sábado, 4 de julho de 2020

Josina Machel: “Senti que a justiça criminal de Moçambique me tinha posto uma faca no estômago”


Josina Machel
Cinco anos depois de ter sido agredida violentamente pelo então companheiro, a filha de Samora Machel e enteada de Nelson Mandela está abalada com a Justiça do seu país, depois de o Tribunal Superior de Recurso ter anulado a condenação do homem que a deixou parcialmente cega. “É uma grande traição para as mulheres (…) que depositam a sua confiança no sistema judicial”, desabafa.
António Rodrigues
4 de Julho de 2020
Tem nome de guerreira – em homenagem à primeira mulher do pai, guerrilheira da Frelimo, morta em 1971 – e o seu reerguer depois do episódio de violência doméstica de que foi vítima em Outubro de 2015, na consequência do qual perdeu a vista direita, mostra que também é lutadora. Denunciou o seu caso, foi até às últimas consequências e conseguiu que o seu agressor, o ex-companheiro Rufino Licuco, fosse condenado, em Fevereiro de 2017, a três anos e quatro meses de prisão e a pagar-lhe uma indemnização superior a 200 milhões de meticais (2,5 milhões de e Josina Machel, filha do primeiro Presidente de Moçambique, Samora Machel, e enteada do primeiro Presidente negro da África do Sul, Nelson Mandela, tem-se dedicado, desde então, à causa da luta contra a violência de género. Criou uma organização não-governamental para ajudar mulheres que passaram pelo mesmo, o Movimento Kuhluka, contou a sua história, transformou-a num exemplo de que nenhuma mulher está livre de ser alvo de violência, porque se aconteceu a alguém como ela, que cresceu num ambiente seguro e privilegiado, com uma mãe defensora dos direitos das mulheres e que estudou nas melhores escolas (tem um mestrado na London School of Economics), pode acontecer a todas, ricas ou pobres, letradas ou iletradas.

Quase cinco anos depois de um episódio que lhe deixou marcas para sempre, o Tribunal Superior de Recurso decidiu, no mês passado, anular a sentença de primeira instância por considerar que não havendo testemunhas além do agressor e da agredida não se podia condenar o arguido. Licuco foi assim absolvido.O que sentiu ao saber da decisão do Tribunal Superior de Recurso?
Obviamente senti que o sistema de justiça criminal de Moçambique me tinha posto uma faca no estômago. Eu decidi falar. De certa maneira até parece inconsciente da minha parte, decidi contar a verdade imediatamente após a agressão. Fui a instituições públicas, estive no hospital, durante a minha estadia falei com agentes da polícia e com agentes de saúde, a quem expliquei o que me tinha acontecido. Depois disso, optei por levar o assunto à Justiça. Tenho provas incontestáveis que levaram à primeira sentença. É uma grande decepção. É uma grande traição que o sistema judicial moçambicano tenha optado por ignorar factos que são claros, factos que estão provados na primeira instância.
A maneira como olho para isto, como mulher moçambicana, como mulher africana, como mulher do mundo, é que muitas de nós fazemos o grande esforço de nos expormos, mostrar evidências irrefutáveis e, depois, as instituições escolhem tomar decisões com deficiências flagrantes, em desafio à legislação aprovada no país. Não faz sentido hoje, num Estado de direito, dizer que um caso tem de ser anulado porque a violência aconteceu entre quatro paredes e só estavam a acusadora e o acusado. Ora, essa é exactamente a característica da violência doméstica, os abusadores não abusam na presença de testemunhas. É uma grande traição para as mulheres que quebram o sigilo, que passam por cima da vergonha e do estigma e depositam a sua confiança no sistema judicial e este lhes responde dizendo que a prova não é suficiente porque não há testemunhas. De que é que precisamos mais? Precisamos de estar mortas para o sistema ter em conta as nossas experiências?
Ficou surpreendida com a decisão?
Absolutamente. Poderia entender se a sentença tivesse sido modificada, se a compensação tivesse sido reduzida, mas absolver? Perante provas tão claras? É um insulto à luta das mulheres contra a violência.
