segunda-feira, 28 de abril de 2014

Pouca terra, pouca terra, úu-úu: emprestaria dinheiro a uma economia viciada no automóvel?



NICOLAU DO VALE PAIS



O abandono da ferrovia foi um dos mais graves erros do Portugal democrático. Num curto espaço de tempo - 30 anos em História não são nada -, as auto-estradas passaram de poucas, ou nenhumas, para serem muitas e até demasiadas; a rodovia e o automóvel já ganharam muita eleição com a sua capacidade demagógica de "gerar desenvolvimento infra-estrutural", cuja visibilidade saloia e triunfal fez esquecer a incomportabilidade do custo diário do uso do automóvel. Erros de escala, impactos ambientais e a falta de planeamento estratégico de um território sem agricultura, que "já não cabe" nas grandes cidades, são resultados evidentes para quem olhe com olhos de ver para a situação. O tíbio sonho de "um carro e uma casa", nascido de resposta torpe e voluntarista à miséria do Salazarismo, foi explorado até ao tutano pelo eleitoralista que há em todos nós - um domingo à tarde a olhar para os milhares de carros em "lazer", ou um pouco de atenção à procissão de pesados nos quilómetros à volta das auto-estradas de acesso a Lisboa e Porto, farão prova rápida de que o problema económico também é cultural, ou é, sobretudo, cultural. É que enquanto Humberto Delgado tinha coluna vertebral para se apear de um comboio em Sta. Apolónia com um ar de vencedor, depois de uma campanha triunfal no Norte do país no longínquo ano de 1958, os nossos líderes insistem em deslocar-se em automóveis acima das suas possibilidades, quero dizer, das nossas possibilidades. Helena Garrido, directora deste jornal, já abordou esta semana o "PETI 3+" - o Plano de Estratégico de Transportes e Infra-estruturas" - lançado pelo Executivo, incluindo os seus méritos evidentes e dúvidas não tão óbvias. Saúdo, desde já, este plano que, não sendo perfeito como nenhum é, será, sem dúvida, muito melhor garantia de baixos prémios de risco para quem nos empresta dinheiro do que qualquer austeridade. O "3+" da sigla significa "competitividade, crescimento e coesão", algo que qualquer doutrina económica reconhece de caras como só sendo possível com investimento e com Estado; eu não emprestaria dinheiro barato a nenhuma economia dependente do automóvel, como é a nossa. É por demais evidente que - a par da ignorância sonsa de quem insiste em não ver a Educação, o Ambiente, a Ciência e a Cultura como os verdadeiros motores transversais de uma Economia centrada na prosperidade - o abandono da ferrovia foi um dos mais graves erros do Portugal democrático. A ferrovia tem um valor inestimável na mutualização de custos para as empresas (exportadoras, mas não só), um papel fundamental na redução de despesas de deslocação a título particular e um valor ambiental incomensurável, tanto ao nível da redução de emissões, como de impacto paisagístico e planeamento do território, tudo áreas em que o Estado regula, ou a actividade colapsa para os megapólios e para a especulação. Em conjunto com os transportes públicos (sobre carris ou não, debaixo de terra ou à superfície), a ferrovia é (ou devia ser) uma garantia fulcral para a subsistência de uma classe média de baixos salários. Como sabemos, o problema não está só no que se ganha ou se deixa de ganhar, mas também, e sobretudo, no que tem obrigatoriamente de se gastar para se continuar a ganhar, impostos incluídos. E das duas uma: ou pagamos impostos e temos investimentos, ou metemos a viola no saco e preparamo-nos para o pior. Talvez por causa destas evidências, e da paradoxal falta de popularidade das mesmas junto dos eleitores, países com outras tradições e implicações no desenho do modelo socioeconómico de e a partir da Revolução Industrial nunca tenham capitulado à ideia bacoca do automóvel como sinal de progresso (associam-no, isso sim, à demonstração de riqueza, que é uma coisa completamente diferente). Na Alemanha, quando se requalifica um local como Potsdamer Platz (em Berlim), chamam-se os privados, sim, mas quem manda na festa é o interesse público - o edifício do Deutsche Bahn S.A., empresa de transporte ferroviário cujo principal accionista é o Estado, preside a toda a renovada praça; em Inglaterra, onde Baker Street é a estação de ferrovia debaixo de terra mais antiga do mundo, instituições como o Imperial College fomentam e financiam destemidamente centros de investigação como "Railway Transport and Strategy Centre", uma entidade destinada ao estudo e desenvolvimento económico e científico do papel dos transportes públicos; funciona desde 1992 e, entretanto, já vende "know-how" consultivo para todo o mundo.

Emprestaria dinheiro a uma economia viciada no automóvel? Sim, se lá houvesse petróleo.

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