sábado, 14 de junho de 2014

O Newspeak e o povinho que não precisa de gramática

ALBERTO PINTO NOGUEIRA

12/06/2014

Sofia de Mello Breyner é uma das maiores poetisas portuguesas. Foi deputada. Na Assembleia da República, chamou a atenção para um projecto legislativo que continha erros gramaticais. Um deputado da maioria retorquiu: “O povinho não precisa de gramática”.

Passaram-se décadas.

A adicionar aos erros de gramática, aguentamos agora com o recurso a uma linguagem vazia, equívoca e, em muitos casos, sem sentido algum. Passam a ideia de que não querem ser entendidos. Que apenas jogam com palavras.

Adoptaram uma novel linguagem. Falam entre e para eles. Se mesmo eles se entendem. Palavras que não têm nada lá dentro. Diria o poeta.

O primeiro-ministro é pródigo nessas nuances literárias. Convoca uma terminologia muitas vezes desconforme ao cargo que ocupa. No congresso do seu partido, reportando-se a novas medidas de austeridade, revelou-se particularmente infeliz. Nem mais, nem menos, afirmou que as próximas “pancadas” seriam menos toleradas pelos portugueses.

Tratando-se de “pancadas”, a metáfora não cabe na relação entre um chefe do Governo e cidadãos. O português é muito rico a exprimir ideias com correcção. Quando há ideias e não só palavras.

Ao primeiro-ministro cabem outras criações terminológicas. Plenas de significado político e não só. O desemprego é “libertação”. Engrossar as centenas de milhares nessa situação, chama-se “libertar do emprego”. O desempregado, sem trabalho e sem salário, é um homem liberto. Livre!

A criatividade linguística deste Governo é ilimitada. Divide e provoca dissensões entre cidadãos.

A reforma ou a pensão, de acordo com a lei, após dezenas de anos de trabalho, não são um direito, são um privilégio, favor do Governo. A lei vigente não conta, só a que faz a la carte, para a ajustar à sua política.

“Recalibra” as reformas! “Recalibrar” é aumentar o imposto que sobre elas recai.

Fica possesso se lhe contestam a verdade da sua política. Logo proclama a sua legitimidade e diaboliza o adversário. Imagina-se o exclusivo órgão do poder com legitimidade democrática!

O Tribunal Constitucional (TC) disse-lhe que não.

Abespinhou-se. Protestou, fez comícios, entrevistas, quase injuriou os juízes. Exonerá-los-ia com o simplismo com que revoga as leis que não lhe agradam. Exige outro e mais escrutínio. Às ordens dele. A Constituição (sempre a Constituição!) não permite. Ultrapassou, de longe, a crítica democrática. Transmitiu um péssimo exemplo de falta de postura de Estado. Agiu como um grupo de contestários. Não como um Governo.

É “inconseguimento frustracional de power sagrado soft”, “desalavancagem”, “imotivação”, “requalificação de funcionários”, “mobilidade especial”, “aclaração” que é “nulidade”, “chumbo do TC”, “ajustamento”, “buraco e almofada financeiros”, a “narrativa”. Há uma “narrativa” para tudo e para todos os gostos, sem gosto nenhum.

O mais significativo deste newspeak governamental chama-se "reforma do Estado". O seu cerne, já se sabe, são os cortes. Nada se pensa ou faz que vá para além de cortes nos rendimentos. O resto é o deserto de ideias e de factos. Esbarra com a incompetência e interesses instalados, com a clientela.

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