Poderá fazer regredir o que se tinha conseguido até em Moçambique, no âmbito da luta contra a violência de género?
Não tenho dúvidas sobre isso, esta decisão vai fazer com que as mulheres sintam que a Justiça não é fonte de refúgio e de protecção e vão preferir ficar caladas. E que os abusadores sintam que a Justiça está do seu lado e podem continuar a perpetrar a violência. E começará a ter impacto no tipo de sentenças que vão começar a aparecer a partir de agora em Moçambique.
Esta decisão é reflexo de que ainda existe em Moçambique uma cultura machista muito forte?
A cultura machista existe no mundo inteiro. Nós estamos num sistema patriarcal e isto é exactamente consequência daquilo a que os inglesas chamam backlash, uma grande força que tenta mostrar, através destes métodos retrógrados ainda fortes, que resistem a este processo de mudança e de reconhecimento dos direitos iguais entre homens e mulheres.
O que vai fazer agora? Vai recorrer para o Tribunal Supremo?
Uma coisa é o que a Josina Machel como pessoa conta fazer, outra coisa é a Josina Machel como activista. As implicações desta sentença vão além do indivíduo. Estamos num processo de consulta e de debate para ver se ainda vale a pena levar o caso a instituições que, a nível pessoal, já têm o sangue do meu pai nas mãos e que agora optaram, também, por ter o meu sangue nas suas mãos. Será que vale a pena? Mas se vale é pelas outras mulheres e não por Josina Machel.
Tem receio que o seu agressor, agora absolvido, possa voltar para se vingar?
Espero que a decência não lhe dê coragem para fazer isso. Mas se acontecer, o que é que posso fazer? Seria mais uma agressão, não faria uma diferença muito grande. Depois de toda a intimidação que fez para eu parar o caso, seria o mesmo tipo de intimidação dos últimos cinco anos. Espero que não o faça, mas não me surpreenderia.
A sua vida mudou desde o caso…
… completamente. Sou meio cega, deixei de ver de uma vista e não sou capaz de conduzir, tenho de ser levada. Não posso trabalhar no computador como fazia, o meu activismo é diferente. A minha vida social também mudou, porque sou dependente das pessoas para me movimentar, principalmente ao fim do dia. A minha vida mudou e nunca mais voltará a ser a mesma. Há pessoas que optam por considerar este tipo de perda insignificante, mesmo quando há mulheres que emocionalmente nunca mais serão as mesmas e a sua participação na sociedade e na vida económica acaba reduzida por causa do efeito psicológico da violência doméstica. Eu sofro o efeito psicológico, mas também físico e isso tem impactos muito grandes na qualidade de vida que agora tenho. Com esta sentença tudo isso foi ignorado e negado pelo Estado moçambicano.
Desde 2015, tem feito questão de sublinhar que a violência de género não conhece limites de classes, nem de privilégios, que mesmo a filha de um Presidente e enteada de outro e filha de uma activista pelos direitos das mulheres (Graça Machel) pode ser vítima de violência doméstica. É importante sublinhar que não há nenhuma mulher a salvo deste tipo de violência?
Completamente. A ironia do destino quis que uma pessoa como eu passasse por este tipo de agressão, pelo mesmo tipo de humilhação que qualquer mulher passa, perante os agentes de polícia, perante os agentes de saúde, perante os agentes do sistema de justiça criminal; e pela condenação que geralmente vem da nossa sociedade, uma sociedade que ainda não passou pela transformação de mentalidade que ajude as sobreviventes de violência doméstica. Esta batalha é de todos nós, não tem a ver com educação, com classe, com idade, todas estamos sob um sistema de subjugação, um sistema de guerra contra as mulheres. Todos os dias, da mesma maneira que um exército, também nós, mulheres, somos agredidas, violadas, mutiladas, mortas e o mundo continua como se nada estivesse a acontecer. Um Estado que vai para a guerra, prepara infra-estruturas para lidar com os veteranos de guerra, mas os nossos Estados optam por ignorar as vítimas desta realidade.
