domingo, 31 de julho de 2022

A “vã glória” de os políticos tentarem condicionar a História

 A tentação dos políticos de condicionarem o seu lugar na História parece inevitável. Assim como a impossibilidade de o conseguirem. A leitura que será feita pelos historiadores do futuro depende de factores que hoje não são controláveis. E, muitas vezes, o desejo dos políticos de determinar a imagem futura dirige-se mais a influenciar a sua imagem no presente.


São José Almeida 31 de Julho de 2022

Retrato do marquês de Pombal feito pelo pintor francês Louis-Michel van Loo em 1766


As declarações do primeiro-ministro, António Costa, foram interpretadas como uma tentativa de desvalorizar as críticas que o antigo chefe do Governo e ex-Presidente da República Aníbal Cavaco Silva lhe dirigiu no artigo de opinião Fazer mais e melhor, publicado no Observador, a 1 de Junho. Questionado por jornalistas, António Costa afirmou: “Cavaco Silva preocupa-se com o seu lugar na História; eu estou preocupado, sobretudo, com o futuro dos portugueses. Temos de fazer mais e melhor. Quanto ao passado de Cavaco Silva, tenho procurado valorizar o trabalho dos meus antecessores.”

A ironia do primeiro-ministro é explicada ao PÚBLICO pelo sociólogo António Barreto, ao lembrar que, “dentro do que se chama insultos políticos, um dos mais finos é o que diz que o político não vai ficar na História ou que vai ficar como nota de pé-de-página”. Mas ainda que tivesse sido uma menorização da importância que têm hoje as opiniões e as reflexões de Cavaco Silva, a questão ficou no ar: até que ponto pode um político influenciar ou mesmo determinar a imagem que de si fica para a História? “Qualquer político quer ficar na História”, diz António Barreto, acrescentando que “uns vivem obcecados com isso, outros são mais desprendidos”, mas todos “querem deixar a sua marca na História”.

O espectáculo do poder

O principal modo como os políticos procuram condicionar a imagem da sua acção para o futuro é a forma como exercem o poder. O exercício do poder é, segundo Barreto, visível “na pose física, na linguagem corporal”. E garante: “Mesmo os políticos que parecem descuidados o fazem. Quantas pessoas existem que cuidam tanto do seu descuido...”

Ainda que os políticos não consigam determinar em absoluto a forma como a História os verá, o exercício do poder é feito através da imagem que os políticos transmitem à população. António Barreto frisa que “o espectáculo do poder não é recente — o que é recente é o espectáculo do poder de massas”. E recorda uma pequena história: “Dias depois do terramoto de 1775, o marquês de Pombal, então conde de Oeiras, vai à Baixa com um desfile de coches. Um nobre chama-lhe a atenção de que está a gastar dinheiro, quando há gente a morrer. Ele responde: ‘Não é por mim, é pelo povo...’”


O espectáculo do poder é, assim, a forma como os governantes transmitem a sua imagem à população, como o exercício do seu poder é percepcionado e a sua autoridade aceite. Historicamente, esse poder era demonstrado, por exemplo, com as saídas reais, em que os soberanos exerciam o poder junto das populações, arbitrando conflitos, reconhecendo direitos, presidindo a julgamentos.

Mas há formas actuais de concretizar o espectáculo do poder. Já em democracia, Mário Soares recriou o instrumento das saídas reais através das presidências abertas (1986-1996). Ou seja, o “Presidente-rei” Mário Soares deslocava-se com o seu séquito, a sua corte — em suma, as suas casas militar e civil — visitando as populações, transformando questões locais, sectoriais ou temáticas em problemas nacionais. Claro que, num regime democrático, não podia ser o “Presidente-rei” a decidir o que era prerrogativa do poder executivo, mas esta forma de Mário Soares exercer a magistratura de influência transformou-se numa forma de pressão sobre os governos de Aníbal Cavaco Silva.

