sexta-feira, 26 de agosto de 2022

O tempo dos sisudos

Life of Brian
 

Ana Cristina Leonardo
26 de Agosto de 2022


Não indo esta que vos escreve para nova, vou começar por citar um clássico.

“…
JUDITH: Acho, Reg, que qualquer grupo anti-imperialista como o nosso deve reflectir na sua base tal diversidade de interesses.
REG: Concordo. Francis?
FRANCIS: Sim, Reg, o ponto de vista de Judith parece-me válido, desde que o movimento nunca esqueça que o direito inalienável de qualquer homem…
STAN: Ou mulher…
FRANCIS: Ou mulher… É ele livrar-se…
STAN: Ou ela…
FRANCIS: Ou ela…
REG: Aprovado.
FRANCIS: Obrigado, irmão.
STAN: Ou irmã.
FRANCIS: Ou irmã. Onde é que eu ia?
REG: Acho que tinhas terminado.
FRANCISCO: Ah! Certo.
REG: Além disso, é direito inato de qualquer homem…
STAN: Ou mulher.
REG: Porque é que não te calas com as mulheres, Stan? Estás a desviar-nos do assunto.
STAN: As mulheres têm todo o direito a participar no nosso movimento, Reg.
FRANCIS: Porque é que falas tanto de mulheres, Stan?
STAN: Eu quero ser uma.
REG: O quê?!
STAN: Quero ser uma mulher. De aqui para diante, quero que me chamem Loretta.
REG: O quê?!
LORETTA: É um direito meu como homem.
JUDITH: Bom, mas porque queres ser Loretta, Stan?
LORETTA: Quero ter bebés.
REG: Queres ter bebés?!
LORETTA: É um direito de todo e qualquer homem ter filhos se quiser.
REG: Mas... tu não pode ter bebés.
LORETTA: Não me oprimas!
REG: Eu não te estou a oprimir, Stan. Tu não tens útero! Onde é que o feto se vai desenvolver?! Vais guardá-lo numa caixa?!
LORETTA: (chora)
JUDITH: Olha! Eu... eu tenho uma ideia. Digamos que concordas que ele não pode realmente ter bebés porque não tem útero, o que não é culpa de ninguém, nem sequer dos Romanos, mas que ele pode ter o direito a ter bebés.
FRANCIS: Boa ideia, Judith. Lutaremos contra os opressores pelo teu direito a dar à luz, irmão. Irmã. Desculpa.
REG: Qual é o interesse?
FRANCIS: O quê?
REG: Qual é o sentido de lutar pelo direito dele a ter bebés, quando ele não pode ter bebés?!
FRANCIS: É um símbolo da nossa luta contra a opressão.
REG: É um símbolo da luta dele contra a realidade, isso sim.”

O excerto — já o terão reconhecido —, é retirado do script de A Vida de Brian, comédia dos Monty Python realizada em 1979 por Terry Jones, um quadro de paródia aos dogmas da extrema-esquerda de estro anticlerical.

Na época, não houve manifestações particulares vindas desse lado — ou porque a extrema-esquerda se riu de si própria ou porque não se reconheceu ao espelho —, mas algumas organizações de crentes falhos de humor enxofraram-se e consideraram-no uma blasfémia. O filme, além de problemas com a produção — só um cheque passado por George Harrison, um dos ex-Beatles, permitiria que finalmente fosse avante —, foi proibido em países como a Irlanda, a Noruega e em certas zonas de Inglaterra, sujeito a boicotes vários pelo mundo, incluindo nos Estados Unidos.

Na Suécia, da campanha de publicidade constava a frase: “O filme é tão engraçado que a Noruega o proibiu”, e em Inglaterra surgiu um anúncio radiofónico estrelado pela voz maravilhosa da mãe de John Cleese a apelar ao público para ir ao cinema ver A Vida de Brian. O filho informara-a, fosse a fita um desastre de bilheteira sendo ele um dos investidores, deixaria de conseguir financiar a simpática residência onde ela morava e uma senhora com aquela provecta idade morreria na hora se despejada por falta de pagamento (Muriel Cleese viveria até ao ano 2000, após completar 101 primaveras…).

O público borrifou-se, vingou-se dos censores e fez de Life of Brian um enorme sucesso (de bilheteira e também de crítica). Considerado um dos melhores momentos de comédia da sétima-arte (ao lado de obras brilhantes como o Some Like It Hot de Billy Wilder), é caso para reflectirmos — ou/e para nos assustarmos — ao lermos as declarações de Terry Jones muitos anos mais tarde, afirmando que seria demasiado arriscado pensar realizá-lo hoje (o hoje era 32 anos depois, sendo a data das declarações do realizador: Outubro de 2011).

