domingo, 14 de agosto de 2022

Infiltrado na extrema-direita: Portugal mostra que qualquer país “pode ser infectado”

Poucos conhecem tão bem a extrema-direita como Joe Mulhall. Este antifascista inglês infiltrou-se várias vezes em movimentos radicais para expor o seu perigo ao grande público. Na última década, ideias racistas e xenófobas, antes marginais, ganharam expressão em várias sociedades. “Estamos a perder”, alerta.

Pedro Rios 14 de Agosto de 2022

Dia da Independência da Polónia, uma data importante para a extrema-direita internacional SEAN GALLUP/GETTY IMAGES


Bama ofereceu-lhe whisky caseiro com 38 anos. Bama deixou-o dormir na sua casa. Bama enrolou-lhe um charro – de erva americana, fez questão de garantir, não daquela vinda do México. Bama fora um amigo, hospitaleiro como os americanos do Sul sabem ser. Mas Bama chamava “preto” a Obama e receava a guerra civil que julgava iminente – “a primeira coisa que vamos fazer é arrasar as mesquitas”. Bama não se ficava pelas palavras: integrava os Border Keepers of Alabama (Guardiães das Fronteiras do Alabama), uma milícia “caça-migrantes” de extrema-direita, armada com metralhadoras semi-automáticas.

Os Border Keepers of Alabama SOUTHERN POVERTY LAW CENTER



Com colete antibalas enfeitado com a bandeira americana, o inglês Joe Mulhall participou numa dessas noites de patrulha no deserto, à caça de traficantes de droga. Decorara a história que lhe servia de cobertura: era um jornalista britânico que simpatizava com a luta destes “patriotas” americanos contra os cartéis de droga mexicanos e os “invasores muçulmanos”.

Não foi a primeira infiltração de Mulhall em grupos de extrema-direita (desde 2010 que trabalha na Hope Not Hate, a maior organização antifascista e anti-racista do Reino Unido), mas foi, “provavelmente”, a que mais o marcou. Naquele grupo paramilitar, conheceu “pessoas extremamente simpáticas e doces”, mas que falavam em “destruir mesquitas” e tinham um discurso “chocante” sobre pessoas negras. “Foi uma grande lição”, diz ao P2 o agora director de pesquisa da Hope Not Hate (deixou o trabalho de agente infiltrado), “porque é muito fácil pensar nas pessoas de extrema-direita enquanto monstros que não são como nós, como um mal abstracto”.

Pouco depois, a milícia e as suas actividades extremistas acabariam por ser expostas, não pela Hope Not Hate, mas pela ONG americana Southern Poverty Law Center. Mulhall sabia que tinha de fugir: os milicianos iriam achar que tinha sido ele a denunciá-los. Refugiou-se num hotel barato de Indianapólis e, em vez de descansar, retomou um projecto antigo: extrair informações do Ku Klux Klan (KKK) fingindo ter montado uma filial britânica do célebre movimento racista dos Estados Unidos. Para convencer Christ Barker, líder dos Leais Cavaleiros Brancos do KKK, enviou fotografias falsas em que aparecia a colar autocolantes do movimento em postes de iluminação pública no Reino Unido. Conseguiu: ganhou a confiança de Barker e obteve informações sensíveis sobre o Klan (fotografias, nomes, moradas, contactos) que a Hope Not Hate usou numa investigação publicada no jornal britânico The Observer.

Joe Mulhall infiltrado nos Border Keepers of Alabama JOE MULHALL


Mulhall teve (outra vez) de fugir. Está habituado a viver sob ameaça: já foi atirado por escadas abaixo, alvo de uma tentativa de atropelamento e de uma campanha de calúnias, e viu os nomes e endereços de familiares tornados públicos pela extrema-direita. Já se infiltrou em movimentos racistas, fugiu de radicais furiosos depois de fotografar ou filmar dirigentes da extrema-direita em manifestações, técnica que ajuda na monitorização e no mapeamento contínuo destes movimentos e de quem deles faz parte. Assistiu a centenas de protestos e foi mesmo à Índia de Narendra Modi conhecer o nacionalismo hindu e a hostilidade para com os muçulmanos.

