quinta-feira, 17 de outubro de 2013

CAVACO SILVA, O FUNCIONÁRIO, O CHEFE E O PRINCÍPIO DA INCERTEZA


Julgo que, a maioria dos portugueses, mesmo os que sempre votaram nele, vêem hoje Cavaco Silva como um problema no meio da crise em que estão mergulhados. Penso que essa visão resulta do desajustamento que sentem entre a natureza dele e as qualidades necessárias para o desempenho do cargo de presidente da República. Mas Cavaco Silva é também um perigo. Tanto maior porque inconsciente.

Estou convencido de que Cavaco Silva tem a ideia de si de ser um honesto funcionário cumpridor dos seus deveres. Mas também a de que a presente situação de Portugal não é da sua responsabilidade. Foram os outros, o “eles”, essa recorrente figura fora de nós, que tramaram isto tudo. Penso que o primeiro desajustamento de Cavaco Silva resulta da sua pobre visão da História de Portugal: de esta ser para ele uma longa e confusa trapalhada, cujos pormenores abandonou depois do distante exame da antiga quarta classe do ensino primário obrigatório no Estado Novo (Língua e História Pátria), antes de ingressar na Escola Comercial e Industrial para se fazer contabilista.

Acontece que Aníbal Cavaco Silva chegou a chefe de Estado Português, já em segundo mandato, e é o político que mais tempo esteve à frente de um governo (1985/1995) desde o 25 de Abril de 1974. Quer isto dizer que, além de se ter feito por si, subido a pulso na vida, devia ter outras qualidades que o levaram a ser reconhecido pelos portugueses. As atuais críticas de vastos setores da sociedade, por vezes a raiar a humilhação, tornam claro que tais atributos não são (nunca foram) suficientes, nem os adequados e que, fossem quais fossem, se esgotaram.

O comportamento de Cavaco Silva desde o derrube do governo Sócrates, a fingida surpresa que revelou pelo impacto das medidas da troika, o seu visível e doloroso atarantamento durante a crise do governo deste verão, provocada por Gaspar e Paulo Portas, a ofensiva inabilidade com que não deu um sinal de vida aos bombeiros que se desesperavam nos fogos, a quase obscena veneração demonstrada na morte do aristocrático economista António Borges, comprovam que ultrapassou o seu nível de incompetência, o do principio de Peter, de que, num sistema hierárquico, todo o funcionário tende a ser promovido até ao seu nível de incompetência.

Este facto não teria importância, se ele estivesse no seu estado natural de funcionário, no gabinete de estudos do Banco de Portugal e lá se entretivesse a fazer umas contas e a dar uns pareceres. O problema é que ele excedeu o seu nível de incompetência fazendo-se (com os votos democráticos, saliente-se) chefe do governo e chefe de Estado! Aconteceu-lhe mais ou menos como a um chefe de naipe de instrumentos uma banda do Exército que, em vez de se esgotar a tocar as marchas militares, passasse a chefe de estado-maior e, por fim, a comandante-chefe em tempo de guerra só por soprar notas mais estridentes do que os comparsas!

Entre parêntesis, sou dos que considera desastrosa a atuação de Cavaco Silva como primeiro-ministro (a sua maior obra foi o bando do BPN), mas que os fundos europeus e a modéstia da performance de outros ocupantes no cargo, nenhum particularmente dotado, disfarçaram as suas naturais limitações e esconderam a luta contra a sua natureza, que travou entre 1985 e 1995.

O desajustamento entre as qualidades de um funcionário e de um chefe tornou-se gritante quando foi eleito para a chefia do Estado. Supremo Magistrado! Comandante Supremo das Forças Armadas! Titular do órgão unipessoal de soberania! Símbolo Nacional, juntamente com a bandeira e o hino! Não se tratou de areia demais para aquela camioneta, mas de uma carga completamente desajustada àquela camioneta. Como se alguém tentasse transportar passageiros num autotanque!

Existem milhentas teorias sobre organização de grupos e empresas que explicam o que é ser chefe, líder, mas acredito que nenhuma elucidará Cavaco Silva de que a qualidade essencial do chefe é transmitir certeza! Que a confiança dos outros resulta da certeza, real ou fictícia, de que o chefe sabe onde está e para onde vai, que ultrapassará as dificuldades e os perigos; que, mesmo com perdas e danos, chegará com os seus a bom porto.

Ser chefe é estar certo para lá da racionalidade. É oferecer a certeza que salva se o seguirem. Cavaco Silva é apenas, como no título de um romance de Ramada Curto, “O homem que se arranjou”. Ao contrário de um chefe, reflete as incertezas dos que devia orientar. Aprofunda-as. Desaparece e deixa a desesperante mensagem de que não existe: Não esperem nada de mim. Salve-se quem puder!

O maior risco que o desajustamento de Cavaco Silva à função representa, nesta época tão incerta, resulta de termos eleito como chefe de Estado um homem que gera e nos acrescenta incerteza, egoísmo e desespero, porque isso pode fazer com que, num futuro, aceitemos alguém que prometa salvar-nos com as suas certezas, sem o termos escolhido, só para compensar.



 



Carlos Matos Gomes/Carlos Vale Ferraz







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