segunda-feira, 15 de agosto de 2022

As raízes revolucionárias do pânico satânico ainda usado na política americana

As raízes revolucionárias do pânico satânico ainda usado na política americana


O uso do diabo no discurso político norte-americano está bem vivo na campanha eleitoral deste ano. É uma tradição que remonta à Revolução Americana.




Zara Anishanslin 15 de Agosto de 2022


 A efígie do diabo num protesto em Los Angeles, em 2011. O uso de Satanás na política norte-americana remonta aos tempos da revolução Reuters


O diabo é popular na cultura política de 2022. A congressista Marjorie Taylor Greene, defendeu em Abril que satanás controla a Igreja Católica e que o aborto é “uma mentira que satanás vende às mulheres”.

Em Maio, Kandiss Taylor, candidata republicana a governadora da Georgia anunciou que ela era “a ÚNICA candidata suficientemente arrojada para enfrentar a cabala luciferina”. Nesse mês, as ideias popularizadas pelo QAnon, sobre o regresso do “pânico satânico” dos anos 1980, causou um alvoroço moral com base em relatórios infundados de abusos de crianças em rituais satânicos.

O “pânico satânico” também foi uma tendência no Twitter em Julho, em reacção à quarta temporada série Stranger Things, que inclui uma história sobre o The Hellfire Club a jogar Dungeons & Dragons e se passa, como o pânico satânico original, nos anos 1980.

Mas as raízes de americanos a invocar o diabo com fins políticos vão mais longe que os anos 1980. Chegam até à Revolução Americana. Compreender esta história alarga o nosso entendimento não só da era revolucionária, como da forma em que as ligações entre religião e política persistem até aos dias de hoje numa nação onde Estado e igreja estão ostensivamente separados.

A história do uso do diabo como dispositivo político pelos patriotas da era revolucionária também ajuda a dar sentido à razão pela qual o diabo continua a ser um instrumento popular entre os políticos contemporâneos com uma agenda nacionalista cristã branca.

Na altura em que a guerra da independência dos Estados Unidos começou, o fascínio e a familiaridade com o diabo eram generalizadas, fomentado em primeiro pelo puritanismo e depois pelo primeiro Grande Despertar.

Desde os primeiros dias da fixação europeia na Nova Inglaterra que as ideias sobre o diabo alimentaram estereótipos fanáticos sobre os indígenas americanos, entrelaçando o medo do diabo com o sentido de identidade própria dos americanos.

Por exemplo, Cotton Mather proclamou em 1693 que “os neo-ingleses são um povo de Deus instalado em terras do diabo”. Mais tarde, o famoso sermão de Jonathan Edwards de 1741, Pecadores nas Mãos de um Deus Irado, avisava os colonizadores que “o diabo estava pronto a cair sobre eles e a tomá-los como seus”.

Para lá de Nova Inglaterra, o diabo era importante para as seitas pietistas alemãs na Pensilvânia como os Morávios, enquanto os líderes evangélicos no Sul agonizavam sobre como usar o fascínio generalizado com satanás em proveito próprio. O diabo era comum, um símbolo partilhado por vários povos, religiões e geografias de colonos americanos.

E os colonos não tinham de ser evangélicos, ou mesmo religiosos, para estarem familiarizados com o diabo. Satanás inspirava tanto o humor brejeiro como o medo das chamas do Inferno e o seu fascínio popular era generalizado, aparecendo tanto em lendas populares como em sermões de pastores.

O diabo estava omnipresente nas festas anticatólicas da Noite do Papa na Boston colonial e noutros lados. As celebrações da Noite do Papa (ou Dia do Papa) eram versões coloniais das celebrações da Noite de Guy Fawkes, um feriado inglês que assinalava a descoberta da “conspiração da pólvora” católica para fazer explodir o rei (protestante) e o Parlamento. Na Nova Inglaterra, era um acontecimento barulhento regado a álcool. Os homens marchavam pelas ruas com efígies do “Papa” ao lado do diabo (habitualmente coberto com alcatrão e penas) até os queimarem num ritual.

Quando se intensificaram os protestos contra os britânicos nos anos 1760, as celebrações da Noite do Papa assumiram um novo significado. Passaram a servir tanto para difundir políticas patriotas como anticatólicas. As procissões nomeavam os comerciantes que se recusavam a boicotar os produtos britânicos, as autoridades coloniais leais à coroa e os ministros britânicos. Fosse qual fosse a política prevalecente, o diabo manteve-se uma constante.

No entanto, apesar de constante, o diabo desempenhou diferentes papéis e assumiu muitas formas na era revolucionária.

