sábado, 13 de julho de 2013

A manhã não raia


Por Luís Januário, publicado em 25 Fev 2012

A pulsão febril da criação é tão detestável como a atitude funcionária. Houve dias em que suspirei por pessoas normais, sem sobredotação nem especiais poderes empáticos

Nestes dias Hélia Correia foi entrevistada no programa “Câmara Clara”, da RTP2. Quando lhe pediram medidas para difundir a obra de Maria Gabriela Llansol, ela respondeu:

“Nenhuma. Quem sentir falta que a leia.”

Uma boa atitude, nos antípodas do zelo missionário com que outros nos querem aconselhar livros e escritores. É, adaptado ao leitor, o conselho de Rilke a um jovem poeta de quem nunca mais se ouviu falar.

“Se consegues viver sem escrever, não te esforces. Se não sentes a falta de Maria Gabriela Llansol, fica bem.”

Este apelo à necessidade imperiosa da escrita e da leitura podia ser alargado às artes e ofícios. Que ímpeto impossível de calar levou Scorsese a filmar “Hugo”? Pode-se atribuir uma autoria do filme a Scorsese. Mas quando se vêem mais de 600 nomes nos créditos dos efeitos especiais é legítimo perguntar se a verdadeira autoria do filme não será de Al Bullock ou de Dimitri Capuani.

Somos, numa primeira reacção, levados a simpatizar com afirmações absolutas, que enfatizam o lado espontâneo e criador dos seres humanos. Mas devemos perguntar: como seria o mundo feito por homens e mulheres entregues a uma paixão avassaladora? Onde só se produzisse o que, do fundo obscuro das zonas de decisão, surgisse como um impulso irrecusável?

Um inferno, decerto. Exemplos? Custa-me a dizê-lo: os pré-rafaelitas, sem mecenas nem láudano. Quantas vezes escreveu Rilke o que não lhe apetecia? Quantas vezes ficou ágrafo sem que lhe parasse a respiração?

A pulsão febril da criação é tão detestável como a atitude funcionária. Houve dias em que suspirei por pessoas normais, sem sobredotação nem especiais poderes empáticos. Viajava então com alguém que se especializara em adivinhar os meus pensamentos. De tanto ler o que eu não escrevia e de olhar fundo nos meus olhos sucumbiu ao vazio que neles habitava. E eu com ela. Envolvemo-nos numa espécie de folie à deux sobreinterpretativa. Por vezes eu estava simplesmente cansado. Ela interpretava o meu cansaço como prova de desinteresse e desinvestimento. Olhava-me com um silêncio que, na melhor das interpretações, era clínico. Sentia-me doente, o meu vácuo preenchia-se com a personagem que o seu delírio monomaníaco perseguia e finalmente percebia que ela tinha razão, o meu Eu volátil estava algures, longe dali. Então sentia-me culpado. Esta sucessão reforçava nela a certeza de que as suas suspeitas faziam sentido. A espiral de silêncios recriminatórios não tinha fim, expandia-se, tal qual dizem que acontece ao universo. Como ansiei por uma paz dos sentidos, um embotamento da emoção. Lia Caeiro. A manhã raia. A manhã não raia. Mas Caeiro não era o seu mestre.

Quem foi Rilke? Um homenzinho obscuro, que teve um relacionamento com uma senhora esquisita chamada Lou Andreas-Salomé. Em Paris, Rilke foi secretário de um homem violento, carinhoso com o escopro e brutal com as mulheres. Mais tarde foi convidado da princesa Maria von Thurn und Taxis, e essa deve ter sido a parte mais agradável da sua existência. Dava-lhe isto autoridade para aconselhar os jovens? Dava-lhe o estatuto de perito para que os jovens poetas seguissem os seus conselhos?

Conheci pessoas que, no meio do sofrimento moral, eram capazes de sorrir e dizer “Antes assim que morta”, querendo com isso dizer “Antes sofrer que não sentir nada”. Mas eram muito jovens, ou enfrentavam contrariedades pequenas. Não se pode estar sempre em forma, sabem os especialistas do treino desportivo. Nem sempre na crista da paixão, agradável, pronto a socializar.

Nem sempre diferente. Inteligente. Sensível. Capaz de ouvir com atenção. Há horas em que há tanto barulho dentro de nós que ensurdecemos e só somos capazes de ouvir o ruído informe do motor, do volante da “Ode Marítima”, dos gritos ao longe dos marinheiros em manobras.

Há momentos – e são quase tudo, e quase sempre – de grande monotonia, de embotamento. Em que apetece ser como o sardão na grande pedra ao sol, sem outra ambição que acumular energia.

E há certamente, na vida de cada qual, instantes carregado de sentido. Que resumem os outros. De tal intensidade que, quando os recordamos, somos capazes de os decompor, de recordar o ambiente em redor, os murmúrios, as diversas gradações da cor e dos sentidos. Podemos guardá-los como eles merecem e voltar a eles até serem só uma reconstrução, uma tonalidade afectiva, uma imagem de fusão. Mas seria doentio viver desses momentos, querer multiplicá-los, sofrer por serem raros ou desejar uma vida diferente da que temos.

Gosto de comunicar aos meus amigos o que me entusiasma, mas detesto o proselitismo. Gosto dos artistas inebriados com o seu trabalho. Mas gosto mais dos padeiros a vigiar a temperatura do forno, da rapariga do 5 à sec a ler as instruções de lavagem, da menina do call center a seguir o fluxo de decisão, da professora a contar aos miúdos a história do Gato das Botas, das enfermeiras de cuidados intensivos, à luz baça da madrugada, a escrever as notas do turno.

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