sábado, 28 de setembro de 2013

Carta de Putin sobre a Siria



Carta-aberta de Putin ao povo norte-americano, publicada no New York Times (11/9/13)
 


Vladimir V. Putin (New York Times)

Os recentes acontecimentos relacionados à Síria levam-me a dirigir-me diretamente ao povo norte-americano e aos seus líderes políticos. É importante que o faça, num momento em que não há suficiente comunicação entre nossas sociedades.

As nossas relações passaram por diferentes etapas. Enfrentamo-nos durante a Guerra Fria, mas também fomos aliados uma vez e, juntos, derrotamos os nazis. Criou-se então a Organização das Nações Unidas, para evitar voltasse a acontecer tal devastação.

Os fundadores das Nações Unidas perceberam que as decisões que afetam a guerra e a paz devem ser tomadas sempre por consenso e, com a anuência dos Estados Unidos, o direito de veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança está consagrado na Carta das Nações Unidas. A profunda sabedoria que se condensa nesse dispositivo tem servido de base, há décadas, para a estabilidade das relações internacionais.

Ninguém deseja para a ONU o destino que teve a Liga das Nações, que entrou em colapso porque não tinha influência real. Mas é o que pode acontecer, se os países influentes ignorarem a ONU e optarem por uma ação militar sem a autorização do Conselho de Segurança.

O potencial ataque dos EUA contra a Síria, apesar da forte oposição de muitos países e dos principais líderes políticos e religiosos, incluindo o Papa, fará ainda mais vítimas inocentes e levará a uma escalada do conflito, que se espalhará para além das fronteiras da Síria. Esse tipo de ataque pode aumentar a violência e desencadear uma nova onda de terrorismo. Pode minar os esforços multilaterais para resolver a questão nuclear iraniana e o conflito entre israelenses e palestinos e desestabilizar ainda mais o Oriente Médio e Norte da África. Pode quebrar o equilíbrio do sistema da lei e da ordem internacional.

O que a Síria vive hoje não é batalha por democracia, mas um conflito armado entre o Estado e grupos opositores, em país multirreligioso. Na Síria há poucos defensores de uma democracia. Mas há, sim, em grande número milícias da Al-Qaeda e extremistas de todas as falanges, que combatem contra o Estado. Os EUA classificaram como organizações terroristas a Frente Al-Nusra e o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, que lutam com a oposição, contra o Estado sírio. Esse conflito externo, alimentado por armas que estrangeiros fornecem à oposição, é dos mais sangrentos do mundo.

Ali lutam mercenários vindos de países árabes e centenas de milicianos de países ocidentais, inclusive da Rússia, o que muito nos preocupa. Sobretudo se voltarem para nossos países, com a experiência adquirida na Síria. Já se sabe que, depois de agirem na Líbia, muitos extremistas mudaram-se para o Mali. Tudo isso representa uma ameaça contra todos nós.

Desde o início, a Rússia mostrou ser a favor de um diálogo pacífico que capacitasse os sírios a desenvolver um plano para seu próprio futuro. Não estamos protegendo o governo ou o Estado sírio, mas a lei internacional. Precisamos de atuar com o Conselho de Segurança da ONU e acreditamos que preservar a lei e a ordem no mundo complexo e turbulento em que vivemos é um dos poucos modos que há para impedir que as relações internacionais deslizem para o caos. A lei é a lei, e temos de segui-la, gostemos ou não.

Nos termos da lei internacional vigente, permite-se o uso da força só para autodefesa ou por decisão do Conselho de Segurança. Qualquer outra opção é inaceitável nos termos da Carta da ONU e constitui um ato de agressão.

Não há dúvidas de que foi usado gás venenoso na Síria. Mas tudo faz crer que não foi usado pelo Exército sírio, mas por forças da oposição, para provocar uma intervenção a partir dos seus poderosos patrões estrangeiros, os quais, assim, estariam em aliança com os fundamentalistas. Relatos de que as milícias preparam outro ataque – dessa vez contra Israel – não podem ser ignorados.

É motivo de alarme em todo o mundo que a intervenção em conflitos internos em países estrangeiros se tenha convertido em ação corriqueira para os EUA. Isso corresponde aos interesses norte-americanos de longo prazo? Duvido. Cada vez mais milhões de pessoas em todo o mundo passaram a ver os EUA não como modelo de democracia, mas como nação que se serve da força bruta e depende de coaligações mal costuradas sob o slogan “ou estão conosco ou estão contra nós”.

Mas a violência já provou ser ineficaz e sem sentido. O Afeganistão gira sem sentido e ninguém pode prever o que acontecerá depois da retirada das forças internacionais. A Líbia está dividida em tribos e clãs. No Iraque, prossegue a guerra civil, com dúzias de mortos todos os dias. Nos EUA, já há quem trace uma analogia entre Iraque e Síria e se pergunte porque quer o seu governo repetir erros recentes.

Não importa o quanto os ataques sejam direccionados, nem o quão sofisticado sejam as armas, as baixas civis são inevitáveis, inclusive idosos e crianças, os mesmos que os ataques visariam a proteger.

O mundo reage. Se ninguém mais puder confiar na lei internacional, nesse caso passa a ser indispensável encontrar outros meios para garantir a autossegurança. Por isso, um número crescente de países busca comprar armas de destruição em massa. É lógico: se tem a bomba, então ninguém lhe toca. Há grande urgência em reforçar a não proliferação [nuclear] a qual, na realidade, está a erodir-se.

Temos de parar de usar a linguagem da força. Temos de retomar o caminho da discussão diplomática e política civilizada.

Nos últimos dias, emergiu uma nova oportunidade para evitar uma ação militar. EUA, Rússia e todos os membros da comunidade internacional devem aproveitar a disposição do governo sírio, que aceitou pôr seu arsenal químico sob controle internacional para depois ser destruído. A julgar pelas declarações do presidente Obama, os EUA veem aí uma alternativa à ação militar.

Acolho como bem-vindo o interesse do presidente em continuar o diálogo com a Rússia, sobre a Síria. Temos de trabalhar juntos para manter viva essa esperança, como concordamos fazer, em junho, na reunião do G-8 em Lough Erne na Irlanda do Norte. E trazer a discussão de volta na direção de mais negociações.

Se pudermos evitar o uso da força contra a Síria, a atmosfera internacional melhorará e fortalecer-se-á a confiança mútua. Será um sucesso partilhado que abrirá as portas para a cooperação em outras questões críticas.

As minhas relações pessoais e de trabalho com o presidente Obama são marcadas por crescente confiança. Aprecio essa confiança.

Examinei atentamente o discurso do presidente à Nação, na terça-feira. E devo discordar do [conceito de] defesa do excepcionalismo norte-americano. O presidente disse que a política dos EUA é o que “faz diferente os EUA, o que nos faz excepcionais.” É extremamente perigoso estimular as pessoas a que se vejam, elas próprias, como diferentes, seja qual for a motivação.

Há países grandes e países pequenos, ricos e pobres, os que têm longas tradições democráticas e os que ainda têm de encontrar as próprias vias até a democracia. As respectivas políticas também diferem. Todos somos diferentes. Mas quando pedimos que Deus nos abençôe, ninguém pode esquecer que Deus nos criou, todos, iguais.

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