“O que te digo três vezes é verdade.” Bellman, Relojoeiro, Alice no País das Maravilhas
I - Li recentemente um artigo do economista italiano Luigino Bruni que defendia que precisamos urgentemente de felicidade pública.
Expressão com tradição na economia italiana da segunda metade do século XVII, foi descrita como integrando três elementos: desenvolvimento económico, virtuosidade e comunhão de bens sociais. Este posicionamento dos economistas daquela época defendia que sem desenvolvimento económico as pessoas não poderão ser verdadeiramente felizes, já que nunca sairão da condição de escravos. Advogava também que este aspecto sozinho não basta, pois a felicidade pública – e a privada – emerge da virtude, e só acontece se a virtuosidade for cultivada. Finalmente, considerava que a felicidade é em si mesma um bem comum. Podemos ser ricos materialmente no privado, mas para conseguirmos a felicidade carecemos também de relações ou de bens relacionais. E se um de nós for infeliz, a felicidade colectiva está mutilada.
Falar hoje em felicidade, aberta e determinadamente, pela voz de economistas críticos e construtores de políticas públicas com visão de futuro, e estudar a felicidade nas academias, rigorosa e planetariamente, permitiu (re)abrir uma nova janela e uma gramática que mudou a nossa consciência. Ao descerrar conversas e métricas diferentes, plantou um terreno fértil (a etimologia latina de felicidade é fe, felicitas, fecundo, em divergência com o anglo-saxónicohappiness que se refere a acontecer/to happen) e deixou-nos o grande desafio de passar da concepção de uma felicidade privada – que penetrou as nossas vidas de forma aditiva durante décadas, nos colou inconscientemente ao projecto económico aumentando a desigualdade e diminuindo a sustentabilidade, e em consequência impediu que muitos saíssem da condição de escravos – para uma imprescindível visão de que essa felicidade tem que ser pública, e não menosprezar, mas sim ir além das questões económicas.
II - Paulo Freire, o criador brasileiro da palavra e prática da Conscientização dizia, em 1991, que nunca tinha podido entender a leitura e a escrita da palavra sem a acompanhar de uma ‘leitura’ do mundo que o empurrasse à sua transformação.
Em tempos de hegemonias múltiplas, de domínios e imposições de formas de viver e de reducionismo das escolhas próprias, podemos dizer que a linguagem foi (tristemente) ocupada.
No espaço público tem-se mais poder quando se controla o que é dizível e o que é discutível, quando se silenciam e proíbem palavras e modos de vida, e quando se consolidam ideias – infiltrando-as até à exaustão – sobre o que é possível.
As estratégias discursivas, controladas por poucos e a consequente criação e propagação de determinadas palavras e conceitos, mapeiam a nossa vida pública e as nossas representações colectivas. Colonizados por uma linguagem determinista, repetida e entediante, de aparência não ideológica, mas na prática definidora das relações actuais e dos futuros colectivos, damos por nós tantas vezes letárgicos, acríticos e incapazes de acreditar e confiar nos seres humanos, no poder democrático, na mobilização civil, na força para nos reinventarmos, potenciarmos formas dialogantes ou regenerar a vida pública.
No texto “Desfraldando sonhos desfeitos” Heshusius dizia, em 1996, que precisamos de uma consciência participativa, em que quando o eu e o outro somos vistos como pertencentes à mesma consciência, todo o viver é um viver moral. E continuava, defendendo que viver moralmente requere não apenas um discurso moral, mas uma consciência inquieta de nós mesmos em cada momento desse viver. É aí que entra a vivência e prática das virtudes.
III - Para mim, hoje, um viver moral acarreta por isso provocar intencionalmente novas consciências e esse sentimento inquietante oriundo noutras linguagens e noutra possível forma de existência, luminosamente mais justa e relacionalmente mais virtuosa.
A introdução do conceito de felicidade nos discursos e práticas das sociedades desenvolvidas é uma contribuição humilde, mas ainda assim próspera, para encarnar novas e mais esperançadas formas de vida pública. Vamos dizê-la e defendê-la duas, três, muitas vezes – para poder passar a ser verdade. Ocupemos (eticamente) as palavras!
Helena Marujo é professora universitária no ISCSP/UTL. A autora escreve ao abrigo do acordo ortográfico.
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