Todas essas histórias estão em Tambores ao Longe – Incursões na Extrema-direita, editado recentemente em Portugal pela Temas e Debates. O livro retrata a extrema-direita nas suas várias modalidades e detalha o trabalho na Hope Not Hate. A organização procura apanhar os extremistas nos seus habitats, sem máscaras, mentiras ou truques de marketing, e expô-los ao grande público. “Muitas das figuras de extrema-direita que seguimos dizem uma coisa ao mundo e dizem uma coisa diferente quando estão no pub a beber com os amigos. É estando lá, passando tempo com eles, ouvindo-os quando pensam que ninguém os está a ouvir, que se consegue obter a história verdadeira do que se está a passar e daquilo em que acreditam.”
Um outro mundo

A primeira batalha de Joe Mulhall com o Hope Not Hate foi em Dagenham, cidade no leste de Londres marcada pelo declínio de uma fábrica da Ford que em 1953 chegou a empregar 40 mil operários. Em 2010, o British National Party (BNP), de Nick Griffin, capitalizava com essas ruínas. “Era um mundo diferente”, conta. O BNP era, então, o “partido de extrema-direita com mais sucesso da história britânica” e, ainda assim, tinha uma expressão residual a nível local e europeu (dois eurodeputados), e não tinha representação no parlamento nacional.

Graças a uma intervenção junto da comunidade local, o Hope Not Hate contribuiu para um resultado “desastroso” do BNP em Dagenham: perdeu todos os 12 lugares de vereador. Nos anos seguintes, o partido fascista praticamente desapareceu da cena política. “Lembro-me de estar com os meus colegas, em 2010, e rirmo-nos: ‘Bem, o que fazemos agora? Acho que podemos embalar as coisas e arranjar empregos normais’”. Parecia-lhe impensável que, uma década depois, o mundo se tornasse isto: o Reino Unido a querer sair da União Europeia depois de um referendo cujo resultado demonstrou a influência da direita radical na política britânica (já não o BNP, mas o UKIP); Trump, Bolsonaro e Modi e outros autoritários ou populistas a liderarem os EUA, o Brasil, a Índia, a Polónia e a Hungria; a extrema-direita a alcançar resultados assinaláveis na Alemanha, na Suécia, em França, Espanha e Portugal. Nas contas de Mulhall, mais de 1,9 mil milhões de pessoas viviam, em 2021, em países com governos autoritários de direita. O extremismo de direita está vivo, mais vivo do que alguma vez esteve desde o fim da II Guerra Mundial, defende. “A verdade é que agora estamos [o campo democrata] a perder”, escreve.

 Nick Griffin, do British National Party. Derrotar este partido em Dagenham foi a primeira vitória de Joe Mulhall no Hope Not Hate Paul Hackett

O livro conta como a direita radical – dos movimentos abertamente neonazis à alt-right aos grupos identitários e anti-islâmicos – conseguiu que as suas ideias se tornassem mais normais em várias sociedades. A ascensão do Chega em Portugal não é referida do livro, mas Mulhall está a par do sucesso do partido de André Ventura. “Muitas pessoas pensavam tradicionalmente que Portugal e, em certa medida, a Espanha seriam uma excepção” ao crescimento destas ideologias, nota. Mas também foi assim na Escandinávia, com uma cultura democrática forte, na Alemanha, apesar das memórias ainda vívidas do Holocausto, e noutros países, ao longo dos últimos 30 anos. “A Península Ibérica era uma excepção porque tinha democracias recentes, as pessoas nunca permitiriam este tipo de políticas. E agora isso está a ruir com o Vox, em Espanha, e o Chega, em Portugal”, lamenta. Conclui: “As políticas da extrema-direita e da direita radical podem infectar qualquer lugar.”

O ódio num clique

A par do crescimento eleitoral de várias forças de extrema-direita, nos últimos anos, vários países foram palco de atentados terroristas inspirados por ideias como da “grande substituição” – uma teoria da conspiração, sem base científica, segundo a qual a população branca está a ser substituída por migrantes, nomeadamente muçulmanos. Ventura levou essa teoria ao Parlamento.

Um terrorista inspira outros: o ataque contra muçulmanos em Christchurch, na Nova Zelândia, foi inspirado pelos actos de Anders Breivik, que em 2011 matou 77 pessoas na Noruega, e Dylann Roof, que em 2015 assassinou nove afro-americanos a tiro numa igreja de Charleston, na Carolina do Sul, Estados Unidos, entre outros. A polícia suspeita que o terrorista de Christchurch, Brenton Tarrant, então com 28 anos, terá contactado com grupos de extrema-direita de vários países europeus.

Ataque em Christchurch fez 51 mortes MICK TSIKAS/EPA

Esse atentado na Nova Zelândia foi transmitido em directo no Facebook porque a Internet os ajuda a “espalhar estas ideologias”, defende Mulhall. “A Internet mudou a forma como o terrorismo de extrema-direita opera. Muitas organizações terroristas que monitorizamos na Hope Not Hate contam com pessoas de todo o mundo, que partilham ideias além-fronteiras. A própria forma como preparam os ataques tem agora as redes sociais em linha de conta.” É por isso que muitos destes terroristas deixam pronto um manifesto à espera de ser divulgado – e de inspirar outros a agir como eles.

