domingo, 9 de novembro de 2014

Sete mil milhões de vozes à beira do Tejo



Mosaic. 7 billion Others [EN]

RICARDO GARCIA

07/11/2014 - 08:02

Lisboa recebe vídeo-exposição com milhares de depoimentos que reflectem os sentimentos, ideias e aspirações da população do planeta.

Um encontro fortuito entre um fotógrafo francês e um aldeão no Mali, ocorrido há muitos anos, trouxe agora sete mil milhões de pessoas para a beira do Tejo, em Lisboa. Não estão todos lá, mas é como se estivessem.

Basta sentar-se à frente do "mosaico", deixar o tempo passar e ouvir o que têm a dizer as centenas de rostos, dos quatro cantos do globo, que lá estão, registados em vídeo. Falam de tudo: da família e do dinheiro; das alegrias e dos medos; da guerra e da morte; do clima e da natureza, da tristeza e do humor.

E cabe a um português proferir uma sábia ironia: "É bom rir. Sou um bocadinho preguiçoso. Não gosto de trabalhar. Por quê? Porque fazer cara feia implica mexer vários músculos, enquanto rir precisa de poucos". E todos, cada qual na sua quadrícula no mosaico, irrompem em contagiante gargalhada.

O hipnotizante painel é o carro-chefe de uma vídeo-exposição que já percorreu o mundo nos últimos anos e agora chega a Portugal. 7 Mil Milhões de Outros é inaugurada este sábado no Museu da Electricidade, da Fundação EDP.

Não é uma simples exposição, e sim mais uma gigantesca realização de Yann Arthus-Bertrand, o fotógrafo e cinegrafista que ficou mundialmente conhecido sobretudo pelo seu livro A Terra Vista do Céu e pelo filme Home, sobre a saúde do planeta
Foi numa das suas inúmeras viagens que começou a germinar a ideia do projecto 7 Mil Milhões de Outros. Bertrand estava a realizar uma reportagem no Mali para uma revista francesa, quando o helicóptero em que seguia teve uma avaria. Foi acolhido por um aldeão que partilhou com ele o pouco que tinha. Conversaram durante um dia inteiro. Mais tarde, sentiu que às imagens aéreas da Terra que estava a colher faltava um complemento: a voz dos seus habitantes.

Em 2003, o projecto tomou forma. Bertrand juntou uma equipa de repórteres que, durante anos, percorreu o mundo a filmar depoimentos, baseado num conjunto de 45 perguntas. Foram percorridos 84 países, feitas seis mil entrevistas, em mais de 50 línguas. São cinco mil horas de gravação.

"Se houvesse uma oitava maravilha do mundo, seria isso: o silêncio depois da guerra"

Não só o questionário era o mesmo, como também o enquadramento – planos fechados, sobre fundo neutro, com os entrevistados a conversar directamente para a câmara. O resultado assemelha-se a milhares de fotografias tipo passe, mas animadas.

É um retrato múltiplo dos sentimentos, ideias e aspirações da população do planeta, no qual impressionam tanto as vozes como os rostos. Sentar-se à frente do tal mosaico é como participar desta grande conversa global.

E ouvem-se histórias extraordinárias, como aquela que é contada em francês por um de nós, aparentemente africano, um lenço na cabeça e metade dos dentes a faltar na arcada superior:

"Eram dois homens, um que não tinha braços e o outro, cego. Fomos ter com eles e nos disseram: 'Gostaríamos de trabalhar'. E a minha mulher: 'Mas que trabalho podemos vos dar? Aqui fazemos artesanato. Tu não tens braço!'. E ele: 'Posso trabalhar com os pés. São como as minhas mãos'. 'E tu, és cego! Sabes fazer artesanato?'. E ele disse: 'Posso fazê-lo. Contratem-nos'. E nós… nós acabámos por os aceitar. E eles estão cá. O que não tem braços trabalha muito bem com os pés. E o cego trabalho no escuro, tacteando as peças".

Possivelmente, a história resulta de uma das 45 perguntas: "Considera que todos os homens são iguais?"
Além do mosaico, a exposição dedica várias salas a temas específicos. Há uma para os sonhos de infância. Muitos dizem que quiseram ser pilotos. Um chinês afirma que o que mais desejava era "comer até não ter mais fome".