“A política sempre foi espectáculo, demonstração de protagonismo”, sublinha António Barreto, que acrescenta que “é o espectáculo do poder que mostra que há poder”. Explicando que “hoje o espectáculo do poder passa por falarem tendo atrás de si ou bandeiras ou militares ou entidades políticas ou frases de propaganda”, mas o sociólogo adverte que “um político que aparece vezes de mais acaba por transmitir fraqueza, vulnerabilidade, falta de espessura ou de densidade”.
O lugar do narcisismo

O exercício do espectáculo do poder é, assim, a forma como o poder se afirma e um instrumento que permite aos políticos ficarem ou não ficarem, de facto, para a História. Em conversa com o PÚBLICO, António Costa Pinto, investigador-coordenador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e professor no Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), defende mesmo que “os dois grandes motores de ambição política é o poder, em primeiro lugar, e o ficarem para a História como imagem positiva do poder”. Ainda que “muitas vezes a classe política assuma que o seu objectivo é servir o país, independentemente da natureza dos regimes”. Mas o professor do ISCTE estabelece uma diferença: “Consoante a personalidade, alguns políticos privilegiam mais a ambição a estar no poder, e menos o lugar que lhes reserva a História”.

António Barreto defende que “a razão principal por que se vai para a política é o poder”. Há também “o espírito de missão”, a ideia de poder “contribuir para o bem comum”. “Na política, acredito que há bons sentimentos e que há políticos que têm essa ideia de contribuir.” E aponta ainda uma “terceira razão”, que “é a presunção, a vaidade, o narcisismo”. Defendendo que a atitude de alguém “querer viver para além da vida e ficar na História é um comportamento vaidoso e presunçoso”, que classifica como “o cúmulo do narcisismo”. E frisa que isto é alimentado pela seguinte ideia: “Se penso que a História vai dizer algo de mim, fico com o meu ego engrandecido...”

Mário Soares em Guimarães durante a presidência aberta de 1987 ALFREDO CUNHA/ARQUIVO

Isabel Leal, professora catedrática de Psicologia, psicanalista e reitora do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), não subscreve totalmente esta leitura. “Não se pode dizer que todos os políticos são narcísicos”, afirma, em declarações ao PÚBLICO, ainda que assuma que “há estudos que apontam” para que existe “um conjunto de características de personalidade facilitadoras” da entrada na política. Ou seja, os políticos são “pessoas que têm características como gostarem de exposição, de reconhecimento, que valorizam a imagem pública e a gratificação”. Mas lembra: “Vivemos num tempo em que todas as pessoas se expõem nas redes sociais.”

Por outro lado, Isabel Leal sublinha que “a situação na política, a bolha em que vivem os políticos, exacerba características de personalidade que não eram preexistentes”, mas “não é só com os políticos que tal acontece.” Além de que “há imensos exemplos de pessoas que acabam por ter uma atitude discreta quando saem da vida pública”. E exemplifica: “Fernando Nogueira e António José Seguro tiveram exposição pública, foram líderes, mas quando acabaram, acabaram. Perderam e desapareceram. Carlos Carvalhas também praticamente desapareceu quando deixou de ser líder.” O exemplo oposto são os casos de “Marcelo Rebelo de Sousa e Marques Mendes”, que “nunca desapareceram da vida pública”.

A reitora do ISPA considera que “muitos estão na política porque fizeram a vida nesse sentido, estiveram nas juventudes partidárias, têm mães e pais com empenhamento político, acabam por fazer carreira política e vão vivendo com essa realidade” e acrescenta: “Passos Coelho e António Costa nascem e desenvolvem-se na política, foram-se fazendo, foram-se ajustando aos lugares que ocupam.”

O facto de “serem todos políticos não quer dizer que tenham personalidade idêntica”, prossegue Isabel Leal, até porque, “no mundo das redes sociais, há imensas pessoas que vivem profissional e socialmente” expostos e “têm níveis de exacerbação absurda”, razão pela qual “falar especificamente do narcisismo dos políticos não faz sentido”. E conclui: “Encontramos na política perfis muito diferentes. E ainda bem, porque significa que o serviço público existe. Se pensássemos que todos iam para a política por narcisismo ou por promoção própria, seria péssimo.”
A influência do regime

Tal como em muitos outros aspectos, também na tentativa de fixação de uma imagem para a História há matizes consoante a natureza do regime. António Costa Pinto defende que “a preocupação com o papel para a História é mais comum nas ditaduras”, uma vez que “os regimes ditatoriais propiciam mais essa vertente”, já que “o poder é personalizado na figura do ditador”. Além de que “muitos ditadores, ainda em vida”, tratam da “escrita de uma história gloriosa para ficar e inauguram estátuas”. Citando exemplos, o professor do ISCTE salienta que “Salazar anotava a sua própria correspondência para quem viesse a seguir e fosse ler”. Mas salienta que, mesmo em democracia, “há políticos que se preocupam de forma obsessiva com a forma como ficam para a História”.

