Num tempo de dádivas – por vezes fragilmente ritualizadas, vazias e ocas, outras simbólicas, outras ainda majestosas pelo amor partilhado, feitas à margem das grandes estratégias de consumo, publicidade ou marketing – lembro o que alguns consideram ter sido o presente de Miguel de Cervantes: o mundo como ambiguidade
Vi recentemente nos media três histórias que me dividiram em incertezas, dúvidas e reflexões, pela sua (aparente) ambiguidade. Uma descrevia uma situação dramática vivida no metro de Nova Iorque, em que um homem empurrado para a linha, de mão estendida para se agarrar a algo, a alguém, à vida, mesmo antes de ser esmagado por um comboio, foi retratado por um fotógrafo jornalístico freelancer. A mão por detrás da foto serviu para imortalizar o momento, e não pôde – ou não conseguiu, ou não teve tempo, ou não quis, ou não… – alongar-se e tentar (apenas tentar) dar possibilidade de vida a quem desesperava. Numa entrevista subsequente, esse mesmo fotógrafo defende: “Prefiro não ser a história; prefiro ser o contador da história.” Espectador, não agente; transmissor de histórias, não seu criador nem transformador; veloz no captar da imagem, e lento na empatia (potencialmente salvadora?).A segunda história relata como um atleta espanhol perdeu intencionalmente uma corrida para ajudar um corredor queniano, medalhado nos Jogos Olímpicos, que se desorientou na boca da meta e que, ao se enganar no caminho, teria dado ao primeiro a hipótese de vencer a prova. Entrevistado, o corredor espanhol refere que preferiu agir assim por considerar que fazem hoje falta atos de honradez. Mas completou: caso se tratasse de uma corrida com outras implicações, visibilidade e dimensões... bem, aí provavelmente reagiria de outra forma e aproveitaria para cortar a meta em primeiro.
O terceiro caso, nacional e intensamente mediatizado, tratou da incorporação de uma identidade não real por um homem a quem chamaram burlão. Conheci a pessoa uma semana antes de o caso vir a lume em insistentes parangonas, pois coincidimos a falar numa conferência de uma prestigiada e admirável organização sem fins lucrativos dedicada à integração de pessoas com todo o tipo de diferenças. Na pessoa em causa impressionaram-me as suas histórias (mesmo que, sei-o agora, alegadamente fictícias), pois eram antifascistas, anticolonialistas, defensoras da liberdade, da democracia altamente participada, e de crónicas dramáticas sobre a pobreza no mundo, com propostas estratégicas para a sua diminuição. Ouvi-o atentamente, fascinada, sem duvidar. No linchamento público que se seguiu, tão habilmente coordenado e conveniente, silenciando tantas (outras) burlas em curso, não reparei em ninguém que se referisse ao conteúdo das suas intervenções, mas apenas às questões formais da pessoa e suas ilegalidades. Só mais tarde soube de ocorrências bem mais graves na história da sua vida, esqueletos dramáticos do seu armário, que ultrapassavam o ter (alegadamente) assumido funções e cargos inexistentes e fictícios, mas até lá, espantei-me com os absurdos discursos moralizadores vindos de tantos sectores e cidadãos, simplistas e sobre a forma, nunca sobre o conteúdo.
Os três casos são tradutores de éticas de vida em sociedade, de uma sociedade com requisitos potencialmente hipócritas, e todos nos convidam a perceber as profundas ambiguidades das nossas vidas, entre extremos dialéticos do bem e do mal, e os potenciais micro-heroísmos de cada dia.
Nestas histórias reside o apelo ao escrutínio da ambivalência: que condições sociais determinam se nos comportamos como eminentemente bons ou maus, como heróis ou vítimas?
A sedução pelo bem pode ser tão presente em nós como a sedução pelo mau. Qualquer um pode ser um herói, tal como qualquer um pode ser uma aberração, um veículo de infernos. É isto que o investigador norte-americano Philip Zimbardo tem brilhantemente estudado, nos últimos anos, através do Heroic Imagination Project: depois de estudar como as boas pessoas se transformam em monstros do mal, quer agora perceber como pessoas normais se metamorfoseiam em heróis. Criou uma organização e um projeto educativo para promover o heroísmo como antídoto ao mal e como forma de celebrar o melhor da natureza humana, e tem vindo a potenciar nos espaços comunitários ações que facilitem os pequenos heroísmos morais.
Ao ter como única certeza a sabedoria da dúvida, como nos dizia Milan Kundera, prefiro escolher acreditar que os heróis – os que o já foram, os que potencialmente podiam ter sido, os que queriam muito sê-lo, os que ainda poderão vir a ser – são simplesmente pessoas iguais a todas, que estão motivadas para atuar de forma ética ou em prol de terceiros, mas comportando-se de forma especial. Gosto desta ideia de democratizar o heroísmo. Gosto de poder imaginar que cada um de nós é um “herói-em-potência”.
Fascina-me saber que se estiver consciente da necessidade de agir em apoio de alguém que é vítima de qualquer mal – venha do quadrante que vier – ou simplesmente a necessitar de ajuda, cada um de nós pode estar preparado para desempenhar as melhores e mais necessárias ações. Porque não precisamos de luta ou guerra para sermos heróis, mas podemos fazê-lo de forma pacífica, ainda que rebelde e de desobediência aos dogmatismos e imoralidades; porque os atos heróicos não têm de ser extraordinários nem dramáticos – e podem ser coisas tão simples como o que fazemos com as palavras e as emoções em momentos de sofrimento coletivo, como reagimos face à injustiça, a que tipo de cidadania damos forma, que histórias infantis escrevemos ou de que maneira agimos perante um ato de violência perpetrado dentro do autocarro onde seguimos; e que cada um de nós, qualquer um, tem em si a potencialidade de ser um herói – todos os dias. Aspirar à condição humana (de excelência) já não é só um sonho do Pinóquio. Alimentemos imaginações heroicas e tomemos a ação. Não dá mais para sermos espectadores e alimentarmos a ambiguidade. Acho que este ano, mais do que nunca, é disso que precisamos. Voltando a Kundera, unamos a extrema leveza da forma à profundidade do conteúdo.
Helena Marujo é professora universitaria no ISCSP/UTL
A autora escreve ao abrigo do acordo ortográfico
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