A pergunta "qual é o seu maior medo?" abriu um leque enorme de respostas em diferentes países: das mulheres e de falta de dinheiro (Sérvia); que a guerra recomece (Camboja); que meu filho case com uma mulher de quem eu não goste (Egipto); das cobras (Tibete); do vulcão (Papua Nova-Guiné); de estar sozinha em casa (Portugal); ou dos demónios (Mali).

Na sala dedicada à pobreza, é instrutivo para qualquer europeu ouvir um pai a descrever como reparte o miserável salário mensal entre a renda da casa e as despesas para garantir que os filhos vão à escola. O que resta dá para um saco de milho e outro de arroz.

"Para ser um ecologista, é preciso amar as outras pessoas. Não há ecologia sem amor"

Perturbador é o relato impassível e doloroso de um ruandês que participou no brutal genocídio de 1994, em que centenas de milhares de pessoas da etnia Tutsi morreram vítimas dos Hutu: "Durante o genocídio, matei 14 pessoas. Fui para outro lugar e matei três pessoas. Ainda noutro lugar, matei uma pessoa. Matei gente, de três famílias".

Da guerra, uma mulher tchechena recorda o alívio de sair de um abrigo anti-aéreo para se deparar com a lua cheia num momento de acalmia dos bombardeamentos: "Foi sublime. Se houvesse uma oitava maravilha do mundo, seria isso: o silêncio depois da guerra".

Gravar tais depoimentos implicou conquistar a intimidade dos entrevistados. "Às vezes, as pessoas acabam por dizer coisas que nunca tinham dito antes", disse Yann Arthus-Bertrand, numa conferência de imprensa esta quinta-feira, no Museu da Electricidade. É aí que se encaixa esta resposta de uma mulher à pergunta "o que gostaria de mudar na sua vida?": "Faria tudo igual, mas com outro marido".

Uma sala é dedicada aos portugueses. Falam do que é ser português, falam da saudade, falam do mar. Metade são estrangeiros que vivem em Portugal e o tema do racismo é um dos mais salientes. Falam também do passado, do que aprenderam com os pais. Uma mulher já idosa conta como a sua mãe saía de casa de madrugada, sob a luz da lua, e atravessava um pinhal até ao rio, para lavar a roupa e como, enquanto o fazia, deitava algumas lágrimas. "Às vezes dizia-me: 'Filha, quero que tu sejas costureira, porque não quero que vivas sacrificada como eu tenho vivido a vida inteira'".

O filme dos portugueses foi feito pela empresa Projecto Memória, que foi quem trouxe a exposição a Portugal. Segundo a sua fundadora e directora, Sandra Carvalho, a ideia surgiu depois de a exposição ter passado pelo Museu de Arte de São Paulo, em 2011, atraindo 190 mil visitantes. Antes disso, já tinha feito sucesso noutras cidades, desde a versão inaugural em Paris, em 2009, tendo um número recorde de três milhões de visitantes em Xangai, em 2010.
É mais um mega-empreendimento na carreira de Yann Arthus-Bertrand, que nasceu em 1946 em Paris e é hoje, pela via das imagens, uma voz incontornável na defesa do planeta. Aos 20 anos, Bertrand esteve à frente uma reserva natural em França. Aos 30, foi para o Quénia, num projecto para acompanhar, durante três anos, uma família de leões. Tornou-se repórter da natureza e em 1992 aventurou-se no projecto de fotografar a terra do alto, estimulado pelo que tinha visto quando era condutor de balões em África, para completar o orçamento.

Depois do sucesso do seu livro, criou a Fundação Goodplanet, a partir da qual realiza agora os seus projectos. Em curso está um novo, destinado a mostrar porque os seres humanos têm tanta dificuldade em conviver. "Por que continuamos a lutar como animais?", indaga Bertrand. "Para ser um ecologista, é preciso amar as outras pessoas. Não há ecologia sem amor", afirma.

O apelo encontra eco num dos depoimentos mais pragmáticos de toda a exposição: "Você disse a alguma pessoa hoje que a ama? Se não disse, por favor, diga".

Das seis mil vozes no Museu da Electricidade resulta a pergunta que ninguém sabe responder: quantas afinal cabem no planeta. Quando o projecto começou, ainda se chamava "6 Mil Milhões de Outros". Em 2011, teve de passar a "7 Mil Milhões de Outros".

E os números continuam a subir. Enquanto esta reportagem foi escrita, cerca de 41 mil pessoas somaram-se às que cá já estão. Às 20h15 desta quinta-feira, éramos já 7.277.710.933 sobre a Terra.

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