Roman Vishniac's image of Nazi soldiers in front of the Berlin Cathedral. |
Vivemos o que muitos definem como tempos duros, melancólicos, ambíguos, descritos como emocional, espiritual e moralmente estéreis. Alguns de nós sentem que deixaram simplesmente de respirar e, em asfixia, não têm esperança de retomar o fôlego. Nesse estado escravizado experimentamo-nos incapazes de ver vida, e não conseguimos suspender a mecânica das nossas atividades domésticas e domesticadoras para sentirmos o palpitar, o vislumbre de alternativas, o mais além que o hoje encerra.
Outros, ao invés, têm o atrevimento de, como Vishmiac, ao suspender a respiração, contemplar este clima denso e de penumbras à procura de sinais reveladores de confiança no futuro e, numa determinação consequente, verem e criarem eles mesmos a beleza. Vão para além da miopia típica de discursos cínicos, superficiais, repetitivos, puramente comentadores e nunca agentes, e moldam novas gramáticas existenciais que, numa nitidez milagrosa, mostram que, afinal, estamos a avançar como humanidade. Somos parte, portanto, de um momento da história que é tão apocalítico quanto festivo.
Fui testemunha recente, uma vez mais, da alquimia pública que tantos destes “iluminadores de possibilidades” estão a protagonizar na sociedade portuguesa.
Convocada para um encontro informal num belíssimo espaço público de Lisboa, cruzei-me fascinada com um grupo de duas dezenas de pessoas, até aí quase todas desconhecidas, convidadas e escolhidas para conversar por serem, de alguma maneira, Facilitadores de Transformação.
Cada um, na sua forma distinta, há anos que questiona o que é a civilização, abrindo-se a um campo de possibilidades experimentais que torne a sua vida e a de todos um espaço potenciador de plenitude, fazendo da sua existência uma prática relevante, que o faça ser mais do que mero personagem casual da vida. Um e outro perguntam-se, como preconizava Peter Drucker, não o que podem atingir individualmente, mas como podem contribuir para o todo, de que forma tecer um novo poder social que se suporte e se espelhe no poder de agir em autenticidade à mudança, mesmo que isso implique a incerteza do ato criador.
Nessa conversa matricial, antes de mais apresentaram-se como mães e pais, em seguida como pessoas inquietas e ativistas, e depois ainda enquanto agricultores, construtores de casas, engenheiros, informáticos, arquitetos, psicólogos, designers, coaches, professores, dançarinos, músicos, desportistas... que passaram por todo o tipo de experiências e de trabalhos, de dores e de buscas, mais desafiadoras ou mais banais, mas todas exigentes – da bancarrota à vida empreendedora – vivendo hoje uma simplicidade de vida estrondosa, suportada em cinco ideias-base. São elas: que estamos em transição cheios de força transformadora; que esta se faz com base em redes de aprendizagem e conhecimento, que se devem por sua vez suportar na dimensão colaborativa; que o convocar público de convergências e a dimensão eclética permitirá construir melhores pessoas e melhores culturas; que precisamos de trazer simplicidade para as coisas complexas, contrariando o que fixemos antes, já que complicámos o simples; que temos que voltar a ser apologistas da experiência e que o poder mais importante da contemporaneidade é o poder de atuar; e que as nossas vidas deverão ser de serviço, sendo que uma das formas de o conseguir é por as ideias ao serviço do coração. Cada um, nas suas vidas, e através da forma inovadora que escolheu para ter uma participação pública, cria diariamente outra forma de ser gente e mundo, dentro de uma ética do gratuito, da sustentabilidade, da compaixão, da diferenciação, do dar espaço para o futuro que parece querer emergir.
Neste criar que é ligar, neste facilitar que é credibilizar, vi sinais puros de oxigenação, numa respiração ritmada, em co-inspiração, atenta à matéria de que são feitas as nossas próprias vidas. E segundo os estudos recentes da felicidade, parece que é cada vez mais isso que conta.
De facto, na mesma altura cruzei-me com um artigo científico que será publicado em breve no Journal of Positive Psychology, onde o investigador Roy F. Baumeister e colegas aprofundam as diferenças entre uma vida feliz e uma vida com sentido. A dicotomia que separa o lado hedónico da existência (prazer, emoções positivas, sentir bem) e o lado eudaimónico (desenvolvimento pessoal, propósito) já remonta a Aristóteles, mas sabendo como as duas formas de experiência de vida se interligam, tem ganho lugar nos estudos recentes da ciência da felicidade perceber o que as diferencia, e que impacto social e pessoal têm uma e outra.
A felicidade hedónica sem a experiência de sentido coletivo é orientada para o presente, mas a consciência de uma vida com propósito implica integrar o passado, o presente e o futuro. Os que estão felizes parecem ser os que esperam muito da vida e dela tiram tudo o que podem; os que têm um propósito para a sua existência são, ao que o estudo indica, aqueles que dão.
Perguntemo-nos por isso: poderemos ser realmente felizes hoje sem uma visão integradora da nossa existência, sem uma reflexão sobre para e porque queremos viver, sem mudanças e evoluções pessoais, claramente decididas e determinadas sobre os seres humanos que queremos ser, levando para a vida de todos os dias aquilo que nos faz sentido e dá propósito?
A resposta é: podemos. Podemos ser felizes e ter vidas sem sentido, mas parece que ter existências em que, depois das necessidades básicas resolvidas (base primeira e vital para se ser feliz), o foco seja apenas que as nossas necessidades e desejos associados ao prazer sejam satisfeitos, está relacionado com uma vida auto-absorta, relativamente vazia e até potencialmente egoísta. A vida feliz que não é acompanhada de uma vida com sentido é tendencialmente irrelevante para a sociedade.
Por seu lado, podemos ter um sentido na vida e viver infelizes. Neste caso, a centração do bem-estar não é já é no próprio, e ter uma vida altamente significante mas infeliz permite ainda assim que a pessoa contribua para o bem comum. Um envolvimento sério com coisas para além de nós mesmos e dos nossos prazeres pode ser tão profundo que possa ir em detrimento da própria felicidade individual.
Por isso, perseguir a felicidade não pode ser a única meta das nossas vidas, a não ser que essa felicidade seja pública, coletiva, comprometida com os outros, criando a sua presença social.
Se, como conclui Baumeister e colaboradores no seu estudo, a felicidade é natural, mas o sentido é uma construção cultural, estamos então num momento histórico em que é a busca do propósito que nos move, e que nos tornará cada dia sabiamente mais humanos.
Estes Facilitadores de Transformação que conheci, parando a respiração por momentos para apreciar o belo da existência, entre as raízes do que já foi e a ilusão do que pode ser, mostram que não é uma felicidade pessoal que procuram e que mais os move, ainda que ela possa vir por acréscimo e seja bem-vinda; mas que quando retomam a respiração a fazem com consciência, indo bem fundo, num movimento toráxico sempre com a inclusão do Outro, para melhor saber soprar as velas do futuro que velejam.
O titulo com que se auto-designaram, se bem que ainda em processo, já expressa o compromisso ético com uma utopia dialogante, dialética e com sentido crítico, ao serviço da emancipação humana e de um novo ritmo coletivo, que capte e alimente o verdadeiro propósito e vitalidade do todo. Adaptando Kierkegaard, diria que lutam pela pureza de coração de deixar, nem que seja, uma só coisa, assim renovando a eterna novidade do mundo.
Helena Marujo é professora universitária no ISCSP/UTL. A autora escreve ao abrigo do acordo ortográfico.
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