sexta-feira, 26 de agosto de 2022

O pedido do presidente Zelensky

Visto Gold

Vivemos um momento de exceção. Mas essa exceção não deve abrir portas a exceções às questões de princípio. Deve verificar-se o contrário: há aqui um teste à solidez dos valores que costumamos apregoar.



Carmo Afonso 26 de Agosto de 2022

A primeira-ministra finlandesa, Sanna Marin, considerou não ser correto que os cidadãos russos possam entrar na Europa, serem turistas, enquanto a Rússia mata pessoas na Ucrânia. São palavras suas.

Esta visão é partilhada pelos governos da Estónia, da Letónia e da República Checa. Já a Alemanha, pelo chanceler Olaf Scholz, manifestou uma posição mais cautelosa e considerou que a guerra na Ucrânia não é uma guerra do povo russo, mas sim uma guerra de Putin.

Nesta quarta-feira o presidente Zelensky pediu ao chefe da diplomacia portuguesa, João Cravinho, a imposição de restrições à concessão de vistos a cidadãos russos. Recordemos que, desde fevereiro, não concedemos “vistos gold” a estes cidadãos, mas que se mantém a concessão de vistos para estadas de curta duração.
 
Por cá, o assunto já tinha sido discutido e os partidos dividem-se: o PCP e o Bloco, por razões diferentes, são contra. O PS e o Livre preferem aguardar por orientações da União Europeia. À direita as posições não foram muito claras apesar de se esperar uma maior concordância com a ideia.

O tema será discutido no próximo dia 31 em reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros da UE. A Comissão Europeia tem deixado esta matéria ao critério de cada Estado-membro. Existem, claro, sanções aplicadas a quem esteja ligado ao governo russo e a quem preste apoio material ou financeiro ou que obtenha benefícios do governo russo. Ficam de fora os restantes casos.

É relativamente a estes que Zelensky pede a atuação do Estado Português. Deve então refletir-se no alcance desse pedido e nas suas consequências, caso seja concedido.

Putin tem oposição interna e a invasão da Ucrânia não é uma manifestação da vontade do povo russo. Bastaria sabermos que existem dissidentes para acionarmos um travão no que diz respeito ao tratamento do povo russo como um todo homogéneo e apoiante da invasão.

Além disso, existe a questão da coerência com os princípios que estabelecemos. Como justificar a hostilização, ou pelo menos a estigmatização, de um povo na sua globalidade? Qual a fronteira entre uma medida dessa natureza e xenofobia? E em que medida é que devemos acreditar que uma decisão política, que fere os nossos próprios valores, pode ter um efeito positivo na ordem internacional?

Vivemos um momento de exceção. Mas essa exceção não deve abrir portas a exceções às questões de princípio. Deve verificar-se o contrário: há aqui um teste à solidez dos valores que costumamos apregoar. Passar no teste é não ceder.

Mas será que o pedido do presidente ucraniano é um tema quente?

A guerra na Ucrânia tem sido a ignição para lutas férreas no espaço público. Vê-se na comunicação social, nos debates políticos e nas interações nas redes sociais. Não tem havido lugar para contextualizações ou quaisquer posições que não se restrinjam à manifestação de apoio incondicional à Ucrânia e à condenação da invasão russa. Fazê-lo é carregar no botão do conflito.

"Não tem havido lugar para contextualizações ou quaisquer posições que não se restrinjam à manifestação de apoio incondicional à Ucrânia e à condenação da invasão russa. Fazê-lo é carregar no botão do conflito"

Poderia pensar-se que tal intransigência e radicalismo teriam repercussões nas exigências feitas ao Governo português relativamente a medidas concretas que marcassem o envolvimento, ou pelo menos o apoio à Ucrânia, por parte de Portugal. Só que não é assim. A intransigência tem como objeto apenas a retórica; as palavras de quem fala sobre a guerra. Já as ações concretas estão ao fresco.

Portugal mantém relações diplomáticas com a Federação Russa. Não se fazem ouvir quaisquer críticas a tais relações. É que a indignação daqueles que são manifestamente radicais no apoio à Ucrânia dirige-se a comentadores da guerra ou a quem manifesta posições relativamente a ela, mas muito pouco a atuações efetivas de quem toma decisões políticas que dizem respeito ao conflito ou às recusas relativamente ao que é pedido pelo presidente Zelensky.

O pedido do presidente Zelensky, de restrições à concessão de vistos, não mereceu uma torrente de apoio público ou a exigência, junto do Governo português, para que a ele aceda. Não se adivinha que venha a acontecer. Os portugueses querem ouvir as palavras certas, e exigir que todos as digam, mas existe alguma concordância tácita no afastamento dos pontos sensíveis e concretos do conflito. Quanto a estes, não há radicalismos, há até algum silêncio.

Este é um sinal dos tempos.

O pedido do presidente ucraniano não é, entre nós, um tema quente da mesma maneira que não o foram os seus anteriores pedidos. Quente é a raiva que somos capazes de sentir, uns pelos outros, quando travamos a luta das palavras.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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