quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Felicidade Pública (6): As aparências iludem?



Em Novembro passado aconteceu na Cidade do México uma exposição intitulada “As aparências enganam: os vestidos de Frida Khalo”. Mulher-pintora-sofrida, conhecida no mundo pela forma como viveu e deixou manifesta a sua permanente dor física, expressou-se também através da sua roupa.

Apostava em peças da cultura indígena, e tentava com elas distrair a atenção do seu corpo incapacitado, imperfeito, tortuoso, incessantemente dorido. A sua roupa – uma camada exterior que testemunhava luta e excentricidade, e servia como meio para exercer o poder possível sobre o incontrolável padecimento – exibia convicções e toureava as aparências.

Foi nisto que pensei quando soube de uma história vivida há um par de meses por uma família em Espanha. Uma aberração escandalosa, onde as aparências imperaram, também por marcas num corpo: um casal com uma filha de 11 anos viu-lhes ser retirada a custódia da menina pelas mãos dos profissionais (educadores, psicólogos, juízes) que consideraram que ela tinha o corpo martirizado por acusadoras marcas de queimaduras de cigarros.

Alguém a viu a brincar no recreio e iniciou a suspeita, passou para os profissionais de psicologia, que avançaram com a queixa aos serviços de proteção de menores, que por sua vez encaminharam para os tribunais, que acabaram por decidir prender os progenitores e institucionalizar a criança apesar, e além, das desesperadas lágrimas de negação, espanto e indignação da menina e dos pais.

Semanas depois, no entanto, emergia um outro veredicto: as marcas eram devidas a uma dermatose. Sim, uma doença de pele.

Aberto o inquérito, os profissionais envolvidos referiram que cumpriram (apenas) com os protocolos. Atuaram rigorosos, sem tréguas, implacáveis.Dura lex, sed lex.

Como é que isto nos aconteceu? Quando é que a ditadura dos procedimentos nos cegou, nos ensurdeceu, nos distanciou tanto que deixámos de perguntar, olhos nos olhos, nos impedimos de escutar com tempo e calma, nos coibimos prudentes e solícitos de não galgar limiares que deveriam ser intransponíveis, nem pressupor o pior das pessoas como base ontológica da nossa ação? Quando é que a busca de provas exigentes, vindas de relações aprofundadas, passou a ser desqualificada – e com ela, as pessoas – e as calúnias, não enraizadas nas provas do real, passaram a ser feitas com tanta leveza? Quando começámos a suspeitar mais do que a confiar?

Aturdida, procuro respostas. Será excesso – já desvirtuado – de compromisso e de interesse público, neste contexto particular, altamente contratualizado, que é o da economia de mercado? Será medo desmesurado de não ver, de não ter talento suficiente para vigiar o mal, mergulhados que estamos numa quotidianidade distanciada dos corações alheios?

Será receio desproporcionado a não encontrar nada onde se devia encontrar algo? Pânico de não saber proteger da dor os mais vulneráveis, num medo alvoroçado face ao anonimato das muitas violências possíveis? Ou será antes um excesso de verdades pré-concebidas e de relações robóticas, vazias de humanidade, alérgicas ao sofrimento provocado pelos outros, mas cegas e surdas ao provocado pelos próprios? Pode ainda ser um sinal de receio de perder o emprego e a credibilidade profissional se não se souber identificar rapidamente um maltratante, retrato de uma sociedade implacável e impiedosa com os profissionais individuais, e que vulnerabiliza os laços laborais a cada dia, ao mesmo tempo que fere o sentido de coletivo. Pode até, quem sabe, ser atributo de uma sociedade voyeurista, de garimpeiros do horror alheio.

Trouxe a história estrangeira para não falar das nossas. Fazem-se referências a especialistas na área do abuso que são eles mesmos abusadores nas suas relações de trabalho com “subordinados”, transformando este tema num enredo desesperado. Quem salva quem, quem acusa quem, com base em quê e porque razões?


"Temos que voltar à bondade das relações e à expectativa positivamente perplexa do Outro. Precisamos sobretudo de parar a aceleração precipitada, imposta por um mundo implacavelmente veloz e hiperativo, e voltar a sentir."

