sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Álvaro Vasconcelos: “A mentalidade de silenciar os crimes do colonialismo manteve-se até hoje”


Álvaro Vasconcelos


Escreveu um livro com as suas memórias do colonialismo português na Beira, em Moçambique: racismo, violência contra as mulheres, trabalho forçado contrastam com a visão lusotropical.

Joana Gorjão Henriques 15 de Dezembro de 2022


Abre o livro com um mapa da Beira dividido entre a cidade branca - que tinha “belos edifícios modernistas” - e a cidade negra - que tinha “barracas feitas com o que havia à mão”. Lembra os dados: “Em Moçambique, em 1960, habitavam apenas cerca de 97 mil europeus (apenas 1,5% da população), que concentravam todo o poder, e 6,5 milhões africanos, sem direitos. Penso, agora, nessa escandalosa diferença”.

Álvaro Vasconcelos, 78 anos, fundador do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais de Lisboa (IEEI), que dirige, antigo conselheiro especial de Defesa e Relações Internas para o governo português, autor de vários livros e especialista de política europeia, escreveu um livro de memórias: Memórias em Tempo de Amnésia. Uma campa em África (edições Afrontamento).

Nele tece fortes críticas ao regime colonial português e lembra episódios de racismo quotidiano na Beira (Moçambique), para onde foi com nove anos, e viveu entre 1953 e 1965. “A minha memória da África colonial é bem mais crua do que a de muitos. Não recordo a África colonial como um paraíso, não penso que os 12 anos que lá vivi foram a minha grande aventura ou ‘os melhores dias da minha vida’. As minhas memórias mais marcantes são as que muitos querem esquecer: o racismo e a exploração brutal. Um país com um vasto império colonial onde, como iria descobrir, se praticava o trabalho forçado”, escreve.

Já depois da conversa em Lisboa, Álvaro Vasconcelos envia um email a acrescentar uma observação sobre o colonialismo: “Uma das formas de violência contra os africanos era a negação da sua cultura e da sua história. Como conto no livro, era negada a própria língua. Frequentemente diziam, com o propósito de insultar, que não falavam 'língua de gente'”.

O que o motivou a escrever este livro e partilhar agora as memórias do racismo e exploração do colonialismo?
Acredito que estamos perante uma enorme ameaça aos valores que foram conquistados no pós-guerra, sobretudo a partir dos anos 1960, em termos de igualdade, de direitos cívicos. Esta corrente de extrema-direita que nasceu na Europa, de certa forma, e que acompanhei muito de perto em França, é fundamentalmente racista. Em Portugal a particularidade é ser um racismo anti-negro, que tem base na escravatura e colonialismo.

Foi isso que o fez ir buscar memórias diferentes das memórias que diz serem as de muitos que lá viveram?
Em Portugal o racismo sustenta-se numa narrativa colonial, completamente falsa, do luso-tropicalismo. Não é nova. Se olharmos para os monumentos de Lisboa, por exemplo, no Padrão dos Descobrimentos, à frente está o Infante D. Henrique, o primeiro comerciante de escravos. Uma das condecorações mais importantes da república portuguesa é a ordem do Infante D. Henrique. Por todo o lado é celebrado. Aliás, quando isso é posto em causa em Portugal a reacção é brutal e não só daqueles que votam Chega. Uma parte larga da sociedade portuguesa nega que o colonialismo português tenha sido um crime contra a humanidade, uma forma de apartheid semelhante ao sul-africano, com a diferença de que na África do Sul era lei e um estado poderoso que cobria todos os cantos - em Moçambique era fundamentalmente nas zonas costeiras porque o colonialismo português deixava muitas zonas do interior sem serem cobertas.

Viveu nos dois países. Que diferenças sentiu entre esse apartheid em Moçambique e o da África do Sul?
Como digo no livro, quando a gente se sentava num banco de jardim da África do Sul estava escrito ao lado: ‘não-brancos não se podem sentar’. Na Beira, onde eu vivia, no banco não se sentavam não-brancos, sabiam que não se podiam sentar, mas não estava escrito. Essa é uma diferença grande.
A outra, que é significativa, é que as relações sexuais entre o dominador branco e as mulheres negras, que era uma forma de violação em muitos casos, na África do Sul eram proibidas. Para o racismo sul-africano a mestiçagem era uma destruição da pureza da raça, enquanto que no racismo português, a partir de certa altura, com o luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, começou a falar-se dos mestiços como forma de embelezamento da raça negra: uma forma de tirar a raça negra da barbárie era fazer filhos mestiços.