Todos os dias, da mesma maneira que um exército, também nós, mulheres, somos agredidas, violadas, mutiladas, mortas e o mundo continua como se nada estivesse a acontecer. Um Estado que vai para a guerra, prepara infra-estruturas para lidar com os veteranos de guerra, mas os nossos Estados optam por ignorar as vítimas desta realidade
A lei contra a violência doméstica em Moçambique fez dez anos em 2019, a sentença do Tribunal Superior de Recurso em relação ao seu caso mostra que a existência dessa lei não reflecte uma verdadeira mudança na sociedade moçambicana?
A lei da violência doméstica foi vista como um grande sinal e o nosso governo foi encarado como inovador por abraçar esta causa. Mas se, dez anos mais tarde, o mesmo Estado de direito consegue agir desta maneira, é porque aquilo foi apenas um papel aprovado para receber congratulações nesse mundo fora. A minha sentença é o mesmo tipo de sentença que outras mulheres têm recebido ao longo de todos estes anos, é mais um exemplo de que há uma grande diferença entre a existência da lei e a sua aplicação.
Criou em 2015 o Movimento Kuhluka para ajudar mulheres vítimas de violência de género. O que quer dizer kuhluka [lê-se kussuka]?
Kuhluka significa o renascer e foi escolhido porque é simbólico do processo que acontece com todas as vítimas e sobreviventes de violência. Nós costumamos usar a metáfora das árvores: depois de grandes incêndios, de grandes cheias, a tendência é olhar para as árvores e dizer que dali já não vai nascer nada, morreu. É como as mulheres vítimas de violência, é costume olhar para elas e dizer que foram amputadas para o resto da vida; que morreram. E passados meses, anos, olhamos para as mesmas árvores e começam a mostrar um verde novo. É esse o simbolismo que usamos: depois de tudo o que nos aconteceu, voltamos a crescer, renascemos.
Sente-se renascida?
Decididamente que renasci. Esta sentença deve ser uma tentativa para cortar as novas flores e o verde que já nasceu, mas, felizmente, as raízes são fundas, fertilizadas pelas várias irmãs em Moçambique e no mundo que passam por isso e as suas histórias e o ver o quanto renascem, regenerou-me.
O que faz o movimento?
Primeiro, fazemos advocacia pelos direitos e serviços que têm de ser disponibilizados pelo Estado, pelo sector privado, pela sociedade, para promover a cura e a superação de mulheres que passaram por situações de violência. Também defendemos juntos daqueles a que se chamam em inglês os custodians of culture [guardiões da cultura] para que entendam que os direitos dos homens e das mulheres são iguais e que os assuntos de violência de género não podem ser olhados como se fossem de segunda categoria. Trabalhamos com as Nações Unidas e com várias outras instituições internacionais para promover o direito de vítimas e sobreviventes de violência. Em termos de actividades, distribuímos kits para assistência a vítimas de violência nas primeiras horas depois do abuso, temos também o que chamamos círculos de suporte que são grupos de mulheres onde elas podem partilhar a sua experiência, podem aprender novas ferramentas para lidar com essa viagem que é ser sobrevivente de violência. A tendência da sociedade é pensar “isto já passou, já passaram uns meses, ela está bem, a vida andou para a frente”: não! As mágoas, as sequelas continuam durante muito tempo e precisam de ser lidadas de maneira sistemática e é isso que estamos a fazer. E advogamos igualmente pela criação de espaços seguros nas nossas comunidades, aquilo a que chamamos os abrigos, para que as mulheres tenham assistência médica, policial, psicológica, etc. para que possam sair, semanas depois, com capacidade para enfrentar a vida de maneira diferente. O trabalho da Kuhluka é advogar e prestar serviços a sobreviventes de violência de género porque esse foi o vazio que eu e várias outras mulheres identificámos ao começar esta viagem de sobreviventes de violência.

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