sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Duas reportagens do miúdo que eu fui

07 Agosto 2015, por Baptista Bastos

"Vêm aí os ciclistas!" gritavam pelos microfones os batedores, as estradas apinhadas de gente, a alegria de um reencontro, e a fuga à enxada, aos trabalhos rudes do campo, doze, catorze horas insanas de combate à fome, à miséria. Inesquecível.


(Aos sobreviventes)


Para usar uma expressão do horóscopo chinês, 1959 foi o ano da minha "alegria suprema". Era redactor de O Século, talvez o mais importante diário nacional; tinha publicado um livro, "O Cinema na Polémica do Tempo"; fizera a minha primeira reportagem internacional (a inauguração da Feira de Bruxelas): era tido e havido como um crítico de cinema de larga notoriedade; e fora indicado para escrever a notícia da Volta em Portugal em Bicicleta. Um miúdo ancho de vaidade, muito senhor do meu nariz, e presunçoso, tolo e parvo. Tenho de reconhecer, porém, que andava na idade da aprendizagem, e dividia os homens em "jornalistas" e "os outros." Como vêem o tolejo, por vezes, espinoteia.

O Século era a "universidade", a "catedral", como lhe chamou o meu amigo e camarada Mário Zambujal, e aqueles, antigos, que lá trabalhavam, eram mal pagos, exerciam funções em outros órgãos de comunicação, a fim de arredondar a conta ao fim do mês, e embalavam sonhos irrealizados. Foram eles, e o Acúrsio Pereira, lendário chefe de redacção, quem fez do miúdo que fui o homem, hoje também antigo, que sou. Aprendi, com eles, que não há grandes jornalistas sem grandes redacções, e a de O Século era uma delas. Recordo-os a todos com emoção e orgulho e com uma gratidão sem preço.

Quando viajei para a Bélgica travei conhecimento com outra figura mítica do jornalismo, Artur Portela, que logo simpatizou comigo e com a forma desenvolta e alegre do jovem camarada. Portela fora correspondente do Diário de Lisboa na Guerra Civil de Espanha, e comportara-se com uma dignidade rara, de que outros se não podiam gabar. Era um homem baixo, extremamente amável, com um estilo muito próprio que o distinguia, mesmo que não assinasse os textos. Recordo, agora, quando da morte de António Ferro, o necrológio redigido pelo Portela, na hora de fecho do jornal, que devia figurar numa antologia para aprendizes de jornalismo. Via-o quase todas as noites, eu na varanda de O Século, ele a caminho de casa, vindo do Coliseu dos Recreios, onde elaborava as prosas de publicidade. "Boa noite, senhor Portela!", saudava-o e ele parava, olhava para a varanda onde eu me encontrava, tirava o chapéu, e seguia a sua vida. Li-lhe os livros com zelo e apreço: imitei-o, sem nunca conseguir igualá-lo. Boa noite, senhor Portela fica para o meu sempre. Mas muito gostaria de que os jovens de hoje, nos jornais, frequentassem os livros deste jornalista sem par.

Tinha, pois, ido a Bruxelas, no encantamento indizível de ser correspondente de O Século. Escrevi umas crónicas mais cheias do sentimento da descoberta, era a minha primeira viagem ao estrangeiro, seguir-se-iam outras, muitas outras, e obtive um êxito superior aos méritos do trabalho. Ainda guardo os recortes, que levavam o título "Passaporte para o paralelo 58". Nesse tempo, ir à Bélgica era uma aventura cheia de emoção.

Venho da viagem e, como era hábito, telefonei a Acúrsio: "Já cheguei." E ele: "Prepara-te, pois depois de amanhã vais fazer a reportagem da Volta." O jornalista que a escrevia tinha adoecido gravemente e eu era o substituto. A educação do jornal fazia-se dessa maneira, com experiência e zelo. Foi uma das grandes reportagens que fiz, e uma experiência humana que ficou para toda a vida. Tive a ajuda de Artur Agostinho e de Tavares da Silva. Este tomou-me como afilhado e eu via aqueles dois homens transmitir para a rádio e para o jornal relatos empolgantes logo a seguir às metas.

Era a época de Alves Barbosa, de Pedro Polainas, de Agostinho Baptista, dos ciclistas de Pinto Valongo, "Vêm aí os ciclistas!" gritavam pelos microfones os batedores, as estradas apinhadas de gente, a alegria de um reencontro, e a fuga à enxada, aos trabalhos rudes do campo, doze, catorze horas insanas de combate à fome, à miséria. Inesquecível. Tudo isso e muito mais, coisas terríveis, de grandeza e de indignidade, escreverei num texto memorialístico que estou a concluir.

A Volta a Portugal marcou-me para sempre. Assim como os nomes e os rostos daqueles que definiram essa minha história real. E, com ternura e afecto, nomeio, de novo, Artur Agostinho e Tavares da Silva que ampararam e ensinaram, com o exemplo, o puto repórter a executar o seu trabalho. Há anos, conhecedor da minha paixão pela Volta, o meu saudoso amigo Emídio Rangel convidou-me a completar a última etapa desse ano num carro aberto da SIC. Voltou a ser inesquecível. O vento na cara, os gritos do povo, os acenos, a amizade às escâncaras e o gosto de se encontrar quem se não conhece, quem nunca se viu.

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