Além de desfilar pelas ruas como efígie cuja destruição deleitava o público, olhava de soslaio em cartoons e retratos. Aparecia em xilogravuras de almanaques e jornais e na ficção sensacionalista. Estava em todo o lado, em parte porque era uma forma fácil de articular a ideologia política em formas vivas e emotivas. Os patriotas usavam-no para espalhar a sua mensagem política de preservação da liberdade republicana dos políticos corruptos e dos governantes tirânicos, representando-os como familiares do diabo.

Durante a crise do Stamp Act de 1765-66, uma representação do diabo aparecia pendurada na que ficou conhecida como a “Árvore da Liberdade” de Boston, ao lado de uma efígie do cobrador do imposto de selo Andrew Oliver, que representava a tirania britânica.

Em Lebanon, Connecticut, como noticiou a imprensa local, o diabo “virou o seu traseiro e descarregou fogo, enxofre e alcatrão” sobre outra efígie de um cobrador de impostos. Na Carolina do Sul, “apareceu suspenso numa forca de 21 metros”, à direita de outra efígie de um cobrador do imposto de selo. E em Nova Iorque, manifestantes enforcaram uma efígie do vice-governador ao lado do diabo antes de lhe pegar fogo no parque Bowling Green.

Durante a guerra, o diabo surgiu quando a traição de Benedict Arnold foi descoberta. Em Filadélfia, Charles Wilson Peale criou uma efígie de um Arnold de duas caras que desfilou pela cidade acompanhada pelo diabo. Os pensilvanianos compravam gravuras da procissão para pendurarem em casa, enquanto outros viam imagens nas páginas de um almanaque em língua alemã. Imagens do diabo uniam os pensilvanianos de língua inglesa e de língua alemã numa cultura popular da revolução.

A presença constante do diabo nos protestos populares, assim como no material visual e literário da era revolucionária, reflecte a forma como os cristãos evangélicos inundaram a política revolucionária, mesmo quando muito dos líderes da elite e dos pensadores importantes da Revolução Americana – homens como George Washington, Thomas Jefferson, John Adams e Thomas Paine – não eram evangélicos.

Parte do apelo generalizado do diabo vinha do facto de, além das associações teológicas de longa data, ser regularmente associado com os esforços de “escravizar os americanos”.

Regularmente podia ser vista na cultura das gravuras, como símbolo “distintivo da escravidão”, uma imagem do diabo segurando um laço. O medo dos colonos de que o Stamp Act visava privar os americanos brancos dos seus direitos naturais – “escravizá-los” – manifestava-se especialmente em imagens do diabo.

O aspecto do diabo era importante. E na América colonial e revolucionária, o diabo era frequentemente retratado como um homem negro. Tanto nas ilustrações do diabo no relato dos Julgamentos das Bruxas de Salem, de Cotton Mather como nas gravuras de Paul Revere o diabo aparecia com pele negra.

Esse tipo de representações jogava com o racismo e o medo de uma revolta de escravos que restringisse a revolução. Também mostrava claramente que o uso do diabo na cultura popular revolucionária ia além da cultura religiosa. O uso de diabos negros nas gravuras e efígies invocava um medo fabricado dos negros que os americanos brancos usaram com fins políticos antes, durante e depois da revolução.

De Norte a Sul, os diabos cujas efígies eram estrelas dos protestos não sobreviveram a era revolucionária; a sua destruição física era o ponto final desses protestos. E as muitas imagens do diabo publicadas nos jornais ou impressas nos almanaques na era revolucionária são muitas vezes postos de parte como má arte. Mas essas representações, embora efémeras, têm importância histórica. Uma cultura popular forte e emotiva com o diabo no centro que ajudava a mobilizar as pessoas para o protesto e a guerra. O diabo foi, por isso, uma figura fundadora no léxico político americano.

As figuras sobrenaturais, como diabos e fantasmas, muitas vezes tornam-se pedras de toque em tempos de crise social ou convulsão como revoluções e agitação civil. São mecanismos prontos para transformar o medo – de mudança, de perda, de segurança – numa resposta política colectiva. Foi isso que aconteceu nos anos 1980, quando surgiu um pânico satânico moderno em resposta a transformações sociais e políticas com que nem todos os americanos concordavam. O diabo era um conveniente substituto de todo o tipo de vilões nos anos 1980, como já tinha sido na era revolucionária.

Da mesma forma, hoje, a sua popularidade como tema de declarações entre os brancos nacionalistas cristãos candidatos a um cargo eleitoral, mostra como o diabo continua a funcionar como ferramenta política para anunciar o apoio “patriota” à “liberdade” e a uma agenda racista num tempo de divisão partidária. O diabo, parece, continua a ter o seu dia.

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