“Na época, a religião parecia estar em segundo plano, era como pontapear um burro morto. Regressou de forma vingativa e antes de o fazer agora pensaríamos duas vezes”, confessou Jones. Quando interrogado sobre se consideraria realizar um filme satírico, mas no caso sobre muçulmanos, declarou: “Provavelmente não, pensando no que aconteceu a Salman Rushdie”. E não será preciso recordar que em 2011 Salman Rushdie ainda não fora esfaqueado.

Uma das razões para A Vida de Brian permanecer tão engraçado decorridos mais de 40 anos, reside na dessincronia entre a época retratada (o Império Romano) e a linguagem usada pelos actores (sem o conceito moderno de imperialismo a célebre piada, “Mas afinal, o que é que os romanos fizeram por nós?” perderia toda a graça). E é sobretudo na linguagem que o retrato jocoso, penetrante e certeiro de uma certa esquerda ganha folgo. É impossível, por exemplo, não ver na cena em que se confrontam a Frente Popular da Judeia, a Frente Popular Judaica e a Frente Judaica Popular um retrato das dissidências à esquerda em que, como é do conhecimento geral, bastariam três militantes para se dar uma cisão (coisa que virá, arriscamos, mais de trás, daquele dito judaico e dialéctico: “dois judeus, três opiniões”, em que um deles terá várias e não necessariamente concordantes).

Se a Igreja católica incluindo os seus crentes mais falhos de humor parecem menos propensos a gritar blasfémia à vista de tudo o que mexe, o diálogo de A Vida de Brian reproduzido no início dificilmente deixaria de despertar a fúria do movimento LGBTQIA+. Veja-se o sucedido há dias em França.

Um cartaz lançado pela respeitável associação feminista Planning familial foi a gota d’água. Nele se lê a frase “No Planning, sabemos que os homens também podem estar grávidos”, legendando o desenho de um homem grávido acompanhado do seu companheiro. O que seria para chamar a atenção para os transgéneros, gerou um tal sururu, com pedidos para serem retirados os apoios estatais à Planning, que Isabelle Rome, ministra-adjunta para a Igualdade entre mulheres e homens, Diversidade e Igualdade de oportunidades se sentiu na obrigação de sair em defesa da associação. Sobre a estranheza do cartaz, disse apenas: “Não deixemos a extrema-direita atiçar ódios, instrumentalizando uma campanha que compreendo não seja consensual”.

Aquilo que para Reg (John Cleese) “era um símbolo da luta contra a realidade” passou a ser um problema de opinião com mais ou menos adeptos. E se Carl Sagan nos lembrava que éramos filhos das estrelas, onde vão as estrelas! As estrelas e a biologia!

Não é preciso ter lido Enigma — História de uma Mudança de Sexo de Jan Morris (Tinta-da-China, 2017) para intuir que nascer no corpo errado deverá ser das experiências mais terríveis que conseguimos imaginar. O livro, autobiográfico e publicado originalmente em 1974 — respeito! —, conta o percurso que conduz, aos 46 anos, James Humphrey Morris (nome de baptismo) a Jan Morris, celebrada escritora e historiadora britânica. Há coisas que ela explica com total clareza: “Macho e fêmea são sexos, masculino e feminino são géneros, e embora os conceitos obviamente se sobreponham, estão longe de ser sinónimos. (…) O anseio transexual, pelo menos como eu o experimentei, é bem mais do que uma compulsão social, é antes biológica, imaginativa e essencialmente espiritual”. Quem não for capaz de notar a diferença entre isto e a frase de efeito “sabemos que os homens também podem estar grávidos” não há dioptrias que o salvem!

Entretanto, da intimidade mais íntima passámos à politização desenfreada, com ameaças da Planning invocando difamação e discurso de ódio e uma ministra a resumir a natural estranheza face ao cartaz a manobras da extrema-direita. Assim estamos, entre os vivas aos homens grávidos! e a perseguição aos homens efeminados — as trincheiras que nos querem obrigar a escolher. E o desvario agrava-se com o escândalo da Clínica londrina Tavistock, especializada em disforia do género e onde crianças e jovens foram sujeitos irresponsavelmente a tratamentos irreversíveis, arriscando-se agora a ser processada por cerca de mil famílias.

Vivemos tempos perigosos para a inteligência e nem sequer podemos culpar os Romano.
 

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