Tchizé dos Santos
Carmo Afonso 13 de Julho de 2022
Foi uma entrevista espetáculo, a que Tchizé dos Santos deu, na noite de segunda-feira, à jornalista Ana Sofia Cardoso na CNN. Teve mais de espetáculo do que de entrevista. Tchizé não mostrou disponibilidade para ouvir ou responder às perguntas que a jornalista lhe tentava fazer.
Foi um momento raro de televisão. Tchizé usou a sua força inteira. Não deixou que a entrevista fosse feita da dialéctica entre entrevistadora e entrevistada. Avançou, atropelou. Não demonstrou qualquer apreço, nem respeito, pelo trabalho que a jornalista estava a fazer. Com isso, desrespeitou-nos a todos.
Não seria fácil estar na posição de Ana Sofia Cardoso. A única coisa que estava ao seu alcance fazer, e que fez bem, foi manter a calma. Outra seria interromper a entrevista, encurtando-a. Não se adivinhava alguma fórmula que fizesse Tchizé mudar de atitude. Desde logo, porque não era esse o seu objectivo. Tchizé não aparentava estar num momento de descontrolo ou fraqueza, mas sim a usar o seu poder para dizer as coisas que queria dizer. E conseguiu.
A mensagem que passou poderia ter sido resumida em poucas palavras: tudo o que se tem passado e o que se está a passar é altamente suspeito; ela própria corre perigo de vida; o seu pai, José Eduardo dos Santos, foi assassinado e, desse homicídio, são suspeitos a equipa de médicos, a da segurança e a viúva do pai; o atual Presidente de Angola, João Lourenço, é um ditador corrupto e criminoso e um governante que não respeita o princípio da separação de poderes; os estados angolano e português devem-lhe uma indemnização; o povo angolano apoia a sua decisão de não autorizar que o corpo de José Eduardo dos Santos vá para Angola.
Todas as declarações tiveram um teor absolutista. Tchizé não estava para contraditórios. Vamos resumir isto: foi um momento de agudo constrangimento.
José Eduardo dos Santos não foi um democrata nem um defensor do povo angolano. Também a história de Tchizé não é a de uma mulher que subiu graças ao próprio esforço e mérito. O rasto de José Eduardo dos Santos — e de todos os seus próximos que fizeram negócios em Portugal ou que usaram este país como rampa de lançamento para o capitalismo europeu — ainda se nota. As palavras de Tchizé, por mais autoritário que seja o tom em que as diz, não têm força para criar factos.
Algumas reflexões a fazer aqui.
A consciência de privilégio transpirava na expressão corporal e verbal desta filha de José Eduardo dos Santos. Mulher e racializada, Tchizé não acusa o toque de qualquer estigma, antes o toque de quem, na vida e de um modo geral, viajou sempre em primeira classe.
Ser mulher é estar obrigada a desafios maiores. Sobretudo ser mulher negra não facilita a vida a ninguém. Mas eis que existe um elemento subversivo destas hierarquias; quem tem muito dinheiro nunca fica para trás. É como ter trunfo numa cartada da Sueca. Um duque do naipe de trunfo pode cortar um ás de outro naipe qualquer. Assim é o poder do dinheiro.
O privilégio do dinheiro consegue sobrepor-se a qualquer outro e sobretudo consegue aniquilar qualquer situação que, à partida, pudesse ser causa de fragilização ou mesmo de discriminação. Se este factor não for tido em consideração no campo onde se trava a luta feminista, a antirracista ou mesmo a LGBTQIA+, essas lutas serão meramente liberais, alheias ao tronco central de todas as lutas e, por isso, de curto alcance. Enquanto existirem pobres, e se estão para durar, serão sempre eles a base da cadeia alimentar e as presas dos restantes. A luta por quaisquer direitos deve assentar na que combate as desigualdades sociais e económicas. Se o espetáculo de Tchizé puder contribuir para essa reflexão, sempre terá algum valor.
De resto, na segunda-feira à noite assistimos a um exercício de autoritarismo e de soberba por parte de quem tem muito, mas perdeu aquilo que julgava pertencer à sua família por direito perpétuo: o poder sobre Angola. Não foi bonito. Mas nada disto é.
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