terça-feira, 20 de agosto de 2013

Sócrates e a "Repeteca".

 

A repeteca

por MANUEL MARIA CARRILHO
Sócrates, um admirador de Sarkozy? Esta ideia, que se destacou na reportagem de Daniel Ribeiro para o Expresso sobre a "nova vida de Sócrates em Paris", surpreendeu muita gente.
Foi no entanto o próprio José Sócrates quem, durante a campanha eleitoral de 2009, revelou em duas entrevistas televisivas a sua grande cumplicidade e afinidade com Nicolas Sarkozy, indicando-o (apesar, disse, da sua amizade por Zapatero) como o líder político que mais admirava e de quem se sentia mais próximo.
Terá sido, sem dúvida, uma afirmação táctica, porque naquela altura Sarkozy estava "em alta". Mas penso que também foi uma confissão genuína, à qual se devia ter dado mais atenção. Porque o facto é que, se olharmos bem, o jornalista Daniel Ribeiro tem razão: "Curiosamente, Sócrates parece ter mais afinidades pessoais, e até políticas, com Sarkozy, do que com os seus camaradas socialistas franceses."
Vejamos: ambos desvalorizaram sempre os valores, as ideias e as causas, em nome da alegada eficácia de uma ação constantemente encenada. Comungaram sempre do mesmo voluntarismo político, que ignora a complexidade das sociedades contemporâneas. Cultivaram sempre o mesmo reformismo "ao empurrão", e o mesmo pragmatismo da chamada "cultura de resultados".
Partilharam o mesmo tipo de narcisismo político que, por ignorância e sobranceria, só convive bem com um deserto de ideias à sua volta. Convergiram no deslumbramento de uma "modernidade" identificada com o financismo, com a deriva das novas tecnologias e com o circo comunicacional. Revelaram o mesmo tipo de reverência pela ideologia do sucesso, e uma negligência semelhante em relação à generalidade dos imperativos sociais. Demonstraram o mesmo tipo de tentações pelo controlo dos media, na base de uma também análoga relação de fascínio/pavor por eles.
A crise de 2008 apanhou-os, aos dois, completamente desprevenidos, e ambos se especializaram na negação das evidências até aos limites do possível. E também se revelaram almas gémeas ao desprezarem, tanto os sinais da realidade como as lições da história.
E o facto é que, para lá de meras banalidades sobre o regresso do Estado (e, mais tarde, sobre a "salvação" do Estado Social), ninguém ouviu a José Sócrates uma palavra que fosse sobre a necessidade - mais, a obrigação moral - de os socialistas construírem uma resposta própria, autónoma e consistente para a maior crise que o capitalismo conheceu nas últimas décadas.
Preferiu, pelo contrário, dar as mãos a Sarkozy e lançar-se com ele, em Janeiro de 2010, na aventura de uma "moralização do capitalismo", numa cumplicidade que o Presidente francês saudou sublinhando, como agora lembra Daniel Ribeiro, "não haver um ponto de divergência entre nós". Como hoje se fala de Merkozy, poder-se-ia então falar de Socrazy, ou de Sarkotes...
Nada disto me surpreendeu. Conheci José Sócrates em 1995, quando ambos integramos o governo liderado por António Guterres, ele como secretário de Estado do Ambiente, pasta então entregue a Elisa Ferreira. Mantive sempre com ele relações de regular e frontal atrito, a começar numa lista de nomeações que ele queria que eu, como ministro da Cultura, fizesse em Castelo Branco, e a acabar, como se sabe, com a minha recusa em aceitar que Portugal apoiasse para a liderança da UNESCO um facínora com largo cadastro que lhe tinha sido sugerido pelo seu "amigo", o então ditador egípcio Hosni Mubarak, que ameaçava queimar todos os livros da cultura judaica ...
