segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Rui Moreira e assuntos do coração

Coração de D. Pedro MARIA JOÃO GALA

Num momento como o que o Brasil atravessa, como está Rui Moreira a prestar-se a este papel?




Carmo Afonso 22 de Agosto de 2022

Esteve este fim-de-semana pela primeira vez em exposição pública. Foi no salão nobre da Irmandade da Lapa no Porto. Estamos a falar do coração de D. Pedro IV, que o monarca terá oferecido à cidade do Porto e que, desde 1834, tem estado guardado na capela-mor da Igreja da Lapa.

Estava guardado a cinco chaves e essas cinco chaves estão à guarda do presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira. A razão para a exceção, a que assistimos, é o convite, ou pedido, da transladação do coração para o Brasil, com vista a integrar, ainda não se sabe exatamente como, as comemorações do bicentenário da independência do país.

Está agendada para hoje, segunda-feira, a sua chegada ao Palácio do Planalto, em Brasília. Supostamente será recebido com honras de chefe de Estado como salvas de canhão e escolta pelos Dragões da Independência. Ao que chegámos.

Rui Moreira acompanhará a relíquia e declarou que “a Câmara do Porto assegurará todas as diligências necessárias, assim como a articulação com outras entidades, em especial com as autoridades brasileiras, no que concerne à segurança da operação de transporte”.

 Monumento à Independência, em São Paulo, onde estão guardados os restos mortais de D. Pedro e das suas duas esposas, as imperatrizes Maria Leopoldina e Amélia Leuchtenberg Luiz Coelho L&C/Creative Commons

Esta história não tem ponta por onde se lhe pegue, mas está a acontecer e merece portanto que se pegue por alguma. Comecemos pelo culto a uma relíquia como é o coração de um defunto. Todo o respeito por quem sente gosto por estas coisas, mas, convenhamos, é repugnante e medieval.

No Tieta do Agreste, de Jorge Amado, a irmã de Tieta, Perpétua, guardava fervorosamente uma relíquia do seu falecido marido, naquele caso o pénis. Também Umberto Eco, em O Nome da Rosa, fez sátira e humor com este culto: o jovem Adso de Melk delirou com as maravilhas que lhe foram dadas a ver na abadia benedita e que supostamente incluíam uma costela de Santa Sofia, o queixo de Santo Eobano, um dente de João Baptista, uma parte da omoplata de São Crisóstomo e um dedo de São Vidal. Guilherme de Baskerville, homem sensato, serenou-lhe o entusiasmo.

Pois por cá, levamo-nos muito a sério, mesmo quando tudo aponta para estarmos a fazer figura de parvos.

Não se pode ignorar que este pedido foi feito pelo governo do presidente Jair Bolsonaro. Lembramo-nos de certeza que, muito recentemente, não se coibiu de destratar Marcelo Rebelo de Sousa, representante de todos os portugueses, mesmo daqueles que não o apreciam. Mas se não apreciam Marcelo, o que dizer de Bolsonaro? A pergunta que tem de ser feita é: qual a razão para acedermos a um pedido deste homem? Não será certamente para agradar ao povo brasileiro. De muitos sectores, mas sobretudo dos meios intelectuais, as críticas a esta ideia fazem-se ouvir.


Também não deverão ser ignoradas as razões que levaram ao convite. Enquanto alguns se orgulham de disponibilizar o coração de um defunto, interessa refletir sobre as motivações do presidente brasileiro.

Jair Bolsonaro é uma ameaça à democracia brasileira e tem-se encarregado de demonstrar a que ponto; em vésperas de eleições, não se coíbe de ameaçar inviabilizar o processo eleitoral. Como pode isto ser ignorado? A única iniciativa que o governo de Bolsonaro anunciou, até agora, para as comemorações do bicentenário da independência foi a transladação do coração de D. Pedro. É evidente a intenção de retirar importância à participação do povo brasileiro no processo que levou à independência e de reforçar a do monarca. Num momento como o que o Brasil atravessa, como está Rui Moreira a prestar-se a este papel?

Não é a primeira vez que Portugal participa num episódio destes. Quando o Brasil era governado por uma ditadura militar, e também no âmbito das comemorações da independência, foi negociado entre Américo Tomás e o general Médici, então presidente, a ida do corpo de D. Pedro para o Brasil. Aconteceu em 1972 para assinalar os 150 anos.

Só esta repetição já deveria fazer soar um alarme. Bolsonaro é um admirador confesso desses tempos. Mas para muitos brasileiros são uma memória de morte e repressão. Também nós, portugueses, não temos do que nos orgulhar.

Não se percebem as motivações de Rui Moreira ou a sua falta de ponderação. Um liberal que permite que uma grande figura do liberalismo seja usada para compor a narrativa de um amante de ditaduras. O presidente da Câmara do Porto leva com muitos cuidados o coração de D. Pedro IV enquanto arrasa muitos outros. E os portugueses assistem. A esperança de ver mais um português a triunfar lá fora, mesmo que esteja morto e vá aos bocados, é a última a morrer.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sem comentários:

Enviar um comentário