Até determinada altura nas colónias portuguesas vigorou o Acto Colonial (1930) e depois o Estatuto do Indígena (até 1961) - estava escrito e era uma forma de lei e divisão dos cidadãos brancos e negros.
Quando cheguei à Beira em 1953 a violência era absoluta. Um negro que partisse um prato em casa era mandado à esquadra levar palmatórias e ele ia por si próprio, com um bilhetinho, a dizer: ‘cinco, dez palmatórias’. Tal era o domínio da opressão. Tinha que ter uma caderneta (a do indígena) e se não estava assinada - lembro-me que o nervosismo do nosso criado (hoje dizemos empregado mas na altura eram quase servos) era se a caderneta estava assinada - era apanhado e levado à esquadra. Havia uma violência brutal.

Um sentimento de propriedade dos brancos em relação aos negros.
Era a continuação da escravatura. Havia trabalho forçado. Aliás, o bispo da Beira, D. Sebastião Soares de Resende, declarou que havia escravatura na Beira em 1944, e muito forte e em 1956 voltou a fazer o mesmo alerta.

Tinha consciência que esse tratamento era errado? Como era vivido em família esse racismo que fala?
As famílias variavam e todas exerciam um poder colonial, todas eram agentes do poder colonial. A minha família, de tradição republicana, tratava os negros com paternalismo. Certamente que o meu pai e a minha mãe diziam que tratavam bem os empregados da nossa casa. A minha mãe nunca mandou o nosso empregado a uma esquadra. Mas era uma situação em que fazia comida para nós e comia farinha com peixe seco ou às vezes só farinha. Tinha sido recrutado - e isso era uma forma de violência - para trabalhar para nós, e ganhando uma miséria.

"Para o racismo sul-africano a mestiçagem era uma destruição da pureza da raça, enquanto que no racismo português, a partir de certa altura, com o luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, começou a falar-se dos mestiços como forma de embelezamento da raça negra"


Quando percebeu que a violência era exercida pelos brancos sobre os negros?
​​Quando é que descubro que isso era uma brutalidade? Eu também era vítima de brutalidade, evidentemente que não era uma violência racista. O ensino na altura era de uma violência... O meu professor dava palmatórias, pendurava alunos pelas orelhas; ele estava convencido que criava crianças submissas pela disciplina e violência, semelhante à que os negros sofriam.
Comecei a ler livros e a descobrir um mundo humanista no liceu; olhava à minha volta e via que era absolutamente contrário ao que a gente vivia, ao que até os meus pais apregoavam e viviam e em contraste com o que os negros viviam.
Uma coisa que me provocou um choque absoluto foi uma vez ir a caminho de casa e ver um jovem negro a ser espancado por um grupo de brancos que lhe chamavam preto e acrescentavam todos os insultos. Qual era o crime dele? Era ter respondido a um insulto. Eu teria talvez 14 ou 15 anos. Cheguei a casa completamente revoltado. O meu pai respondeu, ‘é porque te sentes impotente para responder àquela violência’. Senti que devia fazer qualquer coisa, mas não tive coragem porque estavam seis ou sete homens a dar pontapés ao jovem negro. Costumo dizer que isso marcou as minhas causas primeiras. Essa cena marcou as minhas convicções humanistas, de igualdade, contra o racismo.

O seu pai fez alguma coisa?
Não acontecia nada. Conto no livro a história em que um capataz numa serração dá um murro num trabalhador negro e fá-lo cair num caldeirão de água a ferver. O homem morreu da forma mais horrível possível. A esse indivíduo não lhe aconteceu nada. Há muitas histórias assim.

Era a impunidade total?
Era. Os africanos não tinham direitos, nem nenhuma lei que os protegesse. Era assim até eu sair em 1964/65 - já existia a reforma do Adriano Moreira, mas eu não notava a diferença. As pessoas que viviam em Lourenço Marques (Maputo) contam que havia alguma diferença. Eu na escola primária tive um único colega africano, filho de um assimilado. E no liceu tive um colega africano. Quando falo com amigos que lá viveram não se lembram de ter tido colegas africanos.

Sentiu sempre essa impotência para mudar ou houve um momento em que percebeu que conseguia fazer qualquer coisa para combater o racismo?
Os brancos viviam numa bolha, havia a cidade negra e a branca. Os brancos da cidade branca, mesmo os progressistas, mesmo eu e os meus amigos, vivíamos entre nós e não tínhamos contacto com a cidade negra. Discutíamos Sartre, Camus, Beauvoir, o marxismo, criticávamos a ditadura, fazíamos isso na perspectiva da democracia em Portugal, de que também acabaria com o colonialismo, mas não fomos para os movimentos de libertação nacional. Vivíamos numa bolha branca. Na Beira havia uma espécie de liberdade, mas era dos brancos para os brancos.