Pelo caminho, as fricções foram muitas e quase sempre do mesmo tipo. Devo dizer que nunca vi em José Sócrates convicções socialistas - no sentido europeu de "social-democrata" - mas antes uma atracção pela paródia em que infelizmente o socialismo tantas vezes se tem tornado, deslumbrado com o capitalismo financeiro, as novas tecnologias e os malabarismos da comunicação. Vivendo sempre perto do mundo dos negócios e dos futebóis, e desprezando acintosamente o conhecimento, a cultura ou a educação, com o mais perigoso dos desdéns, que é o que se alimenta do ressentimento e da inveja.
Para mim, o socialismo democrático era - e continua a ser, tanto quanto possa ter algum sentido - uma afirmação de valores que se baseia justamente na distância crítica em relação a tudo isso, e que se traduz numa exigente crítica do capitalismo, numa lúcida desmontagem das ilusões das novas tecnologias, e numa inequívoca reivindicação de autonomia face à voragem mercantilista da comunicação. O socialismo democrático deve ser um projecto de emancipação, e não um carrossel de anúncios e de equívocos.
Em 2004, quando José Sócrates disputou com Manuel Alegre e João Soares a liderança do PS, escrevi o que pensava e avisei: "Tudo pode acontecer, mas seria grave que o PS pudesse ser conduzido por alguém que anda por aí com um currículo em parte surripiado, em parte escondido." (Público, 07.09.2004)
Os socialistas decidiram o que entenderam e os portugueses escolheram o que pensaram ser melhor. Opções que, naturalmente, respeitei, com esperança que a responsabilidade do poder viesse a ter algum efeito benéfico. Foi uma esperança vã. A história fala por si, e dispensa comentários: o desnorte com o caso da licenciatura em 2007, a total incompreensão da crise em 2008, a aguda mitomania de 2009 e 2010, a bancarrota em 2011. Pelo meio, um tratado de Lisboa inútil, que só veio reforçar o poder alemão, e um reformismo esfarelado que raramente passou dos anúncios.
Na grande história do Partido Socialista, o "socrazysmo" foi um período atípico, que deixou um longo rasto de oportunidades perdidas, de casos estranhos, de histórias mal contadas e de encenações inúteis. Em seis anos de governação nem tudo foi mau, e seria injusto esquecê-lo. Mas sejamos claros: foram anos sem alma, numa constante deriva de valores e de convicções. Não tirar daqui nenhuma lição seria, no mínimo, estúpido.
Tudo isto torna penosamente patética esta história de "José Sócrates a estudar filosofia em Paris". Sobretudo porque, depois das aldrabices da licenciatura na Universidade Independente (hoje bem documentadas no livro O Processo 95385, Publicações Dom Quixote), tudo o que se lê na reportagem do Expresso lembra irresistivelmente aquilo a que Freud chamou em 1920, no seu Jenseits des lustprinzips, a "compulsão de repetição", e a que os brasileiros, de um modo mais corriqueiro, chamam... uma repeteca.
Lá temos de novo, como se pode ler na benevolente reportagem de Daniel Ribeiro, a entrada por favor na Universidade, o aluno com estatuto especial, os equívocos sobre o que de facto lá diz estudar (afinal, é "filosofia" ou é "ciência política"?), a contumaz esquiva à prestação de provas regulares e, até, a questão da língua (teremos agora o "francês técnico"?). Domínio em que, note-se, José Sócrates parece conhecer bem um provérbio que retrata o traço mais forte da sua congénita afinidade com Nicolas Sarkozy: "Plus c'est gros, mieux ça passe!"
Creio, contudo, que no momento de extrema gravidade que o País atravessa, o que é urgente é afirmar outros padrões, tanto éticos como políticos. Os tempos de crise que vivemos são tempos radicais. Sê-lo-ão, sem dúvida, cada vez mais. E o radicalismo começa na moral, antes de se fazer sentir na rua. Quem não o entender, será arrastado pela corrente do que aí vem: basta olhar para o que se passou por cá esta semana

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