Em cada decisão, como as múltiplas que foram tomadas nesta história verídica, editamos – quais operadores de câmara e realizadores da vida alheia – a biografia de alguém, e por isso a realidade de todos. Aumentamos a entropia do mundo, com as nossas levianas determinações do que é verdade, advindas de um mundo em que a preocupação central é avaliar e comparar, julgar e classificar, e em que cada vez mais gente tem o poder de o fazer, usando o seu ascendente face ao Outro. A ele, esse outro, definimo-lo nas suas fragilidades e perigosidades, mas, tão pouco e tão raramente, nas suas capacidades e potenciais. De cada vez que calarmos qualquer forma de abuso de poder, alimentamos a desvalorização das pessoas e concorremos para aumentar práticas de indignidade; assim erigiremos mais construções humanas opressivas, delimitadoras, destrutivas, elas mesmas abusadoras quando deveriam proteger da ofensa.

Como nos diz Kenneth Gergen no seu livro Relational Being/Ser(es) Relacionais, criámos um mundo de separações fundamentais, de seres isolados, e essa separação é um abuso em si mesmo. Separado, poderoso, cada profissional avalia, e assim se desresponsabiliza. Apontando, escapa-se ao processo, aliena-se e distancia-se – e assim será quanto mais poderoso se for, e quanto mais o Outro for indigente de poder. Os profissionais das ciências sociais e humanas sempre aprenderam a lidar com o erro do falso negativo; mas talvez precisamos agora de nos especializar a proteger os outros dos falsos positivos. Sem isso, estaremos sempre justificados para punir, encarcerar, criminalizar, até eliminar levianamente.

Não me interpretem mal: temos que manter as regras do jogo social e do mercado, contratualizar as relações, protocolizar as práticas; temos necessariamente que ser cuidadosos na atenção e nos detalhes, nas subtilezas da existência perigosa que ameaça a segurança, e ser pormenorizados e microscópicos na procura de potenciais riscos e males, em particular face aos mais lesáveis e desprotegidos como são as crianças – sim, indiscutivelmente!

Mas temos também que urgir na retoma de visões caleidoscópicas das pessoas e das coisas, e não perder o horizonte da maravilha do corrente. Entre o determinismo e a liberdade há muitos graus para aumentarmos a liberdade de viver em confluência relacional. Se assim não for, continuaremos a relacionar-nos como bolas de bilhar em colisão, qual Pleroma em que as leis da física imperam, como Carl Jung, e depois Gregory Bateson, Chris Kinman e K. Gergen referem, deixando escapar-nos o que está vivo, a Creatura, e com ela, a verdade do bem. Se só formos especialistas no mal, e no mal potencial, não saberemos também ser observadores do bem quotidiano. Se não soubermos coordenar as nossas perspectivas em diálogo, não seremos capazes de deliberações criticas.

Tanta formalização e medo tornaram-nos vazios de sensibilidade e bom senso. Tanto pessimismo desconfiado deixou-nos demasiado seguros. Talvez seja no optimismo face ao Outro que esteja contida a necessária dúvida.

Juan José Millás, muito apreciado jornalista espanhol, descreve no seu livroVidas ao Limite que se nalgum local aparecer um cadáver, demorará exatamente sete minutos a aparecer uma mosca. Fatal como o destino. Mas nós, criaturas humanas, temos que ir para além da busca do fétido e mórbido da humanidade. Precisamos de exploradores de virtuosidades, de especialistas em humanidade, e de ver mais do que uma única e terrível história perante as possíveis realidades e circunstâncias. Essa também, mas não apenas essa.

Temos que voltar à bondade das relações e à expectativa positivamente perplexa do Outro. Precisamos sobretudo de parar a aceleração precipitada, imposta por um mundo implacavelmente veloz e hiperativo, e voltar a sentir. Para isso são precisos muito mais que sete minutos.

É que definharemos se privarmos a vida da sua dimensão de beleza, e se as aparências não forem apenas isso: roupagem que esconde o fundamental.

Como dizia Robin Williams no filme que imortalizou Patch Adams: “Não permitas que eles te anestesiem ao milagre da vida”.

Referência:
Gergen, K. J. (2009), Relational Being: Beyond Self and Community, New York: Oxford University Press.
Millás, J. J. (2012), Vidas al Límite, Seix Barral.

Helena Marujo é professora universitária no ISCSP/UTL. A autora escreve ao abrigo do acordo ortográfico.

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