Mas questionava-se essa realidade?
Eu e os meus colegas fizemos um filme para relatar a história dos criados que eram mandados à esquadra para apanharem palmatórias porque tinham partido um prato. Tínhamos consciência social de que havia algo de grave. Começámos a interessar-nos pela negritude, mas não nos organizávamos para acabar com o colonialismo, organizávamo-nos para acabar com a ditadura.
Paradoxalmente, a África do Sul era mais livre para os brancos e de lá chegavam livros, música, noticiários, coisas a que em Moçambique não se tinha acesso.

"Um negro que partisse um prato em casa era mandado à esquadra levar palmatórias e ele ia por si próprio, com um bilhetinho, a dizer: ‘cinco, dez palmatórias’. Tal era o domínio da opressão"


A determinada altura no livro descreve ter visto uma fila de negros acorrentados uns aos outros a trabalhar numa estrada: em que altura? E como interpreta o facto de este tipo de factos não ser falado nos livros de História?
Os nossos livros de História continuam a mistificar o colonialismo, porque faz parte do passado glorioso português e da retórica sobre as Descobertas.
Vi isso nos finais dos anos 1950. Estavam acorrentados nos pés, a fazer a estrada. Evidentemente que perguntei o que se passa, não me lembro o que responderam; mas nessas situações, as pessoas que se sentiam mal diziam que era assim e não se podia fazer nada; as outras respondiam que eram bandidos, criminosos…

O que se recorda de mais chocante?
A violência contra as mulheres. Esta narrativa portuguesa de que os portugueses fazem mulatos e que contribuíram para a mestiçagem do mundo… era por violação. As mulheres que trabalhavam em casa eram constantemente violadas.

Percebeu isso enquanto lá vivia?
Os relatos eram constantes. O patrão que tinha empregadas muitas vezes considerava que tinha direito sobre a empregada, como um direito medieval.

Na sua esfera pessoal sabia dessas histórias?
Era comum, e era aceite, fazia parte da vida colonial.

Mas não se denunciavam os abusos? Era conivência entre a comunidade branca?
A denúncia dos abusos do sistema colonial, da ditadura, da forma como existia, não acontecia. Houve abusos denunciados - o massacre de Wiriamu, [o trabalho forçado/escravatura] pelo bispo da Beira - mas qual eram as consequências?
Um indivíduo que denunciasse - pode ter acontecido - apresentava a queixa a quem? Ao representante do sistema colonial português, da ditadura? Não tinha seguimento, não havia estado de Direito, não havia justiça, não havia direitos. Estávamos a reclamar direitos para pessoas a quem a lei não dava direitos.

Mas mesmo depois do derrube da ditadura não houve em Portugal uma revolta para fazer com que algumas pessoas respondessem pelos seus crimes. Nunca tivemos uma comissão de verdade, nem ninguém foi julgado por crimes de guerra. Porquê?
Tenho uma interpretação. Quem fez o 25 de Abril foram os militares, e os militares fizeram a guerra colonial; se fossemos julgar a seguir ao 25 de Abril, estaríamos a julgar militares que tinham contribuído para o derrube da ditadura. Ninguém teve interesse em que se abrisse o dossier colonial.
Depois porque a narrativa de que Portugal não é um país pequeno, descobriu mundos, expandiu a civilização - a retórica de Salazar, que dizia que os negros são de raça inferior - está imbricado de tal forma na narrativa portuguesa e no que é a identidade portuguesa que temos presidentes da república a fazer esse discurso. Esse discurso não foi desconstruído em Portugal e por isso abre caminho à extrema-direita em Portugal. Por isso é que é urgente discutir isto.

Constata que houve muita gente a beneficiar do colonialismo, mas que não fizemos esse julgamento. Esse dossier devia ser aberto?
Acho que em relação aos crimes de sangue o dossier nunca fecha, portanto devia ser aberto. Mas devíamos desconstruir a nossa narrativa histórica. Agora vamos comemorar os 50 anos do 25 de Abril, é uma boa ocasião para fazer o que não se fez, a descolonização das mentalidades, passarmos a olhar para o nosso passado de forma diferente.
Não vou propor que se desmonte o Padrão dos Descobrimentos - que é obviamente uma ofensa aos africanos. Mas, se calhar, ao lado deveria existir um padrão que contrastasse com a narrativa do dos Descobrimentos, que falasse das lutas de libertação nacional, do sofrimento que foi a escravatura… Isso tem que passar a ser um discurso oficial português, com reconhecimento que houve crimes gravíssimos em nome de Portugal e pelo Estado português. Se começar a ser parte do discurso e passar para o ensino a narrativa é desconstruída. Isso também tem que ser feito em África. Falando com pessoas lá dizem que não foi feito esse trabalho de memória.

