Carmo Afonso 29 de Junho de 2022
Observador publicou um artigo de opinião, de Lucas Claro, com o título
A Grande Substituição, e com conteúdo à altura do título, cuja leitura nem recomendo. Pretende o autor, segundo referiu, que se inicie em Portugal o debate à volta deste tema.
De que estamos a falar?
A mais fina flor da extrema-direita europeia e os supremacistas brancos nos Estados Unidos, de forma clara, têm chamado a atenção para um problema que os preocupa e que assusta o autor do artigo: pelo andar da carruagem, qualquer dia estamos todos misturados e perdemos a pureza dos nossos genes. Nas palavras de Lucas Claro: “(...) uma população que em momento algum foi consultada sobre se efetivamente desejava tornar-se uma minoria no seu próprio país.”
A que população se referirá o autor?
Não será certamente aos portugueses. Não parece estar aqui em causa o critério da nacionalidade. O autor aponta o número de estrangeiros que obtiveram a nacionalidade portuguesa durante o ano de 2020 (149.157) e mais adiante continua, implicitamente, a incluí-los no universo dos estrangeiros a residir em Portugal. Chama ainda a atenção para o facto de os sucessivos governos não serem claros relativamente ao número de estrangeiros a residir por cá. Uma espécie de: “eles não têm coragem de nos contar o perigo que corremos”.
A população que merece os cuidados dos adeptos desta teoria são os nacionais de origem certificada, os caucasianos, os tugas puro-sangue no nosso caso ou os eurodescendentes no caso dos Estados Unidos. Seria interessante averiguar se consideram um luso-descendente, com nacionalidade estadunidense, como estando incluído no grupo a preservar ou como fazendo parte da ameaça estrangeira.
O artigo tem mais pérolas como a de se referir ao Martim Moniz como “bairro histórico da nossa Capital” em vez de praça. Fala também em alfacinhas de gema. Certo. É uma pessoa que aprecia os portugueses, e os que vivem em Portugal, como se apreciam as peças de um carro: deve saber-se se são de origem.
Mas o artigo em causa tem uma relevância e só por isso vale a pena falar dele: traz para a imprensa uma teoria que, mais do que ser de extrema-direita, é efetivamente nazi e tem sido inspiração para atentados terroristas e massacres. Nada como avançarmos firmes, mesmo que seja na direção do abismo. Ficou escrito preto no branco. Corrijo: como é no Observador ficou branco no preto. Têm essa opção.
Aos portugueses que possam estar preocupados com a substituição da nossa estirpe ou com a sua diluição através de misturas ou cruzamentos com outras, tenho a dizer algumas coisas.
Reparem que aqueles que se consideram a pura representação dos nossos genes portugueses não são pessoas particularmente beneficiadas pela inteligência. Imaginem um país onde predominassem pessoas como o autor do artigo em causa. É que mesmo sem saber quem é, ou o que faz, deve temer-se o pior.
Temos várias minorias neste país. Desses, a única que realmente nos pode preocupar é a formada por fascistas, racistas e, está à vista que também os há, nazis. São os que verdadeiramente atentam contra uma coisa que conquistámos e que é preciosa: a democracia. São os que incitam ao ódio e à discriminação. Detestam minorias, mas são eles próprios a minoria detestável.
Outro aspecto para que chamo a vossa atenção é o facto de sermos um povo de emigrantes e, por isso, alvo de preconceitos e discriminação como estes que sustentam a esta teoria. Não é um privilégio ser português em Paris ou no Luxemburgo, deixemo-nos de ilusões. O melhor que conseguimos é ser considerados trabalhadores e honestos. Está aqui implícito um juízo sobre a nossa pretensa inferioridade. É uma pequena – mesmo pequena – amostra do que sofrem as pessoas racializadas perante estes nazis. Mas a semente do mal, a de estabelecer diferenças, está lá.
E este mal está sempre relacionado com pobreza. Por alguma razão se fala sempre do Martim Moniz ou de São Teotónio e Odemira. É onde estão os imigrantes pobres. O cheiro a caril na Mouraria ou no Alentejo incomoda, mas os estrangeiros ricos, que contribuíram para a expulsão dos velhos residentes de Alfama, não merecem destaque.
Somos uma comunidade e o mal está entre nós da mesma maneira que está em nós mesmos. E temos mesmo de lidar com isso. Pergunto-me o que leva o Observador, do qual sou assinante, a publicar uma coisa desta natureza. E fico sem respostas. Nenhuma satisfaz e nenhuma tranquiliza.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico
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