Demonstrativo da obsessão por deixar o nome na História, no plano do legado material e patrimonial, é, para António Barreto, “a praga, a chaga das placas comemorativas com nomes de pessoas, nomes completos de quem inaugurou a estrada, o fontanário”, que há em Portugal. Uma prática que atravessa regimes e se prolonga em democracia e que é “muito típica de quem quer agradecer a quem tem poder e foi responsável pela obra”, sublinha o sociólogo, lembrando que “não há câmara que não tenha várias”. A mesma mania que preside à prática de colocar “os nomes nas ruas, onde há nomes completos e ainda com a indicação de engenheiro ou doutor”, acrescenta.

Maria Inácia Rezola, professora na Escola Superior de Comunicação Social, historiadora e biógrafa, afirma ao PÚBLICO que essa tentativa de condicionamento das leituras e análises futuras é real e avança com os casos dos políticos que biografou. “Os casos de António de Spínola e de Melo Antunes são paradigmáticos — cuidavam não só da sua imagem no momento político em que viviam, mas também do que se ia dizer sobre eles no futuro.”

O general Spínola na Guiné-Bissau em 1970,


Considera mesmo que, deste ponto de vista, “Spínola é o mais óbvio, trabalhou a imagem, trabalhou uma máquina de propaganda na Guiné, através da comunicação social”. E explica: “Cada fotografia, cada discurso, cada cerimónia eram encenados. Também o fez na Revolução, embora em tempo comprimido”. Ou seja, “fez a encenação da sua imagem para a posteridade, através da encenação da sua figura e do discurso”.

Já Melo Antunes “tinha um estilo completamente diferente, mais preocupado com a reflexão intelectual, menos preocupado com o imediatismo da sua figura, mas, a cada intervenção se sente que está a falar para a História”, sublinha Maria Inácia Rezola, que prossegue: “Ele procurou sempre menorizar a sua importância e o seu papel, mas a verdade é que as suas intervenções e os seus escritos apontam em sentido contrário.”

Pormenorizando, a biógrafa de Melo Antunes revela que “a este respeito é muito interessante o que Melo Antunes guardava no seu arquivo”. E refere que em relação “às negociações do II Pacto MFA/Partidos, guardou todos os apontamentos e todas as versões do documento por ele anotadas, os pareceres que pediu e o documento final, e nas duas versões, a manuscrita e a dactilografada”. Assim como “os pareceres que [o Presidente da República] Ramalho Eanes lhe pediu, no Verão em que começaram os governos de iniciativa presidencial”.

Lenda e História

Por seu lado, José Miguel Sardica, professor da Universidade Católica, historiador e biógrafo, declara ao PÚBLICO que “nenhum político pode dizer: ‘Eu vou controlar a maneira como entro para a História.’ Isso é impossível, mesmo escrevendo memórias.” E avança com o exemplo de Napoleão Bonaparte, que “vivia obcecado com a imagem de que de si ficaria para a História”. Tanto que, “quando foi para o exílio, em 1815, e até morrer, em 1821, depois de ter revolucionado a Europa, criado um império hegemónico, de ter sido o grande construtor da Europa liberal, dedicou-se a ditar ao conde de Las Cases as memórias O Memorial de Santa Helena, uma versão que não é a História que realmente aconteceu”. Napoleão estava “a ditar para a posteridade”.

A obra “foi um best-seller no século XIX, mas não controlou a História, onde Napoleão é um vencido”. Na verdade, José Miguel Sardica lembra que, na Batalha de Waterloo, “o duque de Wellington ganhou, mas não tem a imagem lendária que Napoleão tem”. No fundo, as memórias de Napoleão contribuíram para “a construção da lenda, do bonapartismo que todos os Presidentes de França querem ter”. E remata: “Cavaco Silva está a fazer isso.”