O terrorista de Christchurch transmitiu o ataque em directo nas redes sociais REDES SOCIAIS

A cultura de ódio que gerou Breivik, Roof e Tarrant é alimentada todos os dias em sites, aplicações de conversa e redes sociais. Para Mulhall, a Internet é mesmo um factor decisivo para o regresso em força de ideias que eram marginais desde o fim da II Guerra Mundial. “Há muitos livros sobre a extrema-direita e o populismo radical neste momento e fico sempre chocado com o facto de pouco referirem o papel da Internet nas últimas décadas”, critica.

O anonimato e a circulação de ideias permitidos pela Net reduziram muito os custos do activismo de extrema-direita. “Tornar-se um activista já não significa juntar-se a um grupo de extrema-direita local. Tradicionalmente, era preciso escrever uma carta para um ramo local ou encontrar os seus membros a espalhar panfletos pelas ruas. Se vivesses numa área rural podias nem te cruzar com isso. Agora, podes estar sentado no teu quarto em Inglaterra, em Portugal, na Alemanha ou no Brasil e consumir conteúdo de extrema-direita produzido algures no mundo. A facilidade com que se encontram negacionistas do Holocausto, anti-semitas, islamafóbos, todas essas teorias e ideias, é maior do que nunca. É tão fácil! Penso que isso explica, em parte, porque é que estamos a ver tantos jovens a serem arrastados para estas políticas. Podem fazê-lo a partir da segurança do quarto de uma forma que não era possível nos anos 90.”

Este mês, uma investigação do jornal britânico Guardian revelou a existência de um “ecossistema de extrema-direita” que procurava radicalizar crianças e jovens online, através de fóruns sobre videojogos, salas de chat privadas e panfletos sobre ideias radicais apresentados como “guias de estudo”.

Racista, eu?

Num Ocidente, onde os “aspectos comunais da sociedade ruíram ou desintegraram-se”, dando azo ao isolamento, os grupos radicais – em carne e osso ou na Internet – oferecem “um sentido de identidade e comunidade”, diz o perito inglês ao P2.

A Internet dá-lhes uma grande ajuda. Nela, o ódio circula a grande velocidade, ultrapassando fronteiras. Como lemos no livro de Joe Mulhall, “um islamófobo num dado país, revoltado pela oferta de frango halal [que respeita os princípios islâmicos] no seu restaurante local de fast food pode publicar um post nas redes sociais e a história circulará por toda a rede”. Essa mensagem de raiva pode ser distribuída por outros islamófobos que naquela história vão ver “mais uma ‘prova’ que os convencerá ainda mais da ameaça da ‘islamização’”.

Nos últimos anos, a extrema-direita soube crescer surfando a onda do sentimento anti-islâmico, particularmente grande desde os ataques de 11 de Setembro de 2001 e a crise dos migrantes na Europa. “Ao longo do século XX, a extrema-direita soube sempre encontrar formas de tentar entrar na corrente dominante. Escolhem assuntos que possam gerar simpatia no mainstream e que não gerem ostracismo. No Reino Unido, por exemplo, nos anos 1940, a extrema-direita era sobretudo anti-semita; depois, passou a ser mais antinegros e anti-indianos, porque há uma forte imigração dessa parte do mundo. No pós-11 de Setembro, tornou-se mais explicitamente antimuçulmana.”

Na crise dos migrantes, um movimento de extrema-direita, que juntou activistas de toda a Europa, chegou a alugar um navio para entrar em confronto com as equipas de busca e salvamento no mar Mediterrâneo. Deixar migrantes a morrer no mar não os preocupava, queriam inspirar o medo nas populações de países pobres que viam na Europa uma escapatória à miséria ou à guerra. Mulhall participou nos esforços, bem-sucedidos, para obrigar esse navio a parar num porto. A extrema-direita perdeu essa batalha.

Em vários países multiplicaram-se manifestações do Pegida, movimento fundado em 2014 que se opõe ao que diz ser a “islamização do Ocidente”. Num desses protestos, em Dresden, na Alemanha, Joe Mulhall viu “uma criança aos ombros do pai com o símbolo do Pegida e uma bandeira alemã”. Escreve: “Isto era, na realidade, muito mais assustador do que as iniciativas violentas da extrema-direita a que eu assistira em Inglaterra. Isto era normal. Era aceitável. Não eram skinheads a gritar ‘Sieg Heil!’ ou rufiões a entoarem cânticos futebolísticos. Eram famílias. Eram pessoas de aparência normal. Mulheres.”.

