domingo, 18 de dezembro de 2022

O meu camarada João Ribeiro

BAPTISTA BASTOS | b.bastos@netcabo.pt | 15 Julho 2016

A máquina fotográfica, nas mãos de João Ribeiro, complementava o texto com uma grandeza e uma emoção só vistas no começo do século, com Joshua Benoliel.
João Ribeiro, 91 anos, repórter fotográfico, morreu há dias, ante o silêncio ignorante e leviano de quase toda a assim dita comunicação social. E, no entanto, este homem jovial, aberto a todas as amizades, foi um dos três ou quatro profissionais que transformaram a fotografia de jornais numa arte pictórica e de intervenção. A máquina fotográfica, nas mãos de João Ribeiro, complementava o texto com uma grandeza e uma emoção só vistas no começo do século, com Joshua Benoliel, sobretudo quando este colaborou com A Ilustração Portuguesa. Devo ao João essa cordialidade solidária, cujo segredo só ele possuía, e o ter-me ensinado como se fazia uma reportagem.


Trabalhávamos ambos n'O Século, o grande matutino, conhecido pela "universidade", onde ganhava a vida, muito mal pago, um escol de enormes profissionais. Eu era um tira-picos, mil ouvidos e mil olhos, e o João um repórter fotográfico muito respeitado no meio. Camaradas, como então nos tratávamos. E, a propósito, lembro um episódio ocorrido em outro jornal, com outro grande jornalista, Neves de Sousa. Certa ocasião, uma estagiária dirigiu-se-lhe do seguinte modo: "O colega…" Não concluiu a frase. O Neves (querido e saudoso amigo) respondeu-lhe: "Colegas são as p… Jornalistas são camaradas e tratam-se por tu."

O João, menos brusco mas da mesma estirpe, camarada e assim é que é, foi um dia chamado ao gabinete do Acúrsio Pereira, chefe da redacção de O Século, e outra lenda do jornalismo, que lhe recomendou: "Leva o menino à Mãe d'Água, onde deflagrou um incêndio, e ensina-o como se faz." O menino era eu, e o João quase me levou pela mão. Num armazém de filmes, pertencente ao empresário Vicente Alcântara, próximo da Praça da Alegria, o fogo era enorme, porque no interior havia muita matéria inflamável. Tirou as fotos que entendeu e indicou-me: "Vai primeiro aos bombeiros, depois à polícia, a seguir ao hospital a ver o que há."

Não me abandonou enquanto eu seguia as suas instruções. Na época, para arredondar a conta ao fim do mês, eu também escrevia sobre cinema n'O Século Ilustrado, revista da empresa, e sabia umas coisas de filmes. Adicionei, ao que o João Ribeiro me ensinara, títulos de filmes que pertenciam a Vicente Alcântara. No final da noite, o Acúrsio disse-me, secamente: "Assim é que se faz." Foi o primeiro prémio que recebi. Olhou-me, como quem olha para um familiar estimado, e assim continuou para sempre.

A vida correu os seus trâmites, e, anos mais tarde, voltámos a encontrar-nos, o João e eu, desta vez no Diário Popular. Com o meu mestre antigo fiz diversas reportagens, entrevistas e tudo o que era preciso fazer. Envelhecíamos, almoçávamos com outros camaradas, embicávamos ambos com a expressão "fotojornalista", com a qual alguns preopinantes se julgavam muito modernos. "Repórter fotográfico, é assim que deve ser", dizia ele e eu corroborava.

Vejo-o agora como sempre o vi. Sorriso aberto e olhar claro. E aquela máquina fotográfica sempre nas mãos, com a qual o João Ribeiro fixava a vida e o movimento perpétuo, como se quisesse fazer parar o instante supremo.

Querido João, velho camarada: eu fico por aqui ainda um tempo, rodeado de vazio e de memórias. Adeus.

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