 
“Cavaco Silva preocupa-se com o seu lugar na História; eu estou preocupado, sobretudo, com o futuro dos portugueses. Temos de fazer mais e melhor", disse António Costa no início de Junho em resposta a um artigo de opinião do antigo Presidente da República e primeiro-ministro Daniel Rocha

Analisando o presente, José Miguel Sardica defende que, “mais do que Mário Soares — que sabia o seu lugar e que ia ficar para a História —, Cavaco Silva preocupa-se”, e explica: “Por não ser tão seguro, Cavaco Silva tem contas a ajustar com o país, dá recados, faz guerrilha verbal com António Costa, que irá bater o seu recorde como primeiro-ministro. Cavaco Silva lida mal com o que a História dirá dele e não reconhece a sua grandeza em nenhum político que o seguiu”. Outro político em quem José Miguel Sardica reconhece “essa mesma forma quase obsessiva” de controlar o que dele se diz e dirá é José Sócrates.

Igualmente António Barreto identifica a intenção de falarem para o presente. E realça que quando “as memórias são publicadas antes de os políticos morrerem” elas têm como objectivo “não só influenciar a História, mas também o presente, o modo como são vistos”. E também aponta para os exemplos de “Cavaco Silva e José Sócrates”, que “tentam corrigir a imagem que deles existe, querem ter uma narrativa para o presente”.
O agora e o futuro

Todavia, quando a História futura tratar do actual presente, ela irá basear-se em fontes históricas e “o político de hoje, quando faz um discurso, sabe que ele fica como documento para a História”, assim como ficarão “as cartas que envia para a família”, aduz José Miguel Sardica. Lamenta, porém, que em Portugal haja “poucos políticos que deixem memórias ou arquivos” e que este seja “um país em que não se valoriza os arquivos pessoais”. Mas lembra que Mário Soares fez uma fundação e “tem livros autobiográficos, as entrevistas a Maria João Avillez”. Assim como “Freitas do Amaral e Cavaco Silva não fizeram bem memórias, mas um testemunho, para alguém escrever a biografia deles”. Frisa, porém, que não há “uma biblioteca presidencial, como nos Estados Unidos”.

Também António Costa Pinto sublinha que um “elemento bastante importante” para a historiografia futura “são as memórias”, já que “os políticos escrevem para tentar fixar o seu papel na História”. E aponta que “as memórias de Cavaco Silva são isso”. Ainda em relação à importância das memórias, o professor do ISCTE acrescenta: “Algo interessante que ilustra a verdadeira obsessão de membros da classe política que tiveram um fim traumático, que têm rupturas no exercício do poder, é que os poucos que escreveram memórias transmitem a sensação de falhanço”.

Há políticos que “vivem com a obsessão” da sua imagem e “procuram jornalistas”, assim como “há os que escrevem memórias e autobiografias — em Portugal há pouco” —, sublinha António Barreto. “Os políticos têm pouca confiança nos historiadores”, salienta, sublinhando que “há políticos que morrem amargurados ou deixam de fazer política, porque pensam que a história não lhes fará justiça”, dando com exemplo “os casos de António de Spínola, de Mário Soares e de Álvaro Cunhal”, que “viveram convencidos de que a História iria ser injusta com eles”.

 Retrato oficial de Spínola enquanto Presidente da República. “Cada fotografia, cada discurso, cada cerimónia eram encenados", diz a biógrafa Maria Inácia Rezola Museu da Presidência da República

Contudo, José Miguel Sardica defende que “aqueles que querem hoje retocar a sua biografia podem ter algum êxito no futuro imediato, mas não na historiografia que será feita no futuro”. E insiste: “Cavaco Silva e José Sócrates podem estar preocupados, mas ninguém sabe como o mundo vai estar daqui a 50 anos.” Ou seja, frisa o professor da Católica, “a leitura que dos políticos será feita depende do que acontecer e como os próximos 50 anos vão dar razão a Cavaco Silva ou inocentar José Sócrates.” Isto porque, “por muito que os políticos queiram construir uma persona, podem fazer o esboço, mas só a História dirá que persona foram. A História, o tempo, não cura, apura, decanta, esclarece”.

Nesse sentido, o professor da Católica sublinha que “a saúde da democracia no futuro vai condicionar o que se pensará dos actuais políticos, se a evolução de Portugal for para iliberalismos, altera-se a imagem biográfica dos políticos de hoje”, quando estão a ser analisados num quadro político democrático. Colocando a questão de outro modo, José Miguel Sardica refere que “Passos Coelho é hoje um referencial da direita em reorganização e alvo fácil da esquerda, mas se houver outra crise” económica e financeira “a biografia de Passos Coelho pode voltar a ser necessária, como laboratório para a governação e para ser copiado pela esquerda”.