André Ventura na campanha para as eleições presidenciais de 2021 Nuno Ferreira Santos 

"A Península Ibérica era uma excepção porque tinha democracias recentes, as pessoas nunca permitiriam este tipo de políticas. E agora isso está a ruir com o Vox, em Espanha, e o Chega, em Portugal. As políticas da extrema-direita e da direita radical podem infectar qualquer lugar."


A “ira despertada pela crise dos migrantes” tinha “chegado a um ponto tal que o antes era inaceitável, na Alemanha, regressava agora à corrente dominante”?
Velhas ideias, novas vestes

Além de explorar o sentimento anti-islâmico, “nos últimos 30 anos”, a extrema-direita procurou modernizar-se e mudar a sua imagem, defende o especialista. “Perceberam que qualquer tipo de ligação óbvia à extrema-direita tradicional ou a políticas fascistas” levaria à rejeição por parte dos eleitores.

Por isso, rejeitam qualquer racismo biológico, dizendo estar “apenas” preocupados com o islão e a “identidade” nacional ou europeia. Em vez de botas e cabeças rapadas, optam por fatos próprios de políticos “respeitáveis”. Enquanto o BNP tinha autocolantes onde se pedia a ilegalização da homossexualidade, a English Defence League abriu uma Divisão LGBT. Marine Le Pen pegou na Frente Nacional e procurou libertá-la do fascismo mais despudorado, modernizando o partido, assumindo novas causas. Há extremistas que vêem na causa dos direitos dos animais, cada vez mais popular nas sociedades ocidentais, uma oportunidade encapotada para atacar muçulmanos e judeus, cujas regras para alimentação prevêem abates rituais.

A nova extrema-direita é transnacional: um manifestante com uma máscara de Trump durante um protesto pela libertação do activista inglês Tommy Robinson. Londres, 2018 Wiktor Szymanowicz


 Este esforço de distribuir velhas ideias racistas e xenófobas com novas vestes é visível, aponta, na teoria da “grande substituição”. “É um problema muito, muito importante neste momento porque é uma ideia de extrema-direita que não soa necessariamente a extrema-direita”, alerta. Apesar disso, esta teoria “inspirou ataques terroristas”, como provam vários manifestos dos autores dos atentados. “No coração da teoria está este apelo à acção: sejamos activos ou seremos substituídos enquanto povo. Para algumas pessoas, ser activo significa colocar um pano numa ponte ou distribuir panfletos, mas para outros significa pegar numa arma e entrar numa mesquita em Christchurch e eliminar pessoas.”

Como Bama e outros Guardiães das Fronteiras do Alabama mostraram a Mulhall, “as pessoas normais fazem coisas terríveis”, “radicalizam-se”. “E aprendemos isso com a história: não é como se o Holocausto tivesse sido perpretrado por um pequeno número de pessoas, foi perpretrado por dezenas de milhares de pessoas”, reforça.

Foi também isso que Mulhall sentiu em Novembro de 2018, na Polónia. Ele e um colega da Hope Not Hate infiltraram-se na manifestação do Dia da Independência, um grande acontecimento que se tornou uma das principais datas do calendário da extrema-direita internacional. Viajaram para a Polónia para fotografar participantes vindos de outros países e comunicar à Hope Not Hate as descobertas. Nas ruas de Varsóvia juntaram-se nacionalistas tradicionais a nazis e activistas de movimentos modernos da extrema-direita transnacional, como a alt-right, os identitários e os contrajihadistas anti-muçulmanos.

“Foi um dia muito deprimente”, resume. Entre bandeiras, tambores, cânticos e foguetes avermelhados a rebentar, o activista constatou dois processos que “vemos em diferentes partes do mundo”: a “normalização” das ideias de extrema-direita e a transformação dos líderes radicais em figuras “aceitáveis”, bem vestidas, aparentemente políticos como os outros. Espantou-o que naquela manifestação o próprio Presidente polaco desfilasse poucos metros à frente de bandeiras fascistas. “Não se estavam a esconder, estavam na frente e no centro da manifestação. E ver o Presidente não se preocupar com isso foi extremamente assustador”, conta.


Jovens identitários em França ERIC BERACASSAT/GAMMA-RAPHO VIA GETTY IMAGES

Não foi só Andrzej Duda que não se demarcava dos elementos fascistas ou mesmo neonazis da manifestação: “dezenas ou até centenas de milhares de pessoas”, “pessoas normais”, não pareciam “preocupadas” com a presença de extremistas. “Penso que isso é uma lição muito importante para nós porque, como digo no fim do livro, se perdemos esta batalha contra a extrema-direita, não será porque toda a gente se tornou fascista. Será porque não houve pessoas suficientes a preocuparem-se com os que o são.”

