quinta-feira, 24 de abril de 2014

O miúdo a olhar para o rio



por Baptista Bastos

O miúdo olhava para o rio e eu olhava para a montra de uma sapataria. A vitrina devolveu o rosto do miúdo, que me olhava, e eu olhei para o miúdo.


O miúdo olhava para o rio e eu olhava para a montra de uma sapataria. A vitrina devolveu o rosto do miúdo, que me olhava, e eu olhei para o miúdo. O miúdo sorriu-me e eu sorri para o miúdo. "Que está a fazer?", perguntou-me E eu: "Estou a matar o tempo." E ele: "O tempo morre, como as pessoas?" Não soube o que lhe responder. O miúdo aguardou uma resposta que não veio, encolheu os ombros e afastou-se. Era um desses miúdos que percorrem a cidade, que descobrem a cidade com o andar, e que a cidade resguarda, com o derradeiro afecto que lhe resta. Um desses miúdos com sonho de espaço. O miúdo fez-me lembrar outro miúdo. Um miúdo que se sentava junto de um velho carvalho. No alto da colina da Ajuda, e deixava as horas correr, lentas e mansas, olhando o rio. Esse olhar sempre fora a sua curiosidade activa, o seu sonho de espaço, o caminho que adivinhava para outros desconhecidos caminhos. O miúdo amava passear pelo baldio do Tejo, sentir os odores fortes da salsugem e do zarcão, passar as mãos pelas sirgas, acenar para os mareantes que também lhe diziam adeus nos seus barcos leves e céleres. E o miúdo também ia com eles naqueles barcos, cujas quilhas fendiam as águas, barcos com formas se lhe assemelhavam aos corpos de raparigas. O miúdo vogava no rio e ia para os mares antigos como se ele próprio fosse uma nave; uma nave de carne, de espírito e de fogo. O miúdo olhava para o Tejo e sentia um apelo remoto e enigmático. Por vezes, o miúdo falava com o rio, falava com ele a silenciosa linguagem do coração. Houve um dia em que do miúdo se aproximou um homem velho e sábio. Era velho porque o rosto estava curtido por mil sóis e mil rugas. E era sábio porque vivera o suficiente para entender que nada é definitivo, nada é eterno, a não ser o mar, o tempo e o espaço. O homem velho viajara por todas as ondas de todos os mares, aprendera a decifrar os mistérios dos ventos, a música branca dos luares, a liturgia dos sons que só se escutam nos oceanos, e a intensa poesia das vastidões. Observara, dias a fio, o miúdo espantado com o rio, sentado no tronco exposto de um carvalho, no alto da colina, e sorrira, com o enlevo de quem vê no outro, por pequeno que seja, um cúmplice e um companheiro. Sentou-se, também, e exprimiu ao miúdo o encanto dos sítios para aonde os rios e os mares o haviam conduzido. Eram histórias fabulosas, histórias de aventuras mas, sobretudo, histórias de liberdade. A liberdade a que o mar dá ensejo. A liberdade do mar. A liberdade, simplesmente. O homem velho, que sempre pertencera a todos os barcos, que percorrera todos os oceanos, que amara todas as águas de todos os mundos, ensinou ao miúdo atento que o vocabulário do mar era composto de presença, compromisso, pureza, evasão, risco, transcendência e vontade. Os meses vararam os anos, o miúdo cresceu, saiu da colina, transformou-se no homem de cabelos brancos que aqui está, e foi, por sua vez, percorrer aqueles mares encantados que estavam reservados aos sonhos dos que amam e por isso sonham. Afasto-me da montra. Caminho, vagarosamente, pela rua abaixo. As pessoas cruzam-se, trespassam-se, desconhecem-se umas às outras, enfiadas nas suas tristezas, mergulhadas nas suas inquietações, nos seus pesares. Ninguém sorri. Ninguém diz ao outro coisa alguma. Caminho até ao rio. Os barcos rumam de uma à outra margem. Alguns, enormes, estão parados no estuário. O miúdo de há bocado está sentado no que resta de uma antiga muralha. O miúdo olha-me e sorri. Eu a sorrir para mim próprio.

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