Com uma leitura positiva ou negativa, consoante a época e o contexto em que a sua acção é analisada pelos historiadores, há, contudo, políticos do século XX português que, segundo José Miguel Sardica, ficarão na História, como “D. Carlos I, António Costa, Sidónio Pais, Oliveira Salazar, Marcello Caetano, Mário Soares e Cavaco Silva”, ainda que “Mário Soares e Cavaco Silva precisem de pelo menos 50 anos para serem olhados como um marquês de Pombal ou um Fontes Pereira de Melo”, garante.

 Fontes Pereira de Melo (1819-1887) é considerado um dos mais marcantes políticos portugueses da segunda metade do século XIX. Em cima, retrato de Emílio Biel de 1883


O professor da Católica explica que, “por alguma razão, eles se ergueram sobre os outros, transformaram o país, eram estadistas”. E estabelece a diferença: “O político é o que pensa o hoje e o daqui a seis meses, o estadista tem uma visão, um desígnio, um ideal, um projecto”. Acrescentando que “Mário Soares é um estadista e um político que passou à História, nenhum livro sobre o século XX português deixará de falar dele — teve o desígnio da liberdade e da Europa. Cavaco Silva também teve um desígnio como primeiro-ministro, os seus governos são a década em que o país deu um dos seus maiores saltos, fez grandes reformas, o país estava irreconhecível dez anos depois”.
“Imortalidade simbólica”

Isabel Leal aduz que há dois ângulos de análise que explicam a vontade de ficar para a História dos políticos. Só que, frisa, ambos “não são exclusivos dos políticos, mas gerais a todas as pessoas”. Um desses ângulos de análise é “o facto de os políticos estarem muito tempo na vida pública, acabam por ter uma preocupação com a imagem, que é exacerbada em relação à média das pessoas”.

Actualmente, “vivemos num tempo que é de imagem” e “vemos essa modelação de imagem em todo o lado”, diz a psicanalista. Ora, “quem está na vida pública preocupa-se com a imagem” e, com o passar do tempo, faz “uma ‘centração’ maior” na sua figura. Isto porque “acaba por haver um isolamento”, os políticos passam a “viver em bolha”. Na vida política, “têm necessidade de fazer prevalecer a sua imagem, os seus valores, as atitudes que tomam, porque acreditam que elas não são acessíveis à maioria das pessoas” para que se dirigem e governam. Por isso, “têm necessidade de justificar-se para lá do seu tempo”.

É um fenómeno que, segundo Isabel Leal, “acontece com todas as pessoas a nível individual”, todos têm “a necessidade de uma narrativa sobre si controlada pelo próprio”, em relação aos outros que fazem parte das suas relações sociais. A diferença é que, “na vida pública, há uma necessidade de justificação para a comunidade”, sublinha. “É uma maneira de tentar controlar a realidade”, que se transforma numa “preocupação maior de quem está na vida pública”, já que “tem uma história que se vai revisitando”. Daí que os políticos tenham “necessidade de ir actualizando uma narrativa com alguma coerência”.

 Gabinete das Audiências do Presidente da República, no Palácio de Belém. É aqui que se reúnem habitualmente o Presidente e o primeiro-ministro Rui Gaudêncio

O segundo plano de análise da noção de passar à História, explica Isabel Leal, prende-se com “o conceito de imortalidade simbólica, um fenómeno teorizado por Robert Jay Lifton, que, em Portugal, foi muito estudado por Eurico de Figueiredo”, antigo professor catedrático de psiquiatria e psicanálise e ex-deputado do PS.

“Vivemos num tempo em que temos uma profunda consciência de que a existência humana e a vida acaba por ser efémera e que a História é uma narrativa que ninguém controla”, salienta a reitora do ISPA, que acrescenta que este “conceito explica porque é que acabamos por ter necessidade de achar que as nossas coisas nos transcendem, as coisas que ficam depois de nós”. Um sentimento que está ligado “à dificuldade de gerir a ansiedade perante a morte e a finitude” e que “aumenta com a idade”, prossegue a psicanalista. Essa é a razão por que “cada um ao seu nível quer deixar uma espécie de legado que o transcenda, querer ficar ou passar à História é uma preocupação com a finitude”, já que “continuar para além da vida é forma de justificar a existência”.