A 7000 quilómetros de Varsóvia, outro Presidente legitimou – ou, segundo muitos observadores, até incentivou – uma acção violenta contra uma instituição essencial. A invasão do Capitólio, em Washington, D.C., mostrou uma aliança de um Trump insatisfeito pela derrota nas Presidenciais a grupos minoritários, extremistas, irados com a vitória de Joe Biden. Mulhall não ficou tão surpreendido como outros perante o motim no centro legislativo dos Estados Unidos: afinal, muitos extremistas de direita andavam “há anos a dizer que iam fazer isto. E fizeram”. Esse motim, a 6 de Janeiro de 2021, deve servir de “lembrete de que quando a extrema-direita diz que vai fazer algo terrível pode muito bem fazê-lo” – é preciso ouvi-la e agir. E em Outubro, nas eleições presidenciais brasileiras, pode acontecer algo idêntico, avisa.

“Bolsonaro já está a tentar levantar dúvidas sobre o sistema eleitoral. Ele anda a dizer que não acredita na democracia há décadas – a extrema-direita pode pedir o teu voto, mas não acredita em democracia”, alerta. “Podemos já ver o que ele está a planear em caso de derrota, o que parece que vai acontecer. Ele diz que prefere uma ditadura militar, por isso, não fiquemos surpreendidos em Outubro se, perdendo as eleições, ele começar a desmantelar a democracia. Não seria surpreendente. A extrema-direita faz coisas terríveis, mas com frequência avisam-nos que vão fazê-las. Por isso, preparemo-nos.”

Tirar o palco

Nos últimos anos, serviços como o Facebook e o YouTube baniram figuras de extrema-direita como o inglês Tommy Robinson e o norte-americano Alex Jones. Há quem se oponha a práticas como esta (o chamado deplatforming) considerando que as ideias combatem-se com outras ideias. Uma visão “ingénua”, contrapõe Mulhall.

“Esta ideia de que há um ‘mercado das ideias’ em que a verdade prevalecerá, que o argumento com melhores méritos e valores, e mais factual vence sempre seria maravilhosa se correspondesse à verdade. Mas não corresponde. Há também estas pessoas que dizem que a luz do sol é o melhor desinfectante, mas não é [risos]. Há 70 anos que se nega o Holocausto. Quantas vezes mais teremos de vencer esse debate? Tivemos o fascismo, vimos onde o fascismo nos leva, com as câmaras de gás. Quantas vezes mais teremos de vencer esse debate para que essas ideias desapareçam? Não funciona assim”, sublinha. “Não é assim que a Internet funciona. Quem grita mais alto, ganha.”


Alex Jones numa acção de apoio ao então candidato presidencial Donald Trump, em 2016 LUCAS JACKSON/REUTERS


É por isso que organizações como a Hope Not Hate pedem aos gigantes tecnológicos uma maior moderação das suas redes sociais e plataformas e a eliminação de perfis que espalham conteúdo de ódio. “Não é uma supressão da liberdade de expressão”, argumenta Mulhall, mas sim a resposta adequada a quem “ameaça a democracia”. “Ao suprimir as vozes mais extremas, tóxicas e violentas da nossa sociedade, o que fazemos, na verdade, é abrir praças públicas onde decorram debates mais alargados. O que fazemos, na verdade, é aumentar o número de vozes que podem ser ouvidas. Hoje, há um conjunto de mulheres que não estão nas redes sociais por causa das ameaças vis que recebem. O mesmo para pessoas não brancas, o mesmo para pessoas LGBT”.

E o deplatforming funciona, garante o antifascista. Dá o exemplo de Tommy Robinson, activista britânico antimuçulmano, que chegou a ser seguido por mais de um milhão de pessoas no Facebook, antes de ser banido dessa e de outras plataformas. “Durante a maior parte do período do pós-guerra, fascistas, extremistas e racistas de extrema-direita não tinham acesso aos debates políticos mainstream. Eram marginalizados”, conta. A ida do fascista Nick Griffin, líder do BNP, a um programa da BBC, em 2009, gerou grande contestação e até uma manifestação.

Hoje, as redes sociais ofereceram a políticos e ideólogos “uma plataforma onde podem, de novo, alcançar milhões de pessoas.” Depois de ser banido do Facebook, Twitter e YouTube, quando Tommy Robinson “organiza um protesto pode chegar aos mil participantes”, muito longe das “manifestações com 18 mil pessoas” de há apenas quatro anos. A luta de Mulhall faz-se todos os dias.

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