sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Visitar Taiwan, usurpar a democracia

Taiwan

A única coisa que a História ensina é que a História não ensina nada. A capacidade militar da China não é a dos anos noventa. São conhecidos os investimentos, ou gastos, nesta área.



Carmo Afonso 12 de Agosto de 2022


Nas corridas de pombos-correio são usadas práticas que pretendem condicionar e manipular o comportamento dos pombos que participam na competição. Conto-vos uma dessas práticas.

Os pombos são aves monogâmicas que podem até ter uma só companheira a vida inteira. Esta característica é bem conhecida dos criadores e alguns encontraram maneira de lhe dar uso. A prática consiste em pegar na pomba que acasalou com o pombo, que vai correr, e colocá-la numa gaiola fechada com outro pombo. Ao pombo, seu consorte, é mostrada essa gaiola minutos antes de ser levado para o ponto de lançamento, do qual deverá regressar – e o mais rapidamente possível – ao seu pombal de origem.



O pombo que percorrer a distância em causa, no mais curto período de tempo, ganha. É um grande incentivo. O pombo-correio, depois de avistar a sua companheira na mesma gaiola com outro pombo, fica enlouquecido e obcecado com um objectivo: regressar a casa para a resgatar. A provocação tem resultados garantidos.

Isto a propósito da visita de Nancy Pelosi a Taiwan.


Numa altura em que uma guerra, ainda de duração, impacto e desfecho imprevisíveis, decorre, a presidente do Congresso norte-americano visitou um território que é, no mínimo, sensível.

A História diz-nos que já tinha acontecido. Em junho de 1995 o presidente do Taiwan, Lee Teng-hui, visitou os Estados Unidos, o que foi lido pela China como uma provocação. Seguiu-se uma demonstração do poderio militar chinês junto de Taiwan e outra, superior, por parte dos Estados Unidos. Nessa altura, saíram vencedores os Estados Unidos. A superioridade da sua máquina de guerra era incontestável. Ficou o registo.




 É claro que a única coisa que a História ensina é que a História não ensina nada e estamos de volta a um episódio semelhante mas com novas variáveis.

A administração norte-americana enfrenta uma tensão simultânea com a Rússia e com a China, o que fragiliza a sua posição. Recordemos que Trump agudizou as relações com a China, mas tinha um entendimento com Putin. Por outro lado, a capacidade militar da China não é a dos anos noventa. São conhecidos os investimentos, ou gastos, nesta área.

Não é nada certo que a China seja novamente derrotada numa demonstração de poderio militar perante os Estados Unidos. Mas sobretudo interessa perguntar: qual a razão da visita de Nancy Pelosi numa altura destas?

A resposta oficial, constante de comunicado, é: para prestar respeito à florescente democracia de Taiwan e realçar o seu sucesso. Cada um deverá tirar as suas conclusões, mas era uma visita que não teria de ser feita, não agora. Foi uma decisão e que teve certamente em conta que seria interpretada como uma provocação. É como deitar gasolina para apagar um fogo. Num momento em que se desenham novos blocos geopolíticos, os Estados Unidos não deixam de carregar no botão vermelho. Falar aqui em prestar respeito à democracia de Taiwan é como dizer que, no caso dos pombos, se presta respeito ao vigoroso amor do casal.


A China reagiu como seria de esperar e temos novas razões para não estar tranquilos. Mais manobras militares junto a um país onde há décadas se avizinha um potencial conflito envolvendo uma das maiores potências mundiais. A paz não deve ser mantida a qualquer custo, mas é inaceitável esta vertigem para a guerra. O assunto, geograficamente distante, diz-nos respeito.

No caso das corridas de pombos, são conhecidos os propósitos e objectivos de quem realiza a provocação. Aqui existe uma margem para especulações. Não poderá é alguém afirmar que os Estados Unidos ignoravam que esta visita traria reações por parte de Pequim e que essas reações têm consequências para o resto do mundo.


Estaremos a assistir a uma corrida? Diria que sim. E podemos estar a concorrer sem nos termos inscrito.

Homenagear, promover ou defender a democracia é uma tecla muito gasta. Já não faz lembrar liberdade e valores, mas sim guerras e sangue. Invoca-se o melhor para fazer o pior; faz-se da nossa democracia o nosso cangalheiro, que abominável usurpação.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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