"Por não ser tão seguro, Cavaco Silva tem contas a ajustar com o país, dá recados, faz guerrilha verbal com António Costa, que irá bater o seu recorde como primeiro-ministro. Cavaco Silva lida mal com o que a História dirá dele e não reconhece a sua grandeza em nenhum político que o seguiu" José Miguel Sardica

A ideia de que a preocupação com a imagem que fica para o futuro é comum a outras pessoas e não um problema exclusivo dos políticos é corroborada por António Barreto, que lembra o caso de “Nubar Gulbenkian, filho de Calouste Gulbenkian, que deixou um livro de memórias porque se achava injustiçado”. O sociólogo salienta que ele “viveu obcecado pela história” e “durante três ou quatro anos gastou uma fortuna para comprar o obituário do The Times, cujos obituários, feitos com antecedência, eram muito famosos. Queria ler o seu obituário e pagou a jornalistas para saber o que dizia”. Ora, “quando morreu”, remata o sociólogo, “o obituário foi publicado e a última linha dizia: ‘O senhor gastou dinheiro para tentar alterar este obituário, mas não conseguiu.’”

“Toda a História é datada”

Em vida, António Barreto considera que é “razoavelmente inútil que os políticos se ocupem” de tentar condicionar o seu lugar na História, acrescentando que “há centenas de políticos, certamente bem-intencionados, dos séculos XVII, XVIII ou XIX, de que não se fala, uma vez que a História não é uma lista telefónica”. E defende que, “terminada a vida, vem o tempo, a poeira, os historiadores, e muito do que se pensava importante desaparece”. Isto porque, segundo o sociólogo, “o tempo e a História restabelecem o equilíbrio e a ordem de importância, o que nem sempre é justo”, e conclui: “Agora, tentar escrever em vida a sua história é muito inútil — será mesmo totalmente inútil.”

No mesmo sentido, António Costa Pinto garante que “os políticos nunca conseguiram condicionar a História” e defende mesmo que “é uma vã glória tentar condicionar a imagem que ficará para o futuro”. Até porque, segundo o professor do ISCTE, “a História faz a leitura do passado com o olhar do seu presente, lê as tensões do passado, faz a leitura política e simbólica, com as preocupações do presente.”

 José Sócrates em 2019, antes de ser ouvido por um juiz no âmbito do processo judicial que lhe foi movido em 2013. Para José Miguel Sardica, o antigo primeiro-ministro tem "uma forma quase obsessiva” de controlar o que dele se diz e dirá Daniel Rocha

Voltando a António de Spínola, Maria Inácia Rezola argumenta em sentido diverso. “Spínola é um perdedor, cuja recuperação foi feita pela democracia. Foi reintroduzido na política. Continua a ser uma figura com sol e sombra, mas que fascina os historiadores”, defende esta historiadora, considerando que “qualquer biógrafo não ficará indiferente à encenação da sua própria figura” e, nessa perspectiva, “é possível condicionar o trabalho do biógrafo”, até porque “o historiador não pode ignorar” esses dados e documentos. “Vai é lê-los de outra forma, faz uma selecção crítica”, salienta, para alertar que “o olhar crítico é a palavra chave” e concluir: “Nessa crítica, estará sempre o próprio historiador, a sua interpretação, que é o que torna a História interessante.”

Por isso, José Miguel Sardica defende que “a biografia é uma reconstrução e uma interpretação, não é um relatório e contas, não é uma crónica, as crónicas serviam para glorificar a vida, os grandes feitos, eram assépticas”. No fundo, garante, “fazer uma boa biografia não é só a narrativa de uma vida, mas uma abertura de uma época, um fresco de um tempo, uma janela, um ponto de mira.” Mas afirma que “uma biografia precisa de distância geracional” e argumenta: “Quando biografo o fontismo, posso não concordar, mas não estou a remoer.”

Salvaguardando que “o historiador é um produto do seu tempo” e “toda a História é datada”, o historiador afirma: “Uma biografia que escrevo hoje não seria igual se a fizesse daqui a 20 anos. Tenho de dizer, neste momento, o que acho sobre este indivíduo.” Frisando, contudo, que “fazer História não é fazer política, mas os valores e a mundividência do autor estão presentes na análise e na selecção de factos”, porque “a História também passa valores”. Daí que “não haja biografias definitivas. A biografia é um retrato de uma época e das cambiantes da vida de uma personagem”.

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