sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Multiplicação dos pães e da fome

Por Carlos Pimenta
publicado em 5 Abr 2013

1. Se já emprestou dinheiro a um amigo sabe que ficou sem essa maquia, temporariamente se ele pagar, definitivamente se tal não acontecer.

Libertemos a imaginação. Para não ficar sem esse dinheiro imprime uns documentos que diz serem uma promessa de pagamento aos seus possuidores de um determinado montante da dívida que o seu amigo contraiu para consigo. Vende esses “documentos financeiros” prometendo uma taxa de juro compensadora. Como suspeita que terá dificuldades em vender, pede a um familiar que afiance aqueles “títulos”, reembolsando os compradores, se alguma coisa correr mal. Ainda pode tomar uma iniciativa adicional: contrata uma empresa, pagando-lhe, para que divulgue “cientificamente” que aqueles títulos são bons. Resultado, vendeu tudo.

 
Gerou-se o milagre. Emprestou ao seu amigo, que talvez nunca pague, mas já recebeu mais do que lhe entregou. Até poderá continuar a emprestar, mesmo a quem sabe que não tem possibilidades de pagar. Basta mostrar-lhes que o futuro é o melhor dos mundos. E se surgir algum entrave burocrático há sempre algum dinheiro para desenferrujar dificuldades.

2. Eu sei. Esta história parece-lhe mal contada. Mesmo sendo empreendedor não o conseguiria fazer.

Tem razão, mas muitas instituições bancárias, seguradoras e empresas de rating o fizeram. “Venderam latão por ouro”, criaram uma imensa teia de conflitos de interesse, alimentaram a fraude e a corrupção. Viveram o sonho do capitalismo sem regulação do Estado, onde o dinheiro gerava dinheiro, sem agricultura, sem indústria e outras actividades carentes de trabalho produtivo. Anunciava-se um futuro radioso sem crises, ao mesmo tempo que se agravavam as desigualdades sociais.

Viveu-se acima das suas possibilidades! O leitor? O seu amigo que lhe pediu emprestado? Não. Foi o núcleo empreendedor e dinâmico da elite financeira mundial que viveu acima das suas possibilidades, arrastando as sociedades para essa voragem galopante. Tão acima das suas possibilidades que, quando a crise se lhes atravessou no caminho, em 2007/8, havia uma dívida que não era pagável, de algumas dezenas de vezes o produto mundial anual.

3. O eticamente responsável seria fazer com que esse mundo da alta finança pagasse os desvarios que cometeu. Custasse o que lhes custasse. Mas a realidade não é cor-de-rosa porque quem tem o poder económico também está perto do poder político.

Longe da ética e da dignidade humana o caminho percorrido foi outro. Meteram nas nossas cabeças que nós é que éramos os culpados e precisávamos de pagar a dívida da fraude que os outros cometeram. Depois, especularam sobre os produtos alimentares e energéticos, responsabilizaram os cidadãos honestos pelo pagamento da dívida dos Estados. E assim se conseguiu aumentar as desigualdades sociais já antes brutais.

Como é que nós, cidadãos arrastados para mais desemprego e precarização poderemos pagar tais dívidas? Pagando mais impostos, não tendo direito a saúde e educação, passando fome. Entregando-lhes as contas bancárias e outros seus haveres. Transformando em barras de ouro exportadas as suas recordações dos ancestrais. Talvez amanhã entregando-lhes a mobília ou algum órgão humano comercializável.

Pensando bem, há uma outra “solução”: matar uma parte da população. Só tem um pequeno problema: se quem trabalha nos sectores produtivos morre eles também morrem.

4. Histórias das Arábias ou de África? De alguma temível ditadura?

Não, das democracias e do local onde o leitor vive.

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