quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Não ter onde cair morto...(Coronel Carlos Matos Gomes)



Não ter onde cair morto

A notícia de que a família Espirito Santo não tinha um único bem em

seu nome elucidou-me sobre o tipo de sociedade em que vivemos,

aonde chegámos. Juristas meus amigos garantiram-me que é

perfeitamente legal um cidadão, ou cidadã, ou uma família não ter

qualquer bem em nome próprio. Nunca tinha colocado a questão da

ausência de bens no quadro da legalidade, mas no da necessidade.

Acreditava que pessoas caídas na situação de sem-abrigo,

refugiados, minorias étnicas não enquadradas como algumas

comunidades ciganas podiam não ter nada em seu nome, mas até já

ouvira falar no direito a todos os cidadãos possuírem uma conta

bancária, um registo de bens, nem que fosse para prever uma

melhoria de situação no futuro. Considerava um ato de

reconhecimento da cidadania ter em seu nome o que pelo esforço,

ou por herança era seu. Chama-se a isso “património”, que tem a

mesma origem de pai e de pátria, aquilo que recebemos dos nossos

antecessores e que faz parte dos bens que constituem a entidade

onde existimos.

Estes conceitos não valem para os Espirito Santo, para estes agora

desmascarados e para os da sua extracção que continuam a não ter

bens em seu nome, mas têm o nome em tantos bens, em paredes

inteiras, em tectos de edifícios, em frontarias, em supermercados, em

rótulos de bebidas.

O caso da ausência de bens dos Espírito Santo trouxe à evidência o

que o senso comum nos diz dos ricos e poderosos: vivem sobre a

desgraça alheia. Até lhe espremem a miséria absoluta de nada

possuírem. Exploram-na.No caso, aproveitam a evidência de que

quem nada possui com nada poder contribuir para a sociedade

para, tudo tendo, se eximirem a participar no esforço comum dos

concidadãos. Tudo dentro da legalidade e da chulice, em bom

português.

Imagino com facilidade um dos seus advogados e corifeus, um

Proença de Carvalho, por exemplo, a bramar contra a injustiça,

contra o atentado às liberdades fundamentais dos pobres a nada

terem, à violência socializante e colectivista que seria obrigar

alguém a declarar bens que utiliza para habitar, para se movimentar

por terra, mar e ar, para viver, em suma. Diria: todos somos iguais

perante a lei, todos podemos não ter nada, o nada ter é um direito

fundamental. Para ter, é preciso querer, e os Espirito Santo não

querem ter, querem o direito de usar sem pagar. O mesmo direito do

invasor, do predador.

A legalidade do não registo de bens em nome próprio para se eximir

ao pagamento de impostos e fugir às responsabilidades perante a

justiça é um exemplo da perversidade do sistema judicial e da sua

natureza classista. Esta norma legal destina-se a proteger ricos e

poderosos. Quem a fez e a mantém sabe a quem serve.Os Espirito

Santo não são gente, são empresas, são registos de conservatória,

são sociedades anónimas, são offshores com fato e gravata que

recebem rendas e dividendos, que pagam almoços e jantares. Não

são cidadãos. As cuecas de Ricardo Espirito Santo não são dele,

são de uma SA com sede no Panamá, ou no Luxemburgo.

A lingerie da madame Espirito Santo é propriedade de um fundo de

investimento de Singapura, presumo porque não sou o contabilista.

Mas a ausência de bens registados pelos Espirito Santos em seu

nome diz também sobre a sua personalidade e o seu carácter. A

opção de se eximirem a compartilhar com os restantes portugueses

os custos de aqui habitar levanta interrogações delicadas: Serão

portugueses? Terão alguma raiz na Históriacomum do povo que

aqui vive? Merecem algum respeito e protecção deste Estado que

nós sustentamos e que alguns até defenderam e defendem com a

vida?

Ao declararem que nada possuem, os Espirito Santo assumem que

não têm, além de vergonha, onde cair mortos!

O ridículo a que os Espirito Santo se sujeitam com a declaração de

nada a declarar com que passam as fronteiras e alfândegas faz

deles uns tipos que não têm onde cair mortos, uns párias.

A declaração de “nada a declarar” em meu nome, nem da minha

esposa, filhinhos e restante família dos Espirito Santo, os Donos

Disto Tudo, também nos elucida a propósito do pindérico

capitalismo nacional: Os Donos Disto Tudo não têm onde cair

mortos! O capitalismo em Portugal não tem onde cair morto!

Resta ir perguntar pelas declarações de bens dos Amorins, o mais

rico dos donos disto, do senhor do Pingo Doce, do engenheiro

Belmiro, dos senhores Mellos da antiga Cuf, dos senhores Violas,

dos Motas da Engil e do senhor José Guilherme da Amadora para

nos certificarmos se o capitalismo nacional se resume a uma

colecção de sem abrigo que não têm onde cair mortos! É que,se

assim for, os capitalistas portugueses, não só fazem o que é

costume: explorar os pobres portugueses, como os envergonham.

Os ricos, antigamente, mandavam construir jazigos que pareciam

basílicas para terem onde cair depois de mortos – basta dar uma

volta pelos cemitérios das cidades e vilas. Os ricos de hoje alugam

um talhão ao ano em nome de uma sociedade anónima!Os Espirito

Santo, nem têm um jazigo de família!

Eu, perante a evidência da miséria, se fosse ao senhor presidente

da República, num intervalo da hibernação em Belém, declarava o

território nacional como uma zona de refúgio de sem-abrigo, uma

vala comum e acrescentava a legenda na bandeira Nacional: “Ditosa

Pátria que tais filhos tem sem nada!”

Carlos de Matos Gomes

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