terça-feira, 5 de junho de 2018

Ganha a multidão

Ainda não assistimos à ascensão do populismo na política portuguesa. Mas é uma questão de tempo para que tal aconteça.

13 de Março de 2018
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TIAGO MOREIRA DE SÁ

No magnífico filme de Ridley Scott, O Gladiador, o imperador Marcus Aurelius decide designar como seu sucessor o general Maximus, em detrimento do seu filho Commodus, com o propósito de salvar Roma da corrupção. Ambicioso e sem escrúpulos, o herdeiro preterido mata o pai e assume o poder, dando ordens para que o seu rival seja executado. Este consegue escapar, mas acaba reduzido à condição de escravo, sendo vendido nas províncias do império a Proximo, um antigo gladiador que ganha a vida a promover combates em arenas. Lutador exímio e experiente, o general caído em desgraça rapidamente ganha a atenção do comerciante que o comprou. A um dado momento, o segundo manda chamar o primeiro. Segue-se um diálogo delicioso e cheio de significado. Maximus: “Perguntaste-me o que eu quero. Eu também quero estar em frente do imperador.” Proximo: “Então, ouve-me. Aprende comigo. Eu não fui o melhor porque matei rapidamente. Era o melhor porque a multidão adorava-me. Ganha a multidão e conquistarás a liberdade.”



Numa vasta faixa geográfica, que vai das margens do Pacífico dos EUA até à fronteira europeia com a Rússia, tem crescido na última década um descontentamento — ou mesmo revolta — generalizado com a política e com os partidos, mas também com a justiça, com os bancos e com as instituições em geral.

É isto que está na base da tendência actual de ascensão de líderes, partidos e movimentos anti-sistema, populistas e extremistas, num número significativo e crescente de países: Estados Unidos, Espanha, França, Reino Unido, Itália, Holanda, Áustria, Grécia, Hungria, Polónia, República Checa e por aí em diante. Como escreveram Cas Mudde e Kaltwasser, no seu livro intitulado Populismo, trata-se de uma reacção do povo, que se vê como puro, contra a elite, que considera corrupta, não representando ninguém que não a si própria, aos seus interesses individuais ou dos grupos de poder que a suportam.

Portugal é uma das poucas excepções. Até esta data ainda não assistimos à ascensão do populismo e do extremismo na política portuguesa. Todavia, é apenas uma questão de tempo para que tal aconteça. E acresce que, embora pouco se fale nisso, nós já temos um governo que é suportado por partidos anti-NATO, anti-União Europeia, anti-Euro e anti-Estados Unidos (no caso da União Europeia a posição do Bloco de Esquerda é mais matizada).

A tendência actual na Europa e na América, que podemos designar de revolução do sistema “de fora para dentro”, tem de ser contrariada por uma contra-tendência reformista a partir de dentro, ou seja, levada a cabo pelos líderes e partidos tradicionais que sejam simultaneamente anti-sistema, anti-populistas e anti-extremistas.

A primeira linha deste projecto deve ser o combate à corrupção, entendida aqui no seu sentido mais lato: a prevalência do interesse individual ou de grupo sobre o bem comum; a escolha das pessoas sem qualidade ou sem preparação em detrimento dos mais competentes; a promiscuidade entre a política e os interesses económicos, incluindo no relacionamento pessoal; a apropriação de dinheiros públicos; o recebimento indevido de vantagem; e por aí fora.

A segunda consiste na reforma do sistema político. Há várias formas de fazê-lo e as universidades estão cheias de estudos sobre isso. Por exemplo, pode ser feito através da mudança da lei eleitoral, ou da redefinição dos círculos eleitorais, ou de um novo processo qualquer de escolha dos deputados. As opções são sensíveis e nenhuma é destituída de desvantagens. Mas, seja como for, o resultado final tem de ser o de colocar os representantes a representar os representados.

A terceira é a reforma dos partidos políticos. Também aqui tem havido muito debate e há várias propostas em discussão, desde a generalização das primárias abertas até ao fim dos “vetos de gaveta” à admissão de novos militantes. Uma vez mais há riscos em algumas destas propostas, mas o essencial é que os partidos se abram ao exterior, sejam capazes de atrair pessoas muito boas nos vários sectores — universidades, think tanks, empresas, área social, etc. — e representem, de facto, a sociedade.

Fora do campo estrito da política também há reformas importantes para a credibilização do sistema, como a reforma da justiça — que tem de ser mais rápida e mais igual — e do sistema financeiro — que tem de ser mais transparente, rigoroso e com muito maior responsabilização.

Finalmente, no campo da política externa (que é cada vez mais também interna), é preciso um combate sem quartel ao discurso populista anti-europeu — ou mesmo à demagogia de que tudo o que é bom é nacional e tudo o que é mau é culpa da Europa — e defender sem timidez e com entusiasmo a integração europeia. A União Europeia pode já não fazer sonhar e há várias coisas que estão mal, mas ela continua a ser um espaço sem igual de liberdade, paz, lei, prosperidade, diversidade e solidariedade. Não gostam do que é a UE? Então experimentem viver sem ela.

No filme de Ridley Scott, o corrupto Commodus conseguiu suceder a Marcus Aurelius e governar durante algum tempo. O preço foi a continuação da decadência de Roma. Porém, acabou por ser morto no coliseu pelo íntegro Maximus, que não foi capaz de eliminar pois este era adorado pela multidão. Foi feliz o conselho de Proximo: “Ganha a multidão e conquistarás a liberdade.”

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