Apenas quase 50 anos depois do 25 de Abril é que decide partilhar estas histórias. Porquê tanto tempo?
A geração que lutou pela liberdade, pela igualdade, está a chegar ao fim numa altura em que uma contra-revolução cultural põe em causa tudo aquilo pelo que a gente lutou. Fui uma pessoa de combates. Primeiro contra o apartheid na África do Sul e contra o colonialismo, depois contra a ditadura, dediquei-me à integração na União Europeia. O meu combate de há uns anos é contra o racismo.

O acha que pode fazer, e a sua geração, para mudarem essa mentalidade?
Devemos agora valorizar aqueles que vão mudar a maneira como Portugal olha para o seu passado, os afrodescendentes, que são importantes do ponto de vista cultural, cívico, do activismo, começam a ganhar voz e mobilizam-se. Apoiar na medida que a gente possa e fazer uma campanha cívica para que nos 50 anos do 25 de Abril [se aborde] a questão da descolonização interior que não se fez.

"Uma coisa que me provocou um choque absoluto foi uma vez ir a caminho de casa e ver um jovem negro a ser espancado por um grupo de brancos que lhe chamavam preto e acrescentavam todos os insultos. Qual era o crime dele? Era ter respondido a um insulto."


Acrescentaria que também devemos valorizar a História e a Cultura dos povos africanos - a de agora, que, pelos valores dos seus escritores já tem considerável impacto, e a que existia no tempo da colonização e era negada [este parágrafo foi enviado já depois da entrevista feita].

Na Europa temos o discurso de que criámos a democracia, os direitos humanos; o mundo ocidental quer exportar o seu modelo, mas depois esquece que também é o território do nacionalismo identitário, da limpeza étnica, dos mortos no Mediterrâneo, como escreve.
Os ideais da Revolução francesa - igualdade, liberdade, fraternidade - foram um grande progresso da humanidade. Apesar disso, não se dava a igualdade, liberdade, fraternidade aos povos das colónias. Essa convergência como causa europeia não teve o valor universal que deveria ter tido. Mas com a II Guerra Mundial devia ter tido, fez-se a declaração universal dos direitos humanos das Nações Unidas e a partir dos anos 1950 deu-se a descolonização em grande parte das colónias europeias; o colonialismo português foi o que se manteve mais tempo.

Como é que a sua geração, e quem viveu em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, vai reagir às suas memórias que são contra a narrativa cor-de-rosa?
É uma óptima questão. Já tenho reacções. Há aquelas pessoas que viviam em África e que pensam como eu e dizem que ainda bem que estou a escrever isto; outros dizem que estou a negar que fui feliz em África, olham para a sua bolha. E quando se pergunta se não se lembram de como eram tratados os negros em Moçambique dizem que não era tanto assim.

Negam?
Negam, porque não negar é dizer que foram coniventes com um crime.

Acha que há um pacto de silêncio entre as pessoas que viveram e testemunharam as violências do colonialismo?
A ditadura fazia de falar-se um crime. E essa mentalidade de silenciar os crimes, aquilo que era inaceitável, manteve-se até hoje. Estas pessoas [os retornados] viveram o trauma da descolonização, de sair como saíram, de terem vindo como retornados e vivido em situações que não eram as melhores; criaram um espírito de pessoas que também sofreram. Sofreram, não há dúvida, mas era boa altura para olhar para o sofrimento dos outros quando eles estavam lá e pensarem que podia ter sido diferente. Se a ditadura nunca se tivesse recusado a negociar com os movimentos de libertação, a descolonização poderia ter sido menos traumática.

"Uma parte das pessoas que hoje são vivas eram jovens e não querem responsabilizar os pais. Era evidente que usufruíram do sistema, mas culpabilizar os pais…"


Esse pacto de silêncio existe para evitar a responsabilização?
Uma parte das pessoas que hoje são vivas eram jovens e não querem responsabilizar os pais. Era evidente que usufruíram do sistema, mas culpabilizar os pais… As pessoas têm prurido em apontar o dedo.
A nossa relação com os países africanos [que colonizámos] ganharia se assumíssemos o que foi a barbaridade do colonialismo. Era bom podermos fazer esse trabalho de memória, para nós e para eles também. O que chamamos de lusofonia ganharia uma dimensão mais cidadã, democrática, humanista e deixava de ser apenas um discurso sobre a lusofonia baseada numa enorme mentira.
Um passo de enorme importância foi António Costa reconhecer o crime de Wiriamu. Mas não deveria ficar por aí. Devia abrir-se esse dossier. Faz-se justiça aos que foram vítimas e aos familiares dos que foram vítimas.

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