bondosa solução política, seja ela do mais alto nível.
O problema da inadequação do passo de caracol da política à velocidade supersónica a que viajam os capitais vai ter de ser encarado muito rapidamente, sob pena de se casar em comunhão de bens com o problema do comércio mundial dominado pelas máfias e colocar os regimes democráticos em ponto de crise tamanha que a ideia de ditadura ganhe a força de um mal menor.
Com os regimes democráticos do mundo capitalista nesta encruzilhada, pequenos países como o nosso, pequeno em população e em território, tornam-se palco de todos os piores sinais deste descontrolo. Não porque sejamos piores que os outros, mas porque é mais fácil o contágio. E, é claro, muito mais fácil quando, anos e anos de história, primeiro fascista, depois democrática, criaram um Estado tentacular e asfixiante, do qual se esperam todos os favores e benesses para uns quantos primos mais próximos, à custa dos primos mais afastados. Sim, porque quem é que não é primo de alguém num país tão pequeno quanto o nosso?
A manchete desta edição do JN não podia ser mais significativa da confrangedora fragilidade a que chegaram alguns sectores do aparelho de Estado, que, denegando a função de zelarem pelos interesses da Nação, trabalham afincada mente a favor dos interesses de alguns.
Com um Estado frágil, o pior que pode acontecer é que idêntica fragilização ocorra no aparelho mediático. Ou seja que a comunicação social possa ser associada às batalhas que os interesses privados travam no interior do aparelho de Estado.
A rede internacional de lavagem de capitais com fuga ao fisco, identificada na operação Monte Branco, é tipicamente o caso em que as fragilidades do aparelho de Estado se podem tomar de amor à primeira vista pelas fragilidades do aparelho mediático. E já há um enorme sinal desse romance: a velocidade de circulação das notícias tornou-se superior à velocidade das investigações policiais.
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